“Linguagem jurídica
no divã
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz
de Direito
Recentemente, no final do expediente, entrou uma
senhora no gabinete dizendo que queria ver o “acordeão” do processo. Disse para
ela esperar e solicitei o processo do cartório. Como já desconfiava, a senhora
não queria um acordeão, mas informações sobre o “acórdão”, o nome dado à
decisão colegiada dos tribunais (aqui, no baixo clero da hierarquia judicial, chama-se
sentença), que foi juntado naquele processo.
Alguns dias depois, recebi uma ordem judicial de
outra comarca, cuja finalidade consistia em determinar o cumprimento de um
mandado de prisão, com a seguinte pérola ao final do despacho: “Preso, encaminhe-se
o devedor ao ergástulo público”. Ergástulo é o outro nome de “cadeia”. Deu
vontade de soltar o sujeito, para o bem do mundo do direito...
Nós, os profissionais do direito, sofremos de uma
incapacidade, que vem desde a faculdade, de nos comunicarmos com o resto do
mundo de maneira clara. Vivemos da palavra lida, interpretada e falada, mas
somos incapazes de nos fazermos lidos, interpretados e falados. Dizemos tudo
para nós e nada para os outros, justamente aqueles que são afetados diretamente
por nossas decisões e conselhos.
Mesmo no âmbito jurídico não é diferente: uma vez,
participei de um debate em que não consegui entender as ideias das duas pessoas
que dividiam a mesa comigo. Alguém mais inteligente da plateia perguntou-me se,
entre gregos e troianos, minha posição teórica seria intermediária. Respondi
que não sabia, porque não havia entendido nem o grego e nem o troiano. E,
imediatamente, corrigi-me: como estava “boiando”, minha posição só podia ser a
intermediária mesmo, porque, afinal, o mar Egeu separava ambos os territórios.
E, no lugar da tábua de salvação, agarrava-me a um dicionário...
Várias são as causas dessa linguagem apenas
acessível aos “iniciados”: divisão do Direito em áreas cada vez mais
especializadas, pedantismo bolorento, instrumento de controle social,
tecnicismo exagerado, latinismo retrógrado, vaidade vocabular, manipulação
retórica, violência simbólica erudita e autoritária e, como bem lembrou uma
amiga de longa data, o “adjetivismo”, a mania de acrescentar dois, três ou
quatro qualificativos aos substantivos, os quais, depois de tanta adjetivação,
acabam perdidos no contexto da frase.
Se o leitor acha que já sabe tudo sobre o recurso
dos embargos, em razão do julgamento do mensalão, engana-se. Revendo minhas
velhas anotações de aula sobre o assunto, ali consta que “os embargos têm
natureza multifária (‘multi’ o quê?) e são de espécie anfíbia (será que dormia
na cadeira?), podendo ser classificados em embargos declaratórios, embargos de
divergência, embargos infringentes e embargos infringentes do julgado
(conhecidos também por embargos menores ou embarguinhos)”. De lá para cá, não
houve qualquer perigo de melhora no hábito de adjetivar...
Não estou aqui a defender uma linguagem totalmente
coloquial na comunicação jurídica. Muitos termos técnicos são necessários e
muitas expressões latinas representam um saber perene acumulado, um princípio
já consolidado pelo Direito ou, até hoje, não têm uma tradução fiel para nossa
língua. O habeas corpus, que não é de origem romana, mas inglesa, é
um bom exemplo disso. Etimologicamente, quer dizer, “que tenhas teu corpo”;
para um réu que conheci, tinha um interessante significado: depois de soltá-lo
no final de uma audiência, por ordem do tribunal, ele me agradeceu por ter
recebido o “abre as porta”. Nada como a sabedoria popular...
A preocupação com esse linguajar hermético já
“sensibilizou” até mesmo o legislador. Houve projeto de lei no Congresso
Federal, obrigando os juízes ao emprego de uma linguagem simples, clara e
direta, arquivado posteriormente. Ainda bem, porque a solução do problema não
passa por uma resposta legal, mas por uma mudança cultural.
Poupando o leitor do latinório básico, já se foi o
tempo para um “vetusto vernáculo manejável no âmago dos sodalícios judiciais
que, a partir da peça inaugural, fulminava as súplicas petitórias, insculpindo
um vácuo de reverberação no âmbito de cognoscibilidade dos utentes forenses,
sem que se sobejasse no beneplácito destes”.
É hora de aposentar os substantivos de fraque e
cartola e os adjetivos de luvas e polainas, em prol de uma linguagem acessível
ao entendimento alheio. Em “juridiquês”, malgrado minha reverência ao libelo de
outrem, cuida-se do que especulo. Ou, em português, com respeito à divergência,
é o que penso”.
André Gonçalves Fernandes é juiz de
Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do
IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).
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