“DIREITO COMPARADO
Conselho francês rege casos de superendividamento
Por Otavio Luiz
Rodrigues Junior: é advogado da União, pós-doutor (Universidade de
Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant
des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Na grave crise
econômica alemã do primeiro período pós-guerra, muitos devedores foram levados
à condição de insolvência. Essa circunstância abriu as portas dos tribunais
para a teoria da alteração da base do negócio jurídico e inaugurou-se um
intenso contencioso no campo da revisão contratual. Essas pretensões eram
fundadas em um problema macroeconômico. O Brasil desenvolveu, ao contrário da
experiência alemã do primeiro quartel do século XX, um filtro jurisprudencial
contra idênticas pretensões. Os tribunais brasileiros, como já se demonstrou
após uma rigorosa pesquisa empírica, consideraram que são eventos
previsíveis — e, portanto, não determinantes de revisão do contrato —
a mudança de padrão monetário (RT634/83); a inflação (RT388/134; RT655/151;
RT659/141; RT 654/157; RT 643/87); a recessão econômica (RT 707/102; RT
697/125); os planos econômicos (RT 788/271); o aumento do déficit público; a
majoração ou a minoração de alíquotas; a variação de taxas cambiais; e as
desvalorizações monetárias.[1]
A chamada “exceção
da ruína econômica pessoal” também foi rejeitada pelos tribunais, no âmbito das
relações jurídico-civilísticas, como causa autorizadora da revisão do contrato.
Desse modo, um mutuário que venha a perder o emprego, não poderia invocar esse
fato superveniente como exclusiva causa liberatória de suas obrigações. O
devedor, na hipótese de execução, seria chamado a responder com seu patrimônio,
até o limite da insolvência civil, com seus procedimentos específicos.
No quadro da
sociedade de consumo, essas hipóteses ganharam um novo colorido e tornaram-se
mais complexas. Consumir deixou de ser uma mera questão de necessidade de
adquirir bens ou de fruição de serviços. O consumidor é alvo de ações
publicitárias permanentes, que o acompanham nos meios de comunicação social, na
máquina de autoatendimento bancário, nas ruas, a qualquer instante de sua vida
— e mesmo para além dela. As solicitações ambientes e a preeminência dos meios
contratuais (ou paracontratuais) eletrônicos aumentaram a exposição dos
indivíduos ao consumo e diminuíram sua capacidade de reflexão sobre se,
o que e quando consumir. Os serviços
financeiros, muita vez denominados engenhosamente de “produtos bancários”,
transmudaram-se em instrumento para outras ações de consumo, quando não se
constituem em fins autônomos, o que seria impensável há algumas décadas. Essa
alteração na hierarquia das relações jurídicas refletiu-se na dinâmica
contratual de uma maneira singular. Tradicionalmente, a compra e venda sempre
foi a mais importante de entre as espécies contratuais típicas, a ponto de
inaugurar, na maioria dos códigos civis, os livros ou títulos dedicados aos
contratos em espécie. Certa doutrina francesa tem defendido que os contratos de
oferta de crédito, em suas mais variegadas modalidades, é que ocupam a posição
originariamente detida pela compra e venda. A compra do automóvel, da casa
própria, de bens de produção e mesmo bens de consumo vulgares, como eletrônicos
e mobília, são adquiridos por meio de financiamentos. Com isso, a operação de
venda é um mero instrumento para a obtenção de lucros com o negócio direta ou
indiretamente celebrado com uma instituição financeira. O produto ou o serviço
é o chamariz para interessar alguém a se manter, por toda a vida, obrigado a
pagar prestações em um contrato cuja natureza, em última análise, é
feneratícia.
A permanente
“necessidade” de comprar e renovar o automóvel, o computador ou os móveis que
guarnecem o lar impõem a contração contínua de mútuos e negócios afins. Há
pessoas que, por toda sua existência, serão mutuários. E é por essa estranha
subversão da hierarquia dos contratos típicos — e das necessidades humanas —
que se tem afirmado que o consumidor, para o ser, depende de sua prévia
condição de mutuário.
Sem reflexão prévia
e com oferta abundante de crédito, com baixos controles de crédito pelos
mutuantes, surge a contemporânea figura do devedor superendividado. Os esquemas
tradicionais do binômio solvência-insolvência, ao menos das relações de
consumo, não mais resolvem os problemas advindos dessa hipercomplexidade. A
crise norte-americana dos créditos subprime é um sintoma desse
novo quadro, cujo âmbito não se limita aos negócios financeiros do mercado
imobiliário. No Reino Unido, é alarmante o número de donas de casa
superendividadas. A permanência no lar por longo tempo e os canais de venda —
de joias, eletrodomésticos e outros artigos, alguns deles supérfluos — geraram
uma combinação explosiva para determinar o superendividamento dessas pessoas.
Como resultado, há a contratação de mútuos para honrar esses compromissos. A
impossibilidade de pagar esses empréstimos rapidamente se revela e novos
negócios feneratícios são celebrados, em geral com a novação de cláusulas para
alongar o perfil das dívidas e aumentar o valor dos juros. Ao cabo de algum
tempo, o pagamento será inviável e os meios executivos conduzirão à insolvência
civil do devedor.
Esse quadro foi
determinante para o exame dogmático — e o posterior tratamento normativo — do
superendividamento.
A questão do
superendividamento — ou sobreendividamento, como se prefere dizer em Portugal —
tem sido analisada na doutrina brasileira desde o pioneiro estudo de José
Reinaldo Lima Lopes, publicado em 1996.[2] Nos últimos vinte anos,
publicaram-se importantes contribuições teóricas sobre esse tema, a despeito de
não existir previsão normativa no direito positivo nacional.[3] O projeto de reforma do Código
de Defesa do Consumidor, em tramitação no Senado Federal, objetiva introduzir o
superendividamento no ordenamento jurídico. Logo, é muito relevante examinar a
experiência do Direito Comparado nesse campo.
O Code de
la Consommation, na República Francesa, cuida da oferta de crédito e dos
contratos imobiliários, com normas protetivas aos consumidores na fase
pré-negocial — coibindo a propaganda abusiva e estabelecendo a plena eficácia
do dever lateral de informação — e sancionando violentamente os abusos, como a
perda do direito à percepção de juros. Há um controle rígido sobre as formas de
cobrança das dívidas, conservando a imagem e a honra do devedor em face de
métodos agressivos utilizados pelos credores. E, na hipótese de endividamento
excessivo ou da superveniência de ruína econômica, é estabelecido um complexo
sistema de renegociações e de tutela patrimonial do devedor.
Os artigos L.331-1
e L.331-2 do Código de Consumo francês preveem a instituição de um conselho de
superendividamento dos devedores, formado por representante do Estado, de órgão
fazendário, do Banco Central, da Associação Francesa de Estabelecimentos de
Crédito e das associações de defesa da família ou dos consumidores. A esse
comitê cabe examinar os casos de superendividamento das pessoas naturais.
No Direito francês,
o superendividamento é caracterizado por dois elementos característicos: a)
impossibilidade manifesta de cumprimento de obrigações não profissionais pelo
devedor; b) a conduta subjetiva de boa-fé do devedor, o que pré-exclui a
contratação maliciosa de dívidas com o intuito de não pagamento. É exemplo
ordinário de má-fé do devedor a situação em que um indivíduo faz compras
sequenciais em lojas de alto luxo, até o limite do cartão de crédito, sabendo
que não as pode pagar e que depois invoca a proteção das regras do Código de
Consumo.
Na hipótese de
execução instaurada, pode-se invocar a exceção de superendividamento. Com isso,
a pedido da comissão de superendividamento, o processo poderá ser suspenso
(artigo L.331-5). Os comissários elaborarão, juntamente com as partes, um plano
de recuperação econômico-financeira do devedor. Com isso o perfil da dívida
será alongado e novas disposições serão pactuadas ao fim de adequar o negócio às
reais condições econômico-financeiras do devedor.
A jurisprudência
francesa deu alguns contornos a esses dispositivos do Código de Consumo, ao
estilo dos seguintes: (a) considera-se ter agido de boa-fé o devedor cujo
superendividamento deu-se por sua imprudência ou imprevidência[4]; (b) a boa-fé do devedor é
presumida, competindo aos credores provar o contrário[5]; (c) a comissão de
superendividamento tem competência para analisar os débitos vencidos e os
vincendos[6].
[2] LOPES, José
Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento : uma problemática
geral. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 129, p. 109-115
jan./mar. 1996.
[3] São exemplos
de estudos monográficos que abordam o tema do superendividamento: RODRIGUES
JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da
vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006; LIMA, Clarissa
Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevick. Superendividamento
aplicado: aspectos doutrinários e experiência jurídica. Rio de Janeiro :
GZ, 2010; SCHMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com base no
superendividamento : do Código de defesa do consumidor ao Código Civil.
Curitiba: Juruá, 2012. Há também interessantes artigos sobre a questão:
MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do
superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo :
proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista
de Direito do Consumidor, n. 55, p. 11-52, jul./set. 2005; TIMM, Luciano
Benetti. O superendividamento e o direito do consumidor. Revista
Magister de direito empresarial, concorrencial e do consumidor, v. 2, n. 8,
p. 40-55, abr./maio 2006; CARPENA, Heloisa. Uma lei para os consumidores
superendividados. Revista de Direito do Consumidor, v. 16, n. 61,
p. 76-89, jan./mar. 2007.
Otavio Luiz
Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade
de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri
Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da
Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor
Jurídico, 13 de fevereiro de 2013”
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