“DIREITO COMPARADO
A influência do Código Civil alemão de 1900 (parte 1)
Por Otavio Luiz
Rodrigues Junior: é advogado da União, professor doutor de Direito
Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em
Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no
Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht
(Hamburgo).
Em uma anotação
sobre o Direito Privado Comparado, dois importantes civilistas alemães
analisaram os códigos dos países da América Latina. Sobre o Brasil, Hans Karl
Nipperdey e Ludwig Enneccerus anotaram que o Código Civil de 1916 seria “mais
independente das codificações latino-americanas” (para conhecer melhor esses
dois juristas, leia a coluna Os juristas que
não traíram a História). Esse reconhecimento da qualidade da
cultura jurídico-civilística nacional deu-se na década de 1930, o que o torna
ainda mais valioso, na medida em que nossa codificação mal experimentara 15
anos de vigência.[1]
A influência alemã
na formação do Direito Civil brasileiro é inegável e deita suas raízes em
diferentes momentos de recepção. Os costumes, os institutos e as normas do que
hoje se denomina de Alemanha “entraram” para o Direito português, ainda sob o
domínio do invasor visigótico, no anoitecer violento e trágico do Império
Romano do Ocidente. Posteriormente, houve nova recepção nos tempos medievais do ius
commune. No Brasil Colônia muitos desses elementos foram introduzidos
por efeito da aplicação das leis portuguesas. No século XIX, Teixeira de
Freitas, Coelho Rodrigues e Clóvis Beviláqua contribuíram para essa recepção, o
que se deu pelo acesso ou pelo diálogo com o movimento pandectista, liderado
por Savigny e seus discípulos.
O Código Civil
alemão (Bürgerliches Gesetzbuch — BGB) é o símbolo mais reluzente desse
processo de recepção e de influência da cultura jurídica germânica no Brasil,
embora não seja o único, evidentemente. É (quase) impossível encontrar um
manual, um tratado ou um curso de Direito Civil brasileiro, de algum nível, que
desconheça o BGB ou que não cite seus dispositivos. Assim como
o homem é ele e suas circunstâncias, as codificações entrelaçam-se com suas
circunstâncias históricas e com o momento no qual foram concebidas e aprovadas.
Por ser tão relevante o BGB para o Direito brasileiro, esta
coluna será dedicada ao processo de elaboração desse que foi o último grande
código do século XIX e a contar um pouco da história de seus elaboradores.
O marco inaugural
do processo de codificação do Direito Civil do recém-instituído Reich foi
a alteração do artigo 4o, 13, da Constituição de 1871, por efeito de
uma luta legislativa intensa, que se desdobrou por alguns anos, sob a liderança
de Johann von Miquel (1829-1901) e Eduard Lasker (1829-1884). Essa alteração
ganhou o nome histórico de Lei Miquel-Lasker.[2] Miquel,
um nobre de Hanover, descendente de émigrés (franceses que
emigraram fugindo da Revolução Francesa), foi um dos fundadores da Associação
Nacional Alemã [Deutscher Nationalverein, organização política liberal e
pró-unificação alemã] e, apesar de hanoveriano, não se opôs à anexação de seu
reino pela Prússia. Eduard Lasker, de ascendência judaica, fundador do Nationalliberale
Partei [Partido Nacional Liberal, uma agremiação pró-unidade alemã],
foi o grande líder da reforma constitucional que permitiu a transferência plena
da competência legislativa cível para o governo central. Seu lema era que a
codificação assegurava a liberdade dos indivíduos.
Há todo um contexto
histórico envolvido na elaboração do BGB, que tem como cenário a disputa entre
grupos políticos alemães, especialmente os nacional-liberais (e os liberais-radicais),
os defensores da aristocracia e o fortíssimo Partido do Centro (Deutsche
Zentrumspartei, que durou até 1933), representante dos interesses políticos
dos católicos nos territórios unificados. O Zentrum foi o
grande opositor da nova codificação, com receio da política bismarckiana
conhecida pela expressãoKulturkampf (Luta pela cultura), que
pretendia subtrair o novo Estado à influência da Igreja Católica. Uma
legislação nacional sobre Direito de Família, que não respeitasse as
particularidades dos reinos católicos (Baviera, especialmente) integrantes do
novo Reich, era considerada perigosa pelos partidários do Zentrum.
A vitória da dupla von Miquel e Lasker resultou de uma “fugaz combinação” de
circunstâncias[3],
de difícil repetição, pois uniu forças absolutamente díspares como os
conservadores e os liberais-radicais.
O respeito da
dogmática brasileira pelo BGB não é desacompanhado de referências sobre seu
caráter liberal e pelo aparente esquecimento dos pobres.[4] Essa
crítica é devedora da obra de Anton Menger von Wolfensgrün (1841-1906), um
jurista austro-húngaro que lecionou na Universidade de Viena e ocupou funções
políticas importantes no Governo Real e Imperial. Menger é muito conhecido (e
citado) por seu clássico livro “Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen
Volksklassen. Eine Kritik des Entwurfs eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das
Deutsche Reich” [literalmente, O Direito Civil e as classes populares
despossuídas[5]:
Uma crítica ao projeto de Código Civil para o Reich alemão],
publicada por H. Laupp, de Tübingen, no ano de 1890, que ganhou o título (em
espanhol) “O Direito Civil e os Pobres”, versão que é muito difundida no
Brasil.[6]
Menger, até por sua
origem de classe e sua fidelidade à Monarquia Dual, de quem foi servidor, nunca
se filiou a partidos políticos, nem teve militância política. Seus estudos eram
ligados ao “socialismo jurídico”, embora seu legado intelectual seja até hoje
muito polêmico, até em razão de suas (veementes) críticas ao trabalho de Karl
Marx.[7]
De fato, autores
como Menger e, na Itália, Enrico Cimbali, deram ênfase a uma transformação
social que o ocaso do século XIX começava a deixar entrever e cujo efeito se
revelaria de maneira trágica nas décadas iniciais do século XX, com a Revolução
Russa e a I Guerra Mundial.
O Direito Civil,
por diversas razões, foi o epicentro dessa transformação. Uma passagem de
Enrico Cimbali, tão poética quanto impressiva por sua eloquência, consegue
captar esse estado de coisas:
“Um desejo profundo
de novidade, uma mania febril de reforma em todas as esferas múltiplas da vida,
da sciencia, da arte, oprime e agita violentamente as fibras da sociedade
moderna. Nenhum sistema, nenhuma instituição, nenhum organismo científico,
artístico, social, ainda que tenha o selo e a consagração dos séculos, se
considera como inviolável e sagrado. Tudo cai e se transforma, a nossas vistas,
sob o martelo inexorável da crítica, sob impulso irresistível de novas
necessidades.
Entretanto, como
nau encantada a navegar sobre as águas revoltas do oceano, cheio de cadáveres e
moribundos, o Direito Civil parece inteiramente insensível a todas essas
modificações. Forma coeva a muitas outras, que desapareceram ou se
transformaram, o Direito Civil, tal como nos foi transmitido pelo Direito
Romano, depois de ter resistido ao torvelinho social da Idade Média, só com mui
ligeiras alterações passou para o Direito moderno e parece ainda destinado, tal
como nos veio da antiguidade latina, a dirigir as sociedades futuras”.[8]
Mas, seria
realmente o Código Civil alemão um texto legislativo liberal? Esse pensamento
não contém algumas mistificações e reducionismo histórico censurável? Seria
possível transpor esses questionamentos, por exemplo, para a codificação civil
brasileira de 1916, como fez o recém-doutor pela Universidade Federal de
Pernambuco, Venceslau Tavares Costa Filho?[9]
É precisamente essa
questão da qual se cuidará, em sequência, na próxima coluna, tomando-se por
base um trabalho de Joachim Rückert, que rediscute muitos consensos sobre o
processo de codificação alemã e cuja reprodução se tem dado no Brasil há muito
tempo. Talvez há tempo demais.[10]
[1] ENNECCERUS,
Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de
Derecho Civil. 15. rev. por Hans Carl Nipperdey. Traduccion de la 39. ed.
alemana. 3. ed.Barcelona: Bosch, 1981. p. 108.
[2] REIS,
Carlos David Santos Aarão. A elaboração do BGB : homenagem no centenário do
Código Civil alemão. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n.
130, p. 121-131, abr./jun. 1996. p. 123.
[3] WIEACKER,
Franz. Der Kampf des 19. Jahrhunderts um die Nationalgesetzbücher. In. KASER,
Max et alii (Hrsg). Festschrift für Wilhelm
Felgentraeger: Zum 70. Geburtstag. Göttingen: O. Schwartz, 1969. S.
409-422.
[4] Alguns
exemplos dessa visão do BGB e de sua influência liberal no Brasil: RÊGO, Nelson
Melo de Moraes. Da boa-fé objetiva nas cláusulas gerais de direito do
consumidor e outros estudos consumeristas. Rio de Janeiro : Gen : Forense,
2009. p. 44; OLIVEIRA, Francisco Cardozo.Hermenêutica e tutela da posse e da
propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. seção XIV.
[5] A
tradução italiana prefere “O Direito Civil e o proletariado”.
[6] Há
uma edição argentina (El Derecho Civil y los Pobres. Versión española,
revisada y corregida, de Adilfo G. Posada. Buenos Aires :Atalaya, 1947) e outra
espanhola, com mesmo tradutor, publicada em 1998, pela editora Comares, de
Granada.
[7] MÜLLER,
Eckhart. Menger, Anton. In: Neue Deutsche Biographie (NDB). Band
17, Duncker & Humblot, Berlin 1994. p. 71-74.
[8] CIMBALI,
Enrico. A nova phase do direito civil em suas relações economicas e
sociaes. Porto: Livraria Chardron, 1900. p. 13.
[9] COSTA
FILHO, Venceslau Tavares. Um Código “social” e “impopular”: uma
história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese
de Doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2013.
[10] RÜCKERT,
Joachim. Das Bürgerliche Gesetzbuch - ein Gesetzbuch ohne Chance?Juristenzeitung
(JZ), 2003, S. 749-760.
Otavio Luiz
Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e
doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de
Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales
Privatrecht (Hamburgo).
Revista Consultor
Jurídico, 26 de junho de 2013”
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