“ Ensino
jurídico, mortos e vivos
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz
de Direito
Novamente, irão discutir a situação do ensino
jurídico no Brasil. Prática reiterada desde os debates parlamentares sobre a
criação dos cursos jurídicos (1823-1827), o que demonstra a importância do
Direito para nossa sociedade. Hoje, entretanto, não são precisos muita reunião,
intermináveis debates acalorados nem muito café para ressaltar aquilo que salta
aos olhos de quem vive o mundo acadêmico: uma série de cursos pouco
comprometida com uma formação profissional decente, focados na mera transmissão
do direito oficial sem muita reflexão e pautados pela estrita lógica de
mercado.
Sem prejuízo disso, nesse diagnóstico de
paciente terminal, também assusta a pouca preocupação com uma transmissão
qualitativa de temas de formação fundamental para o estudante, como noções de
ética, antropologia, ciência política, economia, filosofia, história,
psicologia, sociologia e hermenêutica.
Não admira que, quando submetidos à uma avaliação
formal que demande o entrelaçamento de todos esses conteúdos, o estudante
simplesmente fica sem reação intelectual. Parece que o cérebro trava e as mãos
soltam a caneta. Porque foram mãos que, ao longo de um curso inteiro,
empregaram a mesma caneta para a passiva tarefa de copiadores profissionais de
anotações de aula, conduzidas, em regra, pelo monótono discurso do mais do
mesmo.
Com essa postura cômoda em ambas as partes da
relação pedagógica, o prejuízo maior é para o aluno, porque reduz o conteúdo de
sua formação profissional e torna-se um potencial número para as crescentes e
inelásticas estatísticas de reprovação em concursos públicos e em exames para
ingresso na advocacia. Agravado pelo fato de que andam ouvindo muito sertanejo
universitário...
De uns tempos para cá, a história do ensino
jurídico lembra um pouco o que Shakespeare dizia da história geral: um conto de
crimes narrado por um louco. Ou seja, uma narrativa pedagógica de incoerências
e equívocos que afetam a essência do Direito e que, de certa forma, ofuscam sua
beleza e seu valor.
Divagações filosóficas e literárias à parte, há
outra faceta pouco debatida e que pode ser estendida para a formação
profissional em qualquer outro campo do saber. No seio dessa dissonância entre
formação acadêmica e necessidade de pública comprovação de um mínimo de aptidão
profissional, está a questão da importância da profissão para uma pessoa.
A profissão é o meio pelo qual o ser humano se
instala num determinado locus social e, a partir de então,
adquire um ângulo de vista a partir do qual pode acrescentar novas e ricas
realidades ao lugar em que vive, dentro das circunstâncias ali existentes. Por
isso, uma deficiência orgânica nos princípios pedagógicos do ensino de uma área
tão sensível socialmente como o Direito provoca uma espécie de “desemprego
forçado” do bacharel recém-egresso dos bancos acadêmicos.
Esse “desemprego forçado” é um grande atentado
contra a dignidade da pessoa humana, pois impede – no nascedouro de uma longa
perspectiva de vida profissional – que esse ex-estudante possa ser útil
socialmente, ao mesmo tempo em que lhe diz o que efetivamente não é: a lógica
de certa razão instrumental pede-lhe que não se incomode, pois logo lhe será concedido
um polpudo e longevo seguro-desemprego, já que essa pessoa não tem mais nada
para oferecer à sociedade.
Condenar uma pessoa – na flor da existência humana
– à estrita sobrevivência é, no fundo, exilá-la precocemente do mundo dos
homens e relegá-la à “periferia existencial” da realidade, na condensada e
feliz expressão empregada pelo Papa Francisco em seu discurso de posse na
cátedra de Pedro.
Se, quanto ao diagnóstico, predomina certo
consenso, no prognóstico, pairam naturais e saudáveis divergências que serão
objeto de muita crítica. Só espero que, como professor e pesquisador, o
discurso não fique centrado na questão da inegável legitimidade dos
protagonistas da cena, a comunidade acadêmica jurídica, e no louvável
procedimento adotado, inspirado nos valores da transparência e da democracia.
É preciso ir além. Lembrar que esses estudantes têm
direito à uma existência profissional digna, para a qual deve também concorrer
o esforço próprio. Mas, para se empregar algum esforço, é necessário estar refletindo,
isto é, estar “vivo”. Hoje, induzidos, pela pedagogia empregada, à condição de
meros copiadores profissionais, os jovens estudantes são verdadeiros
“mortos-vivos” e, a continuar assim, chegarão à idade adulta, existencialmente,
mais “mortos” do que “vivos”. Com respeito à divergência, é o que penso”.
André Gonçalves Fernandes é juiz de
Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do
IFE-Campinas(agfernandes@tjsp.jus.br).
http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=20141.
Acesso: 4/11/2013
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