“DIREITO COMPARADO
Justiça do Canadá amplia conceito de "discurso do ódio"
Por Otavio Luiz
Rodrigues Junior: é advogado da União, pós-doutor (Universidade de
Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant
des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
O “discurso do
ódio” e o tratamento jurídico que se lhe deve dar é objeto de interesse recente
na dogmática brasileira[1], embora
o marco jurisprudencial sobre o tema seja o famoso Caso Ellwanger, julgado pelo
Supremo Tribunal Federal há quase 10 anos.[2] Siegfried
Ellwanger, nacional brasileiro, fez publicar obras de caráter antissemita e que
negavam a ocorrência do Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Ele
foi denunciado pela prática de apologia ao preconceito e à discriminação dos
judeus (artigo 20 da Lei 7.716/1989, com a redação dada pela Lei
8.081/1990) e surgiu a discussão sobre estar prescrita sua conduta, tese que
seria afastada pela recondução desse tipo penal ao conceito de “crime de
racismo”, o que atrairia as cláusulas de inafiançabilidade e de
imprescritibilidade, ambas constitucionalmente previstas no artigo 5º, inciso
XLII.
O STF, em um dos
mais discutidos julgamentos de sua história, o que se nota pela profusão de
estudos publicados sobre esse aresto, considerou que haveria efetivo delito de
racismo, até em razão de o Brasil ser aderente a “tratados e acordos
multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí
compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências
oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica,
inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são
exemplos a xenofobia, ‘negrofobia’, ‘islamafobia’ e o ‘antissemitismo’”.[3] De
tal forma, “[a] edição e publicação de obras escritas veiculando idéias
antissemitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial
definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos
incontroversos como o Holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e
desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado
conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se
baseiam”.[4]
Para o STF, a
liberdade de expressão não contemplaria, em seu suporte fático, a incitação ao
racismo, o que permitiria concluir que o Tribunal, com base na teoria interna,
haveria reduzido ex ante o arco no qual se dilata esse
direito. As conclusões do STF, embora amplamente apoiadas pela dogmática, foram
criticadas por alguns autores, como Virgílio Afonso da Silva, pela ausência de
rigor metodológico na construção de seus fundamentos. Esse problema da
incoerência argumentativa é notável quando se compara o Caso Ellwanger com a
ADPF 130, na qual se considerou não recepcionada a Lei de Imprensa.
De fato, na ADPF
130, o STF definiu a existência de dois “blocos de direitos”, o primeiro sob a
rubrica das liberdades comunicativas, e o segundo, compreensivo dos direitos da
personalidade (mais especificamente os relativos à imagem, à honra e à vida
privada). No “balanceamento” entre esses dois blocos, que já se encontraria
realizado pela própria Constituição de 1988, as liberdades comunicativas teria
prevalência em seu exercício, ganhando relevo os direitos da personalidade em
uma segunda etapa, quando se discutiria o direito de resposta e a reparação dos
danos eventualmente causados pelo exercício abusivo das mencionadas liberdades.
Nos termos do acórdão: “Daí que, no limite, as relações de imprensa e as
relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência,
no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja,
antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos
e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as
demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo
das primeiras”. Assim, “[o] corpo normativo da Constituição brasileira
sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa,
rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais
encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de
civilização”.[5]
Se os dois acórdãos
pudessem ser compatibilizados, o que é bem complexo em face dos termos
contundentes com que ambos trataram as condutas a eles submetidas, ter-se-ia a
seguinte fórmula: 1) o discurso do ódio seria pré-excluído do suporte fático
das liberdades comunicativas, o que compreenderia tanto a edição de livros,
quanto a publicação de artigos, a produção de filmes, peças de teatro ou
programas de televisão; 2) as liberdades comunicativas não se limitam ex
ante pelos direitos da personalidade, mas, em caso de violação desses
últimos, os infratores podem ser chamados a responder civilmente ou a assegurar
o direito de resposta às vítimas. Na seção 1 da fórmula, pode-se incluir
a censura a informações ou dados relativos aos incapazes (artigo 155 do Código
de Processo Civil) ou sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,
de dados e das comunicações telefônicas, com as ressalvas do inciso XII do
artigo 5o da Constituição de 1988.
Note-se que essa
formulação é reconhecidamente suscetível de críticas, até pela dificuldade de
se harmonizar os entendimentos exalçados nos dois julgamentos do STF.
Esses problemas de interpretação das liberdades comunicativas, um tema
especialmente polêmico, acentuaram-se com outro julgamento do STF, o também
célebre Caso dos Humoristas. Ao apreciar a constitucionalidade dos incisos
II e III do artigo 45 da Lei no 9.504/1997, o Tribunal decidiu
que “programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação
ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de
‘imprensa’, sinônimo perfeito de ‘informação jornalística’ (parágrafo 1º do
artigo 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada
pela Constituição à imprensa”. Em tal ordem de ideias, “[a] liberdade de
imprensa assim abrangentemente livre não é de sofrer constrições em período
eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. Tanto em
período não-eleitoral, portanto, quanto em período de eleições gerais. Se podem
as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e
veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos
políticos, pré-candidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no
período eleitoral”.[6]
Nos debates, por
ocasião do julgamento da ADI 4.451, destacou-se que a atividade humorística tem
como nota essencial a exposição das pessoas (sejam elas candidatos a cargos
eletivos ou não) ao ridículo, a um processo ideológico (não no sentido
político, é claro) de diminuição de suas qualidades e de acentuação de suas
características incômodas ou esteticamente assimétricas. E é nesse ponto que
surge o ponto de conexão com o título desta coluna: os limites entre o
“discurso do ódio” e a liberdade de expressão, a partir de um recente julgado
da Suprema Corte do Canadá. É conveniente resumir essa decisão canadiana,
tomada à unanimidade, que foi publicada em fevereiro de 2013: a) o Código
Penal do Canadá considera criminosa qualquer ato de caráter racista,
homofóbico, antissemitas ou que tenha por fim “deliberadamente promover o
ódio”, de maneira pública, contra grupos identificáveis; b) William Whatcott,
um ativista religioso, vinculado a uma comunidade cristã, distribuiu panfletos
com texto depreciativo aos homossexuais; c) o tribunal provincial de
Saskatchewan condenou William Whatcott sob o fundamento de que esse material
afrontava a dignidade, alimentava o sentimento de ódio e menosprezava os
homossexuais. Ele foi condenado a pagar 17.500 dólares canadenses a título de
reparação.
Houve recurso para
a Suprema Corte do Canadá, que manteve o acórdão do tribunal de Saskatchewan,
por considerar que efetivamente a conduta de William Whatcott se enquadrava no
conceito de “discurso do ódio”. A liberdade de expressão religiosa teria de ser
protegida, mas ao ridicularizar e menosprezar as pessoas, Whatcott foi longe
demais e abusou de seu direito fundamental. A despeito da confirmação do
julgado local, a indenização foi reduzida para 7.500 dólares canadenses.
A decisão da
Suprema Corte do Canadá tem sido objeto de grande polêmica no país. Seus
defensores argumentam que a cultura e os valores canadianos são menos
tolerantes com os abusos da liberdade de expressão (inclusive a religiosa) do
que seus vizinhos norte-americanos. É de se recordar a esse respeito as
posições de Ronald Dworkin sobre o discurso do ódio: a) não se deve proibir o
discurso do ódio de maneira a priori: é necessário que ele seja
posto à lume, conhecido e submetido ao crivo social, até para que sofra a
indispensável crítica; b) os eventuais abusos cometidos nessa manifestação da
liberdade comunicativa implicarão a responsabilidade do infrator.[7] Essa
visão dworkiniana é bastante simétrica aos fundamentos do STF na ADPF 130,
embora ali se tenha discutido as liberdades comunicativas e não o discurso do
ódio. Mas, se o “modelo” da ADPF 130 prevalecer (primazia da liberdade de
expressão e submissão aos efeitos cíveis por seus excessos) em casos de
discurso do ódio, ter-se-ia uma nítida contradição com as conclusões do recente
julgado da Suprema Corte do Canadá.
Do exame de todas
essas decisões sobrelevam duas consequências: a) é necessário que os estudos (e
os julgados) envolvendo os conflitos entre a liberdade de expressão e a
preservação da intimidade ou da dignidade de pessoas ou de grupos desenvolvam
pressupostos metodológicos coerentes. Muita vez, a decisão — como se deu no
Caso Ellwanger — é adequada em seus fins, mas cria um sério custo argumentativo
para o próprio Tribunal e uma pletora de efeitos inesperados para outras
situações, como se pode notar ao se inserir um elemento mais complexo na
equação, ao exemplo da liberdade religiosa; b) o Brasil precisa definir se
adota o caminho norte-americano ou a via de pré-exclusões do suporte fático da
liberdade de expressão. Há diversas proposições legislativas em andamento no
Congresso Nacional sobre esse difícil equilíbrio entre direitos fundamentais. E
é muito conveniente que a doutrina — tantas vezes focada em discussões
retóricas ou populistas — forneça um referencial teórico útil para esse
importante debate sob pena de ser esquecida porque irrelevante, como tantas
vezes há conclamado Lenio Luiz Streck em suas excelentes colunas”.
[1] MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade
de expressão e discurso do ódio : racismo, discriminação, preconceito,
pornografia, financiamento público das atividades artísticas das campanhas
eleitorais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009; POTIGUAR, Alex. Liberdade
de expressão e o discurso do ódio : a luta pelo reconhecimento da
igualdade como direito à
diferença.
Brasília : Consulex, 2012; BOTELHO, Marcos César. Liberdade religiosa,
homossexualismo e discurso do ódio. Argumenta : revista
do curso de mestrado em ciência jurídica da Fundinopi, n. 16, p. 283-301,
jan./jul. 2012.
[2] STF. HC 82424, Relator Min. Moreira
Alves, Relator p/ Acórdão: Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado
em 17/09/2003, DJ 19-03-2004.
[5] STF. ADPF 130, Relator Min. Carlos
Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 6-11-2009.
[6] STF. ADI 4451 MC-REF, Relator Min.
Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 02/09/2010, publicado em 1o-7-2011.
[7] DWORKIN, Ronald. A democracia e os direitos
do homem. In: DARNTON, Robert e DUHAMEL, Olivier. (Orgs). Democracia.
Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 160-161.
Otavio Luiz
Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade
de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri
Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da
Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor
Jurídico, 1º de maio de 2013
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