“Corte Europeia amplia vedação à discriminação religiosa
Por Otavio Luiz
Rodrigues Junior : é advogado da União, pós-doutor (Universidade de
Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant
des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Nadia Eweida é
cristã copta, súdita britânica e ex-empregada da companhia aérea British
Airways. A empresa possuía um código interno para seus empregados, que
proibia o uso de adereços alheios ao uniforme. Ela usava um cordão com um
crucifixo e isso foi considerado irregular pela British Airways,
que a licenciou sem vencimentos após a recusa de Nadia Eweida em retirar o
símbolo de sua fé religiosa ou de se transferir para uma atividade interna.
Em 2006, a
empregada da companhia aérea foi aos tribunais britânicos sob a alegação de
sofrer discriminação religiosa. Na ocasião, como noticiado pela BBC, o
porta-voz da Diocese de Bath e Wells declarou que a British Airwaysusava
de dois pesos e duas medidas: para os empregados não-cristãos, que ostentavam
turbantes ou véus, por razões religiosas, havia tolerância, mas, quanto aos
cristãos, a empresa britânica era hostil à demonstração pública de sua fé.
Quando a disputa veio a público, alguns parlamentares britânicos acusaram a
empresa de ser contrária aos cristãos ou ainda inflexível demais em suas regras
internas. A British Airways, em sua defesa, afirmou que tão somente
punha em prática sua política de pessoal quanto ao vestuário e que não discriminava
os símbolos cristãos, dado que as restrições se aplicavam a quaisquer joias ou
adereços.[1]
Em 2007, a
companhia aérea mudou sua política interna, mas recusou-se a pagar o período em
que Nadia Eweida esteve licenciada. Com isso, Eweida prosseguiu na disputa e,
em janeiro de 2008, após recusar uma oferta de transação judicial, foi
derrotada em primeiro grau. Nessa decisão, está assentado não ser aquela
instância o lugar adequado para se discutir questões de fé. Na fundamentação, o
juiz da causa destacou a postura da aeroviária de não querer trabalhar no dia
do Natal e de tentar converter um colega homossexual. A questão foi devolvida
ao Employment Appeal Tribunal, que denegou o recurso interposto por
Nadia Eweida. Após outra derrota na Court of Appeal, ela levou o
caso à Suprema Corte, que, em 2010, não conheceu do recurso.
A Corte Europeia de
Direitos Humanos, em janeiro de 2013, como divulgado esta semana pelaConJur —
clique aqui para
ler —, julgou o caso e decidiu que houve violação do artigo 9º da
Convenção Europeia de Direitos Humanos, além disso inverteu o pagamento das
custas e ordenou que Nadia Eweida recebesse indenização de 30 mil euros.
O fundamento da
decisão da Corte Europeia, que foi tomada por um colegiado presidido por David
Thór Björgvinsson, da Islândia, tendo juízes da Polônia, do Reino Unido, da
Finlândia, Bulgária, Montenegro e Malta, se baseia em dois argumentos centrais:[2]
a) A despeito de
Nadia Eweida trabalhar em uma empresa privada, na qual não pode haver
interferência direta do Estado, a Corte Europeia tem a prerrogativa de examinar
se houve a proteção adequada e suficiente, na ordem interna, do direito à livre
manifestação religiosa da recorrente. À semelhança de diversos Estados
europeus, o Reino Unido não dispõe de regulação específica sobre o uso de
adereços religiosos por empregados ou sobre a exposição de símbolos de fé em
locais de trabalho. No entanto, o código interno da British Airways deveria
ter sido apreciado de maneira detalhada pelos tribunais internos da União
Europeia, com o objetivo de aferir sua adequação e sua proporcionalidade. Por
outro lado, a ausência de proteção legislativa explícita no Reino Unido não
poderia dar margem a que a recorrente fosse impedida de exercer seu direito à
manifestação religiosa;
b) No que se refere
ao critério da isonomia, a conduta da empregadora mostrou duas incoerências: i)
admitiu que empregados de outras religiões exibissem adereços ou símbolos de
suas crenças, como turbantes e hijabs, sem que isso afetasse de
maneira prejudicial a imagem corporativa da British Airways; ii) a
posterior revogação dos dispositivos do código de conduta da empresa, a fim de
permitir o uso em lugar visível de peças indicativas da religião do empregado,
é reveladora do quanto a proibição não era relevante para os negócios da
companhia.
Uma vez mais, a
Corte Europeia de Direitos Humanos atuou de maneira incisiva na modificação de
parâmetros interpretativos de tribunais domésticos. Desta vez, no caso
britânico, o acórdão encontrou amplo respaldo político e popular. O
primeiro-ministro do Reino Unido David Cameron declarou que estava “encantado”
com a decisão, sendo certo que “as pessoas não devem sofrer discriminação por
causa de suas crenças religiosas”.[3]
Outra importante
consequência está na adoção do que se poderia chamar de uma “nova vedação à
discriminação indireta”, especialmente na Europa, um continente pouco
acostumado com essa forma extraordinária de proteção dos valores religiosos,
(ainda) muito forte nos Estados Unidos da América. Dito de outro modo, a “nova”
modalidade de “não discriminação indireta” implica um dever (dirigido aos
empregadores) de acomodar o ambiente de trabalho e as regras corporativas (de
caráter pretensamente potestativo) à religião de seus empregados. Não basta
mais protegê-los contra a discriminação religiosa, o que se dá por meio de
regras como: a) é proibido diferenciar, em relação a salário ou promoções,
judeus, católicos, protestantes, islâmicos ou budistas; b) é vedado impor uma
religião ao empregado; c) é ilícito ultrajar a religião dos empregados. Agora,
ter-se-ia uma conduta positiva de assegurar que a manifestação da religiosidade
não venha a ser obstada, por meio da adaptação dos ambientes e das regras
laborais à individualidade religiosa dos integrantes de uma empresa.
É necessário também
compreender o contexto histórico dessa decisão da Corte Europeia. Segundo
estatísticas fiáveis, o Reino Unido será uma nação majoritariamente não cristã
em algumas décadas, se mantido o crescimento vegetativo da população atual. Em
toda a Europa, o processo de descristianização caminha a passos largos. Ano
após ano, o número de cristãos filiados a igrejas tradicionais é declinante,
sendo a Alemanha e a Áustria, antigos bastiões do catolicismo e do protestantismo
tradicional, dois exemplos patentes dessa realidade. O aumento da população
muçulmana, que continua a procriar, diferentemente dos europeus autóctones, é
outro elemento visível dessa transformação. De modo paradoxal, na pátria do
proselitismo cristão, que é (ou que foi) a Europa, parece que os seguidores de
Cristo é que se tornaram dignos de serem protegidos como minoria religiosa. E
note-se que a CEDH, ao decidir o caso Nadia Eweida, invocou o tratamento não
isonômico que a companhia britânica dava a pessoas de outras religiões,
admitidas a usar símbolos de sua fé, enquanto negava aos cristãos idêntica
prerrogativa. Nesse aspecto, ganha evidência o problema do “complexo de culpa
do colonizador”, que parece haver contaminado boa parte das sociedades
europeias. Essa diferenciação de tratamento é bem visível em uma notícia
publicada nos periódicos britânicos sobre a alteração do uniforme de um dos
guardas do Palácio de Buckingham, da religião sikh, para que ele usasse um
turbante e não o tradicional chapéu “pele de urso” — cliqueaqui para
ler. Um gesto belíssimo, diga-se, até em respeito aos milhares de soldados
sikhs que morreram lutando pela bandeira do Império Britânico desde o século
XVIII.
A Corte Europeia de
Direitos Humanos, ao julgar o caso dos crucifixos nas escolas italianas, atuou
precisamente na linha de defesa da acomodação da expressão religiosa, mas
levando em conta os elementos culturais.[4] E, embora não o tenha afirmado
explicitamente, deixou claro o reconhecimento desse novo “status” do
cristianismo como “futura” minoria religiosa.
Essa decisão pode
ter impacto na realidade jurídica brasileira, ao prestigiar o princípio da não
discriminação indireta. A liberdade religiosa é uma decorrência da
autodeterminação (artigo 4º, inciso III, CF/1988). Como já dito alhures, “no
plano subjetivo, a autodeterminação refere-se às escolhas pessoais de caráter
fundamental. O plano da autodeterminação estaria no poder de cada indivíduo de
gerir livremente a sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo
com as suas preferências”.[5]
Desse modo, a
liberdade religiosa é também uma exteriorização do pluralismo, que se radica em
aceitar “a desigualdade de ser, agir, pensar e crer, no que se une à ideia de autodeterminação.[6] O pluralismo exalça-se no plano
da defesa estatal dessa diferença entre os sujeitos. O Estado contemporâneo não
apenas deve aceitar o pluralismo, em sua feição religiosa, como deve assegurar
sua livre expressão e impedir quaisquer atos de caráter persecutório ou de
favorecimento a tais ou quais crenças”.[7]
A não discriminação
indireta, levada a níveis impensáveis para os padrões europeus no acórdão da
CEDH, eventualmente pode ser utilizada em argumentações ligadas ao direito dos
adventistas do sétimo dia — no caso atualmente examinado pelo Supremo Tribunal
Federal, relativo aos concursos públicos. A grande objeção a essa acomodação
dos ambientes e das normas à manifestação religiosa individual está no custo
dessas adaptações e na necessidade de se preservar o caráter igualitário da
sociedade (e do ordenamento), com a abertura de exceções em nome da religião.
Esse argumento foi o cerne da defesa da companhia aérea britânica e de alguns
tribunais domésticos que julgaram o caso de Nadia Eweida. A ruína dessa tese
ocorreu pelo caráter discriminatório em face de outras religiões.
A Europa possui
outra “via” para o tratamento da autodeterminação religiosa, que é o modelo
francês. A ruptura com o cristianismo ocorreu de maneira tragicamente violenta
com a Revolução de 1789, que tentou até mesmo criar uma nova “religião laica”,
com a figura do Ser Supremo. Derrotados os princípios revolucionários em 1815,
com a vitória anglo-prussiana sobre Napoleão Bonaparte em Waterloo, eles
renasceram com a Revolução de 1848 e, outra vez, após a queda de Napoleão III,
derrotado pelos prussianos sob a liderança de Bismarck. Desde então, a
República Francesa é visceralmente laica e, em alguns momentos, anticlerical. O
laicismo francês hoje se depara com o crescimento da religião islâmica dentro
de suas fronteiras e a invocação do direito de se conservarem símbolos — como o
véu e a burca — e práticas religiosas em detrimento das normas em vigor nos
estabelecimentos educacionais e nos ambientes públicos. A Turquia, que se
converteu na primeira nação islâmica do mundo contemporâneo com uma
constituição totalmente laica, está lentamente abandonando esse legado de seu
fundador moderno, Mustafá Kemal, o Ataturk.
A outra via é a
norte-americana, que desenvolveu o princípio da não discriminação religiosa
indireta em toda sua plenitude. A teoria das objeções de consciência e a
cláusula da liberdade religiosa devem (e muito) à Constituição, às decisões e à
doutrina constitucional dos Estados Unidos. Nesse aspecto, é de ser creditada a
forte influência da origem cristã não conformista dos “pais fundadores” daquela
nação da América do Norte.
O Brasil, em breve,
deverá ser chamado a tomar uma posição sobre qual será seu modelo. A retirada
de crucifixos, a supressão da referência a Deus nas cédulas de dinheiro e
algumas objeções de consciência são temas que passaram a ter destaque social
sem precedentes. Um caminho muito interessante para a solução dessas
controvérsias seria a elaboração de normas legais específicas. O Congresso
Nacional ganharia muito com isso e o Poder Judiciário deixaria de arcar com
mais esse ônus advindo da omissão parlamentar.
[1] Disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/london/6052608.stm.
Acesso em 15.1.2013.
[2] Disponível
em: http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra-press/pages/search.aspx?i=003-4221189-5014359#{"itemid":["003-4221189-5014359"]}.
Acesso em 15.1.2013.
[5] RODRIGUES
JUNIOR, Otavio Luiz. Art. 5o, incisos IV ao IX. In. MIRANDA, Jorge;
BONAVIDES, Paulo; AGRA, Walber Moura; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Orgs). Comentários
à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 100.
[6] Sobre a
liberdade religiosa no Brasil e sua evolução histórica: GODOY, Arnaldo Sampaio
de Moraes. A liberdade religiosa nas constituições do Brasil. Revista
de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo: RT, v.9, nº 34, p.
155-167, jan./mar. de 2001.
Otavio Luiz
Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade
de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri
Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da
Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor
Jurídico, 17 de janeiro de 2013”
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