"P A R E C E R
Miguel Reale
1. O Dr. Mauro Arce, Secretário de
Estado de Energia Elétrica, Recursos Hídricos e Saneamento, submete a meu exame
o texto do Projeto de Lei federal que “institui normas gerais de contratos para
a constituição de consórcios públicos, bem como de contratos de programa para a
prestação de serviços públicos por meio de gestão associada”. Esse Projeto foi enviado, no dia 30 de junho de 2.004, com urgência constitucional, para tramitação preferencial em 45
dias úteis.
Trata-se de medida do mais lato alcance, pois redunda em dar novo sentido à organização federativa do País, que vem sendo
prudentemente elaborada sobretudo após a Constituição
de 1946 até a de 1988.
2. O referido Projeto pretende atender ao disposto no Art. 241 da
Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19,
de 4 de junho de 1998, cujo Art. 24 determina que ele passa a ser o seguinte:
“Art. 241 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão
por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de corporação entre os
entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como
a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens
essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
3. Como se vê, a Constituição não define o que seja o consórcio público, do que se valem os autores de dito Projeto para
considerá-lo “associação pública (sic) formada
por dois ou mais entes da Federação, para a realização de objetivos de
interesse comum” (Art. 2º, I, do Projeto).
Em aditamento, o Art. 5º, Inciso VIII estatui que será exigido
“VIII – o
reconhecimento de que, sendo constituído o consórcio, será ele pessoa jurídica de direito público que integra a administração indireta
de cada um dos entes da Federação associados.” (Grifei).
Por aí se vê que o consórcio público que se pretende estabelecer vem criar,
por vias transversas, uma nova entidade da administração indireta, ao lado da autarquia e da sociedade de economia mista instituída por lei.
Veremos, depois, quais as conseqüências desse dispositivo.
4. De início, quero salientar que é dado ao consórcio público a
característica de entidade associativa dotada de personalidade jurídica de direito
público, o que vem subverter o significado tradicional que a palavra consórcio tem no direito pátrio, significado este que devem ter tido em vista os redatores do Art. 241
supra citado.
Nesse sentido, lembro o que dispõe a Lei de Sociedades
Anônimas (Lei nº 6.404, de 15/12/1976, atualizada pela Lei nº 10.303, de
31/10/2001) cujo art. 278 estabelece que o consórcio é constituído “para
executar determinado empreendimento”, não tendo
personalidade jurídica (§ 1º).
Donde se conclui que o Projeto examinado dá ao
Consórcio público uma configuração jurídica que conflita com os reais objetivos visados
pelo Art. 241, transformando-o em entidade da administração indireta, com o
mais amplo espectro de encargos e competências.
A meu ver, ele extrapola do preceito constitucional, apresentado como
seu fundamento e razão de ser, em pleno contraste com a natureza de nosso
federalismo.
É pacífico, hoje em dia, que a estrutura de nossa Federação é trina,
sendo disciplinada na própria Constituição a competência territorial de cada
ente federativo, cada um deles com distintas áreas de poder privativo ou de competência comum.
Daí resultam todos os dispositivos constitucionais sobre o que cabe a
cada unidade federativa, competindo à União, aos Estados e ao Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre a matéria de que trata o Art. 24, indicando-se,
a seguir, o que compete, respectivamente, à União, aos Estados e Municípios. É
importante, na presente Consulta, salientar o que determina o § 1º do Art. 24,
a saber:
“No âmbito da
legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a
estabelecer normas gerais.”
Em conflito com esse dispositivo, a pretexto de “gestão associada”,
o Projeto em apreço disciplina miudamente todos os assuntos, inclusive de
competência comum dos três entes federativos.
5. Nessa ordem de idéias, cumpre advertir que sempre a pretexto de
“prestação de serviços públicos por meio de gestão associada”, a União, como
parceira do “consórcio público”, pode interferir em
questões locais dos Estados e Municípios, até mesmo em
assuntos pertinentes à proteção do meio ambiente (Art. 3º, VI) ou na gestão e
proteção de patrimônio paisagístico ou turístico comum (Inciso IX).
É inegável essa conclusão, pois a União pode participar e atuar como consorciada (Art. 2º do Projeto e seus incisos) compondo o órgão supremo do consórcio público
que é aAssembléia Geral, a qual, consoante Inciso IX do Art. 5º, é
“a instância máxima
do consórcio público, composta exclusivamente pelos Chefes do Poder Executivo dos entes consorciados (....).” (Meu o realce).
Bem se pode imaginar que, em virtude do poder político-financeiro da
União, nessa conjuntura, a bem pouco ficaria reduzida a autonomia dos Estados e Municípios.
Essa intervenção oblíqua na vida administrativa dos Estados e
Municípios, a meu ver, conflita com o disposto, em matéria de intervenção, com os Arts. 34 e 35 da Carta Magna.
6. Por outro lado, o emprego do consórcio público poderá privar os Estados
de sua competência privativa para, mediante
lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações e microregiões, de conformidade com o que institui o § 3º do Art. 25 da Lei Maior.
Nesse sentido, dar-se-ia à União o poder de, por vias transversas, participar da criação das macro e micro-regiões
metropolitanas, praticando atos que não se harmonizam com as normas gerais que ela tem o exclusivo poder-dever de
promulgar no âmbito da legislação concorrente, consoante afirmado supra
(Constituição, Art. 24, § 1º).
Efetivamente, não se compadece com a competência da União a participação
desta em característicos serviços locais dos Estados e Municípios, por meio dos
programados consórcios públicos, os quais vêm, assim, indevidamente, alterar os
limites de competência dos três entes que compõem a Federação.
7. Ponto que merece consideração é a projetada dispensa de licitação estabelecida para as
atividades do consórcio público, não somente no caso de contratos com entidades
públicas (Art. 10, II) mas também na hipótese de contratos de rateio (Arts. 12 e 13) sem que o Projeto
esclareça em que eles consistam, limitando-se a dizer que serão regidos pelo
direito privado.
Essa inexigibilidade de licitações pode ter a maior amplitude, aumentando as hipóteses de sua ocorrência
previstas no Art. 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993. Por aí se tem
idéia da magnitude das atribuições conferidas aos mencionados consórcios.
O essencial é verificar que os mencionados consórcios estão armados do
mais amplo poder, tal como o de promover desapropriações ou instituir
servidões que sejam
consideradas necessárias ao desempenho de suas finalidades, nos termos de anterior declaração de utilidade ou necessidade pública ou de interesse
social. (Art. 10, Inciso II).
Além disso, é conferido ao consórcio
público o poder de cobrar e de arrecadar tarifas e outros preços públicos pela
prestação de serviços, tudo à margem de autorização legal específica (Art. 3º,
§ 2º).
Na realidade, são-lhe atribuídos poderes próprios dos
entes federados, qual seja o de
“outorgar concessão, permissão ou
autorização de obras e serviços públicos mediante autorização
prevista no contrato de consórcio público (...)!
Quem não percebe que o consórcio público é, inconstitucionalmente, equiparado às três Unidades que
compõem a nossa Federação ?
8. Ante tal configuração jurídica, parece-me que o Projeto analisado extrapola, a olhos vistos, do disposto no Art. 241 da Constituição
Federal, ao referir-se este a “consórcios públicos e os convênios de cooperação
entre os entes federados”.
A criação, para tal fim, de uma pessoa jurídica de direito público,
equiparável às autarquias e sociedades de economia mista instituídas por lei,
afigura-se-me inconstitucional.
O Projeto examinado cria, a bem ver, uma associação que vem alterar o
sentido de nosso federalismo, o qual se distingue
pela existência de três entes com competência distintas,
cujo relacionamento recíproco a própria Carta Magna
disciplina, representando os projetados “consórcios públicos” um adendo inadmissível ao que a Constituição dispõe.
9. Não é demais acrescentar que o referido Projeto de Lei, além dos
“consórcios públicos”, cria uma nova figura jurídica, a do “contrato de
programa”, ao qual destina o Título III.
Isto não obstante, não se pode dizer que tenha sido dada clara definição do que seja “contrato de programa”, limitando-se o
Projeto a estabelecer, genericamente, que ele será
“celebrado por dispensa de
licitação (note-se) e deverá
atender a todas as exigências de planejamento, regulação e fiscalização
fixadas, ou que venham a ser fixadas pelo titular dos serviços ou pelo consórcio público.
Dessarte, o chamado “contrato de programa” é o que os titulares de
serviços (?) e os consórcios públicos dizem que seja, sem se ter um conceito
claro e preciso, como é próprio dos textos legislativos.
De um certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que se trata de um novo tipo de contrato público, à margem da já citada Lei 8.666/93 que “institui normas
para licitação e contratos da Administração Pública e dá outras providências”.
Por mais que se procure, não se encontra qualquer vinculação entre essa
proposta de “contrato de programa” e o Art. 241 da Carta Magna que seria seu
supedâneo.
O certo é que essa nova figura jurídica vem criar um status de incerteza, não se sabendo direito se
ela se insere entre os contratos disciplinados pela mencionada Lei nº 8.666/93,
ou se a substitui em parte.
Reza o Art. 28 que os contratos de programa deverão atender à legislação
de concessões e permissões de serviços públicos, mas os preceitos relativos à inexigibilidade de licitação demonstram que isso
não acontece.
10. Finalmente, cumpre salientar o erro do
Projeto em pauta no que se refere às associações civis (Arts. 32 e 42 e seus parágrafos).
Fica patente a ignorância da radical alteração introduzida pelo novo
Código Civil, ao distinguir entre sociedade e
associação, aquela sempre de conteúdo e fim econômico, e esta não.
Por tal razão, as associações civis são disciplinadas em Capítulo
especial, no qual é estatuído, no Art. 53, que
“constituem-se as associações pela união de pessoas
que se organizam para fins não econômicos” (Grifei).
Por isso, uma associação civil não poderia jamais ser convertida em um
“consórcio público”, nem poderia este ser disciplinado “pela legislação que
rege as associações civis” (Art. 32 do Projeto).
EM CONCLUSÃO, o Projeto de Lei, que pretende instituir “consórcios públicos”,
fê-lo extrapolando do Art. 241 da Constituição federal, visto criar uma
instituição jurídica anômala, à qual é conferida competência equiparável à dos
três entes que compõem nosso sistema federativo, o que conflita com
as diretrizes de nossa Carta Magna.
Essa proposta legislativa viria constituir um poderoso instrumento de
ação em conflito, como vimos, com várias disposições constitucionais,
representando uma solução que manifestamente não se harmoniza com a tradição de
nosso ordenamento jurídico.
É o meu parecer.
Miguel Reale”
http://www.miguelreale.com.br/.
Acesso: 16/8/2013
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