Um
jovem de 17 anos sofreu um acidente de moto quando fazia entregas para a
farmácia onde trabalhava. Os donos da farmácia sabiam que ele não tinha
habilitação e, ainda assim, permitiam a utilização do veículo que
pertencia a eles. Ao agirem dessa forma, assumiram o risco em proveito
do negócio. O adolescente sofreu traumatismo craniano, com consequências
seríssimas, como epilepsia, perda de osso frontal do crânio e implante
de prótese. Ele também sofreu alterações psíquicas e depressão pós
traumática. E mais: contraiu infecção hospitalar vindo a perder 2/3 da
mão direita e o terço médio da perna direita e da perna esquerda, em
razão de choque séptico. O resultado disso foi que ele ficou totalmente
incapacitado para exercer suas funções, pelo resto de sua vida.
O
triste episódio foi lembrado pelo desembargador Marcelo Lamego
Pertence, ao analisar o recurso apresentado pelo jovem. Após ingressar
com ação na Justiça do Trabalho, o adolescente conseguiu obter o
reconhecimento da relação de emprego com a farmácia e do direito a
receber diversas verbas contratuais, além de indenizações por danos
materiais (com determinação, inclusive, de pagamento de pensão mensal
vitalícia) e também por danos morais e estéticos. A culpa dos donos da
farmácia ficou evidente, principalmente por se tratar de menor de idade.
Mas na hora de receber, o jovem não teve sucesso. Já na fase de
execução, a solução encontrada foi pedir a penhora sobre vencimentos da
sócia da farmácia, servidora pública do Município de Pains.
No
entanto, a pretensão foi indeferida pelo juiz de 1º Grau, com
fundamento no artigo 649, IV, do CPC. Este dispositivo, com a redação
dada pela Lei nº 11.382/2006, prevê que são absolutamente impenhoráveis
os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de
aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por
liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua
família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de
profissional liberal. Na oportunidade, o magistrado de 1º Grau explicou
que a única exceção autorizada pela lei (parágrafo 2º do artigo 649 do
CPC) é a penhora para pagamento de prestação alimentícia, o que entendia
não ser o caso.
Ao
apreciar o processo, o relator do recurso chegou à conclusão totalmente
diversa. Considerando as peculiaridades do caso concreto e a partir de
minuciosa análise do ordenamento jurídico vigente, ele entendeu que, em
determinadas situações, é possível, sim, penhorar percentual as verbas
previstas no inciso artigo 649, inciso IV, do CPC. Para tanto, o
razoável para manutenção do devedor deve ser respeitado, cumprindo a
finalidade do dispositivo legal. No caso específico do processo, o
desembargador entendeu que a penhora sobre 20% dos rendimentos da
devedora não seria capaz de inviabilizar o sustento dela.
O
relator baseou sua decisão no Enunciado 70 aprovado na 1ª Jornada de
Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho (23/11/2007), cujo
conteúdo é o seguinte: EXECUÇÃO. PENHORA DE RENDIMENTOS DO DEVEDOR.
CRÉDITOS TRABALHISTAS DE NATUREZA ALIMENTAR E PENSÕES POR MORTE OU
INVALIDEZ DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS. POSSIBILIDADE. Tendo em vista a natureza alimentar dos
créditos trabalhistas e da pensão por morte ou invalidez decorrente de
acidente do trabalho (CF, art. 100, § 1º-A), o disposto no art. 649,
inciso IV, do CPC deve ser aplicado de forma relativizada, observados o
princípio da proporcionalidade e as peculiaridades do caso concreto.
Admite-se, assim, a penhora dos rendimentos do executado em percentual
que não inviabilize o seu sustento..
No
voto, foram registrados entendimentos de doutrina e de jurisprudências
do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª
Região, tecendo o magistrado ponderações a respeito da
impenhorabilidade absoluta do salário prevista no artigo 649 do CPC.
Para ele, em casos como o julgado a aplicação do dispositivo deve ser
relativizada. É que, na verdade, ambas as partes buscam proteção de
crédito de natureza alimentar e o juiz deve solucionar a questão em cada
situação. Não há como simplesmente desprezar as circunstâncias do caso
concreto, em benefício exclusivo do devedor. No mais, a penhora em
dinheiro é o meio mais eficaz de solucionar a execução, conforme dispõe o
artigo 655, inciso I, do CPC.
Princípios
da proporcionalidade, razoabilidade, equidade e justiça foram lembrados
na decisão para concluir que a penhora do salário do devedor deve ser
autorizada quando não afetar sua dignidade e de sua família. Esta é a
justificativa da restrição imposta pelo artigo 649, inciso IV, do CPC.
Nessa linha de raciocínio, não se pode permitir que a aplicação da regra
se afaste da finalidade e dos princípios que lhes dão suporte. Se o
sustento do devedor não é inviabilizado, o desembargador não vê problema
em que seja realizada a penhora. Afinal, a dignidade do credor também
deve ser resguardada e a proteção do salário também é garantia do credor
trabalhista. Assim, os instrumentos legais disponíveis devem ser aptos a
dar efetividade ao direito reconhecido ao empregado. Pensar diferente
seria premiar a conduta do devedor.
Forte
na aplicação dos princípios inerentes à proteção do crédito de natureza
trabalhista, que mitiga sobremaneira o da menor onerosidade para o
devedor (art. 620 do CPC) e potencializa o do resultado (art. 612 do
CPC), pela qual a execução se realiza em proveito do credor-empregado,
entendo ser penhorável percentual sobre quaisquer das verbas elencadas
no inciso art. 649, IV, do CPC, desde que observado o razoável para
manutenção própria da devedora, destacou o relator.
O
magistrado registrou, ainda, discordância do entendimento adotado em 1º
Grau no sentido de que o caso dos autos não poderia ser enquadrado como
a prestação alimentícia que permite a penhora de salários. No seu modo
de entender, a própria qualificação feita pelo magistrado na decisão
revela que sim. Ou seja, aquela decorrente de quem tem o dever legal de
prestar o sustento vital de quem não pode fazê-lo por si, quer por laços
de parentesco, quer por obrigação legal. Para o relator, este é o caso
do processo. Ele ponderou que, ainda que haja relação credor/devedor, a
obrigação decorre de responsabilidade da devedora no quadro de
incapacidade total e permanente de um jovem. Total incapacidade e
absoluta dependência, pois o reclamante nunca mais poderá obter o seu
sustento do trabalho, já que se encontra incapacitado para toda a vida.
Esse cenário foi bastante enfatizado pelo relator em sua decisão.
Necessário
se chegar a um ponto em que o crédito possa ser satisfeito, compensando
assim os graves danos ocasionados ao trabalhador que, em tenra idade,
viu-se incapacitado para o desempenho de atividades sociais e
laborativas, sem que se impossibilite a própria subsistência da
executada, foram as ponderações finais do relator. Ele considerou
razoável a penhora sobre 20% dos vencimentos da executada, cujos valores
foram apurados no edital do concurso a que ela se submeteu. O
percentual será revertido em benefício do trabalhador, até o pagamento
total do seu crédito. Conforme observou o julgador, a medida permite o
cumprimento da execução trabalhista, sem implicar na impossibilidade de
subsistência própria da devedora. Portanto, o recurso foi provido nesses
termos. A Turma de julgadores acompanhou o entendimento do relator.
( 0172100-60.2009.5.03.0058 AP )
Fonte: Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região