DIREITO À
FAMÍLIA
Cristiano Chaves de Farias
Promotor de Justiça – BAHIA. Mestrando em Ciências da
Família pela UCSal –Universidade Católica do Salvador. Professor do curso de
Direito da UNIFACS – Universidade Salvador (graduação e pós-graduação em Direito
Civil); do curso de Direito das Faculdades Jorge Amado; do JusPODIVM – Centro Preparatório para as carreiras
jurídicas; e da FESMIP – Fundação Escola Superior do MP/BA. Membro do IBDFAM –
Instituto Brasileiro de Direito de Família e do IBDP – Instituto Brasileiro de
Direito Processual.
Sumário: 1. Prolegômenos: uma visão contemporânea do fenômeno
familiar. 2. Transformações sociais
no novo milênio: reflexos na vida familiar 3.
A família na visão jurídica: o tratamento dispensado pela Constituição da República. 4. Miradas sobre os novos paradigmas
da família. 5. Notas conclusivas.
Bibliografia.
“O que
gostaria de conservar na família no terceiro milênio são seus aspectos mais
positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e
o amor. Belo sonho”.
(Michelle Perrot)
1. Prolegômenos: uma visão
contemporânea do fenômeno familiar.
É certo e
incontroverso que o ser humano nasce inserto no seio familiar – estrutura
básica social – de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o
propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal.
Não
existe, efetivamente, outra instituição tão próxima da natureza do homem como a
família. Sociedade simples ou complexa, assente do modo mais imediato em
instintos primordiais, a família nasce espontaneamente pelo simples
desenvolvimento da vida humana[1].
O
impulso natural do instinto sexual, do amor materno, a tendência do homem para
que outros o continuem, dão, sem dúvida, vazão à família de modo imediato.
Não
se olvide, nessa esteira, que na família se sucederão os fatos elementares da
vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. No entanto, além de
atividades de cunho natural, biológico, também é a família o terreno fecundo
para fenômenos culturais, tais como as escolhas profissionais e afetivas, além
da vivência dos problemas e sucessos. Nota-se, assim, que é nesta ambientação
primária que o homem se distingue dos demais animais, pela susceptibilidade de
escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos onde desenvolverá sua
personalidade, na busca da felicidade[2]
– aliás, não só pela fisiologia, como, igualmente, pela psicologia, pode-se
afirmar que o homem nasce para ser feliz.
Extrapola-se,
nesse passo, a tradicional concepção biológica de família para visualizar-se
uma concepção mais ampla. Neste sentido, “a família deixa de ser um fenômeno
natural, assumindo antes um caráter de fenômeno cultural”, na lição precisa do
mestre CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA[3].
Disso
não discrepa RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, para quem “somente após a passagem do
homem da natureza para a cultura que se torna possível estruturar a família.
Esta, como já se demonstrou, é uma estrutura psíquica e que possibilita ao ser
humano estabelecer-se como sujeito e desenvolver relações na polis”[4].
Ora, sem
dúvida, a família traz consigo uma dimensão biológica, espiritual e social,
afigurando-se mister, por conseguinte, sua compreensão a partir de uma feição
ampla, considerando suas idiossincrasias e peculiaridades, o que exige a
participação de diferentes ramos do conhecimento, tais como a sociologia, a
antropologia, a filosofia, a teologia, a biologia (e, por igual, da
biotecnologia e a bioética) e, ainda, da ciência do direito. Tentar
compreendê-la de forma sectária, isolando a compreensão em alguma das ciências,
é enxergá-la de forma míope, deturpada de sua verdadeira feição.
Nesse
caminho, sobreleva apontar dois motivos essenciais para a formação do núcleo
familiar na sociedade, dos quais um é, antes, o fim imediato visado pelo outro:
o desenvolvimento da personalidade humana e a concretização do projeto de
felicidade. A família, pois, não se localiza dentro de um conjunto de muros ou
num campo, mas em atitudes mentais, no terreno fecundo da cultura.
2. Transformações sociais no novo
milênio: reflexos na vida familiar.
Entre
as incontáveis mudanças que se dão no mundo contemporâneo, nenhuma é mais
importante, nem sentida de forma tão intensa, quanto aquelas que se desenvolvem
nas vidas pessoais dos seres humanos (na sexualidade, no casamento, nas formas
de expressão de afetividade, etc.)[5].
Com o
mesmo pensar, a psicóloga e terapeuta familiar CRISTINA DE OLIVEIRA ZAMBERLAM
dispara que “nunca antes as coisas haviam mudado tão rapidamente para uma parte
tão grande da humanidade. Tudo é afetado: arte, ciência, religião, moralidade,
educação, política, economia, vida familiar, até mesmo os aspectos mais íntimos
da vida – nada escapa”[6].
A
pluralidade, dinâmica e complexidade dos movimentos sociais (multifacetários)
contemporâneos trazem consigo, por óbvio, a necessidade de renovação dos
modelos familiares até então existentes. Os casamentos, divórcios,
recasamentos, adoções, inseminações artificiais, fertilização in vitro, clonagem, etc., impõem
especulações sobre o surgimento de novos status
familiares, novos papéis, novas relações sociais, jurídicas e afetivas.
Haveria
um processo de normatização social dessas novas relações familiares? A
resposta, forte na Profa. ELISABETE DÓRIA BILAC, é no sentido de que é
“necessário revisitar os papéis sociais e o parentesco, incorporando, porém,
nesta revisitação, a perspectiva das relações de gênero... É preciso um reexame
dos papéis sexuais na família que incorpore, também, sentimentos, vivências e
percepções masculinas”[7].
Fácil
perceber, destarte, que das múltiplas modificações sociais perpetradas pelas
descobertas científicas, pelo avanço tecnológico, pela biotecnologia, etc.,
decorrem, naturalmente, alterações nas concepções jurídico-sociais vigentes no
sistema, deixando uma passagem aberta para outra dimensão, na qual a família
deve ser um elemento de garantia do homem na força de sua propulsão ao futuro.
Nesse
passo, antevisto esse avanço tecnológico, científico e cultural, dele decorre,
inexoravelmente, a eliminação de
fronteiras arquitetadas pelo sistema jurídico-social clássico, abrindo
espaço para uma família contemporânea,
susceptível às influências da nova sociedade, que traz consigo necessidades
universais, independentemente de línguas ou territórios.
Impõe-se,
pois, necessariamente traçar novo eixo fundamental para a família, não apenas
consentâneo com a pós-modernidade, mas, igualmente, afinado com os ideais de
coerência filosófica da vida humana.
A transição
da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a
promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova
feição, agora fundada no afeto e no amor. Seu novo balizamento evidencia um
espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem.
3. A família
na visão jurídica: o tratamento dispensado pela Constituição da República.
O Código Civil de 1916, considerados
os valores predominantes naquela época, afirmava a família como unidade de produção, pela qual se
buscava a soma de patrimônio e sua posterior transmissão à prole.
Naquele ambiente familiar –
hierarquizado, patriarcal, matrimonializado, impessoal e, necessariamente,
heterossexual – os interesses individuais cediam espaço à manutenção do vínculo
conjugal, pois a desestruturação familiar significava, em última análise, a
desestruturação da própria sociedade. Sacrificava-se a felicidade pessoal em
nome da manutenção da “família estatal”, ainda que com prejuízo à formação das
crianças e adolescentes e da violação da dignidade dos cônjuges.
O outono
daquela estruturação clássica da família era evidente. Com as mudanças sociais
e todo avanço da contemporaneidade, a família passou a ser encarada com nova
feição.
Sem
dúvida, hoje a família é núcleo descentralizado, igualitário, democrático e,
não necessariamente heterossexual. Trata-se de entidade de afeto e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal,
voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma
legal regulamentador a Constituição da República de 1988.
Invocando
as sempre esclarecedoras lições do genial GUSTAVO TEPEDINO, “verifica-se, do
exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela
constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas
não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como
instituição, unidade de produção e reprodução de valores culturais, éticos,
religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada, à
dignidade de seus membros”[8].
Ora, elegendo como princípio
fundamental a dignidade da pessoa humana, de forma revolucionária, a Lex Fundamentallis alargou o conceito de
família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros e
descendentes, sejam estes fruto de casamento ou não.
Deste modo, a entidade familiar deve,
efetivamente, promover a dignidade e a realização da personalidade de seus
membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce
fundamental para o alcance da felicidade.
De fato, o legislador constituinte
apenas normatizou o que já representava a realidade de milhares de famílias
brasileiras, reconhecendo que a família é um fato natural e o casamento uma
solenidade, uma convenção social, adaptando, assim, o Direito aos anseios e
necessidades da sociedade. Assim, passou a receber proteção estatal, como reza
o art. 226, da Constituição Federal, a família originada através do casamento,
bem como a decorrente de união estável e, ainda, a família monoparental, isto
é, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
O ponto nodal da questão sobre
entidades familiares está na enumeração do artigo 226. Seria ela exemplicativa
(numerus apertus) ou se trata de rol
taxativo (numerus clausus)?
Antes de penetrar efetivamente na
seara da questão proposta, é mister, de antemão, esclarecer a importância do
preâmbulo no texto constitucional. É ele um compromisso antecipado e solene,
que junto com os princípios fundamentais, formam as cláusulas pétreas da
Constituição. A Magna Charta
estabelece em seu preâmbulo que instituído o Estado Democrático, este
destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de um
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Fica claro, portanto, que a
interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios da
liberdade e igualdade, e despida de qualquer preconceito, porque tem como “pano
de fundo” o macroprincípio da dignidade
da pessoa humana, assegurado logo pelo art. 1º, III, como princípio
fundamental da República.
Sem dúvida, então, a única conclusão
que atende aos reclamos constitucionais é no sentido de que o rol não – e não
pode ser nunca! – taxativo, por deixar sem proteção inúmeros agrupamentos
familiares não previstos no Texto Constitucional, até mesmo por absoluta
impossibilidade.
Não fosse só isso, ao se observar a
realidade social premente, verificando-se a enorme variedade de arranjos
familiares existentes, apresentaria-se outro questionamento: seria justo que os
modelos familiares não previstos na lei não tenham proteção legal?
Ora, como sinaliza TEPEDINO, “é a
pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico
da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de
direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família,
regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social”[9].
Vale dizer, a exclusão das outras
formas de entidades familiares não está na Constituição, mas na interpretação[10],
porque realizada recoberta de absoluto preconceito.
É o que se infere da simples – e
ainda que perfunctória – leitura do Texto Constitucional. Senão vejamos:
Art.226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes.
[...]
§8º O Estado assegurará a assistência
à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
relações. (grifos nossos).
Procedida a comparação entre o texto
constitucional vigente – que abraça, nitidamente, uma tipicidade aberta – e o
texto das Constituições brasileiras anteriores, nota-se uma transformação
radical, pois durante muito tempo, a família legitimamente protegida somente
poderia ser constituída através da instituição do casamento.
O conceito trazido no caput do artigo 226 é plural e
indeterminado, firmando verdadeira cláusula
geral de inclusão.
É o cotidiano, as necessidades e avanços
sociais, que se encarregam da concretização dos tipos. E, uma vez formados os
núcleos familiares, merecem, igualmente, proteção legal.
Na arguta preleção de PAULO LUIZ
NETTO LÔBO, “não é a família per se
que é constitucionalmente protegida, mas o locus
indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de
vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades
familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que
as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização
do princípio da dignidade humana”[11].
Ademais, sobreleva considerar que a
norma constitucional deve ser interpretada de forma a que se lhe empreste a
maior eficácia possível. Nesse passo, podendo se extrair diferentes sentidos da
leitura de determinado dispositivo constitucional, deve prevalecer o que
determine maior alcance social, conferindo
eficácia ao princípio da dignidade de cada um dos que integram o núcleo
familiar (§8º, do art. 226, CR).
Detecta-se, via de conseqüência, o
equívoco daqueles que excluem a proteção constitucional da família para outros
modelos não previstos exaustivamente no art. 226 da Lex Fundamentallis: trata-se de problema hermenêutico, uma vez que
a interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais conduz,
com mão segura, à idéia da inclusão de outros modelos familiares.
Na
esteira do que aqui se sustenta, nossos Pretórios têm reconhecido que a
presença do caráter afetivo como mola propulsora de algumas relações, a
caracteriza como entidade familiar
(independente da previsão constitucional!), merecendo a proteção do Direito de
Família e determinando, por conseguinte, a competência das varas de Família
para processar e julgar os conflitos delas decorrentes, como afirmado pelo
TJ/RS: “Em se tratando de situações que
envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma
das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais
heterossexuais”. (TJ/RS, Ag.599075496, Ac. 8ªCâm.Cív.,
rel. Des. Breno Moreira
Mussi, j.17.06.1999, RTDC 2:155)
A não
admissibilidade de comunidades afetivas (denominada por alguns, de entidades pára-familiares) como entidade
familiar, albergadas no Direito de Família, sob o frágil argumento de não
estarem explicitamente previstas no art. 226 da CR/88, viola frontalmente o
princípio da dignidade da pessoa humana,
sendo descabida discriminação de qualquer espécie.
Corroborando do entendimento aqui
esposado, proclamou ainda, em outra passagem, a Corte de Justiça gaúcha:
“União homossexual.
Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Contribuição dos parceiros. Meação.
Não se permite mais o
farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e
a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora
permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar,
mesmo em sua natural atividade retardatária.
Nelas remanescem
conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se
sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados
sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade.
Desta forma, o patrimônio
havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união
estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação
provida, em parte, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros”[12].
Nesse
mesmo sentido, em recente julgamento, o Des. RUI PORTANOVA, como revisor do
recurso, disparou, com sensibilidade, que “o juiz deve julgar ainda que não
haja precedentes legais, através da analogia, conforme determina o art. 4º da
Lei de Introdução ao Código Civil. O fato
de tratar-se de pessoas do mesmo sexo não deve modificar o entendimento da
união como estável, pois a Constituição veda qualquer forma de discriminação”[13].
Na medida em que a família deixa de
ser encarada sob a ótica patrimonialista e como núcleo de reprodução e passa a
ser tratada como instrumento para o desenvolvimento da pessoa humana, realçados
seus componentes mais próximos à condição humana, tem-se, sem dúvida, uma democratização da estrutura familiar[14].
Forte em GIDDENS, o que se propugna é
uma verdadeira democracia das emoções da
vida cotidiana: “uma democracia das emoções é exatamente tão importante
quanto a democracia pública para o aperfeiçoamento da qualidade de nossas
vidas”[15].
4. Miradas sobre os novos paradigmas
da família.
São
diversas as inquietantes questões que se apresentam no ambiente familiar
moderno, gerando perplexidades. A sociedade contemporânea aberta, plural,
dinâmica, multifacetária e globalizada não permite mais a afirmação de um
modelo fechado de estruturação familiar.
Não é
crível, nem admissível, que, em meio às múltiplas mudanças axiológicas, ainda
se tente afirmar que existiria um “modelo
oficial” para as organizações familiares, uma espécie de “família estatal”, forjada no interesse
público, em detrimento, muita vez, do desenvolvimento da personalidade de seus
membros e violando suas dignidades.
Como
dispara, com proficiência, o mestre paranaense LUIZ EDSON FACHIN, “numa
sociedade de identidades múltiplas, da fragmentação do corpo no limite entre o
sujeito e o objeto, o reconhecimento da complexidade se abre para a idéia de
reforma como processo incessante de construção e reconstrução. O presente
plural, exemplificado na ausência de modelo jurídico único para as relações
familiares, se coaduna com o respeito à diversidade, e não se fecha em torno da
visão monolítica da unidade”[16].
Vê-se, portanto,
a inadmissibilidade de um sistema familiar fechado, eis que, a um só tempo,
atenta contra a dignidade humana (assegurada constitucionalmente), a realidade
social viva e presente da vida (tornando obsoleta e inócua a norma legal, uma
verdadeira letra morta) e os avanços
da contemporaneidade (que ficariam tolhidos, emoldurados numa ambientação
previamente delimitada).
A entidade familiar deve ser
entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de
afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do texto
constitucional, especialmente do art.1º, III, que preconiza a dignidade da
pessoa humana como princípio vetor da República Federativa do Brasil.
“Mais
que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de convivência”, como
desfecha com sensibilidade aguçada FACHIN.[17]
Nesta linha de intelecção, fácil
detectar que a família da pós-modernidade é forjada em laços de afetividade,
sendo estes sua causa originária e final, com o propósito de servir de motor de
impulsão para a afirmação da dignidade das pessoas de seus componentes.
Prestigia-se a família como instrumento, como “meio para a realização pessoal
de seus membros. Um ideal ainda em construção”, como assinala ROSANA FACHIN[18].
Disso
não discrepa ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA, asseverando, corretamente, que a
família existe “em função de seus componentes e não estes em função daquela,
com valorização e compromisso aos vínculos afetivos”[19].
Enfim, é a valorização definitiva e inescondível da pessoa humana!
Não
se olvide, demais de tudo isso, que a Lex
Legum (no art. 3º, IV) é de clareza solar ao disparar que é objetivo
fundamental da República “promover o bem
de todos”, deixando antever a nítida preocupação com a dignidade da pessoa
humana.
Nesse
diapasão, vale invocar o brilhante voto (embora vencido naquela oportunidade)
do Min. FONTES DE ALENCAR, em julgamento no STJ, acolhendo tais argumentos:
“quanto ao fundamento do acórdão de que ela é solteira e, em conseqüência, não
atingida pela benesse da Lei 8.009/90, ‘data venia’, afasto-o, porque senão
chegaríamos à suprema injustiça. Se o cidadão fosse casado, ainda que mal
casado, faria jus ao benefício; se fosse viúvo, sofrendo a dor da viuvez, não
teria direito ao benefício. Rogo vênia a V. Excia. para não restringir esse conceito de família a tão pouco”[20].
Simples, destarte, afirmar a evolução
da idéia de família-instituição, com
proteção justificada por si mesmo, importando não raro em violação dos
interesses das pessoas nela compreendidas (especialmente os infantes), para o
conceito de família-instrumento do
desenvolvimento da pessoa humana, evitando qualquer interferência que viole
os interesses dos seus membros, tutelada na medida em que promova a dignidade
das pessoas de seus membros, com igualdade substancial e solidariedade entre
eles (arts. 1º e 3º da CF/88).
Na lição precisa do magistral
TEPEDINO, a preocupação central de nosso tempo é com “a pessoa humana, o
desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção
estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito
positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando
as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social”[21].
A
tese aqui esposada já ecoa em nossos Pretórios, acolhida, especialmente, pela
jurisprudência do STJ, em passagens fantásticas como esta:
“A Lei n.8009/90 precisa
ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à
regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações
patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas,
garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição
social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união
estável ou descendência. Não se olvidem os ascendentes. Seja o parentesco
civil, ou natural. Compreende ainda a família substituta. Nessa linha,
conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento.
Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que
seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente
acontece, passam a residir em outras casas. ‘Data venia’, a Lei n.8.009/90 não
está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada,
viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca
garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, ‘data venia’, põe sobre
a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação
teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal”[22].
E
reconheça-se que o ponto de partida para tanto deve estar, sempre, no conceito
de cidadania[23].
Isso porque a cidadania, concebida como elemento essencial, concreto e real,
para servir de centro nevrálgico das mudanças paradigmáticas da sociedade, será
a ponte, o elo de ligação, com o porvir,
com os avanços de todas as naturezas,
com as conquistas do homem que se consolidam. Será a afirmação de uma sociedade
mais real, humana e, por conseguinte, mais justa.
Nenhum
reflexo de novos temas ou avanços sociais poderá colidir ou afrontar a idéia de
cidadania, que se constitui marco
fundamental, pedra angular, dessas novas relações jurídicas, como, inclusive,
ressaltado pelo Art. 1º, inciso III, da Magna
Charta, que estabelece como princípio fundamental da República brasileira a
dignidade da pessoa humana. Esse o
ponto de partida.
Predomina, assim, um modelo familiar eudemonista, afirmando-se a busca da
realização plena do ser humano. Aliás, constata-se, finalmente, que a família é
o locus privilegiado para garantir a
dignidade humana e permitir a realização plena do ser humano.
Eleito, pois, como princípio
fundamental da República, a dignidade da pessoa humana, de forma
revolucionária, veio a se coadunar com a nova feição da família, passando a
garantir proteção de forma igualitária a todos os seus membros, em especial à
criança e ao adolescente, como reza o art. 227 do Texto Magno, a quem incumbe à
família, à sociedade e ao estado conferir proteção integral e prioridade
absoluta[24].
Invocando mais uma vez o escólio,
sempre oportuno, de GUSTAVO TEPEDINO vale alertar para o fato de que a noção
conceitual de família se amolda ao cumprimento de sua função social,
renovando-se sempre como “ponto de referência central do indivíduo na sociedade;
uma espécie de aspiração à solidariedade[25]
e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de
convivência social”[26].
E a radiografia do presente é o
descortino do porvir: as mudanças que se operam – e continuarão a se operar –
no âmbito da família evidenciam que só se justifica a estruturação da sociedade
em núcleos familiares se, e somente se, for encarada como refúgio para a
realização da pessoa humana, como centro
para a implementação de projetos de felicidade pessoal e para a concretização
do amor.
5. Notas conclusivas.
Assim, composta por seres humanos,
decorre, por conseguinte, uma mutabilidade inexorável, apresentando-se sob
tantas e diversas formas, quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou
melhor, de expressar o amor.
Desde que a família deixou de ser o
núcleo econômico e de reprodução para ser espaço de afeto e de amor, surgiram
novas representações sociais.
Enxergar essa nova e grandiosa
realidade foi e continua sendo, o grande mérito de nosso texto constitucional.
Formada por pessoas dotadas de anseios, necessidades e ideais que se alteram,
significativamente, no transcorrer dos tempos, mas com um sentimento comum, a
família enquanto “ninho” deve ser compreendida, como assinala TEPEDINO, “como
ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração
à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por
qualquer outra forma de convivência social.[27]”
A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado,
essencialmente, por laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode
chegar à luz do texto constitucional.
A CF/88 igualou todos os filhos,
independentemente, de sua origem, sejam eles biológicos ou adotivos,
privilegiando, indubitavelmente, o afeto. E o mais importante, o casamento
deixou de ser o modelo oficial de família, havendo clara opção pelo amor,
prestigiando a afetividade.
Veja-se, inclusive, que é a porta
aberta para o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares,
protegidas pela Constituição da República. Aliás, não apenas as uniões
homoafetivas, como todo e qualquer modelo de família forjado pelos indivíduos
no cotidiano plural.
Não se pode perder de vista que o
nosso país se constitui em estado democrático de Direito, sendo proibida toda e
qualquer discriminação em razão de raça, credo religioso, convicções políticas
e sexo. Isso sem contar, com a afirmação necessária do princípio da dignidade de pessoa humana, que restaria
afrontado com uma interpretação restritiva.
Com razão, pois, MARCOS COLARES ao
disparar: “creio que há algo de novo no Direito de Família: a vontade de vencer
os limites ridículos da acomodação intelectual. Porém, tudo será em vão sem a
assunção pela sociedade – enquanto Estado, comunidade acadêmica, organizações
não governamentais – de uma postura responsável em relação à família – lato sensu. Transformando o texto da
Constituição Federal em letra viva.[28]”
Violam o princípio da dignidade da
pessoa humana e os demais preceitos constitucionais qualquer interpretação que
exclua da proteção legal qualquer entidade familiar, seja fundada no casamento,
na união estável, em modelos monoparentais, em uniões homoafetivas e no que
mais o homem escolha para se organizar em núcleos elementares.
Nesta linha de raciocínio, impõe-se
reconhecer todas as formas de entidade familiar como protegidas, tuteladas,
pelo Direito, sob pena de grave violência constitucional.
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SILVA, Marcos Alves da. Do pátrio poder à autoridade parental –
Repensando fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos, Rio de
Janeiro: Renovar, 2002.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.
“Direito de visita dos avós”, in Revista
Trimestral de Direito Civil – RTDC, Rio de Janeiro: Padma, vol.10, abr/jun
de 2002.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil, Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
Acesso: 26/9/2013
[1]
Nesse sentido, LECLERCQ, Jacques, cf. A
família, cit., p.9.
[2] É,
portanto, a inserção definitiva da família no terreno da cultura, desprendendo
de velhos conceitos biológicos. A respeito do tema, CLAUDE LEVY-STRAUSS, com
rara sensibilidade, já percebia o fenômeno de desnaturalização da família, retirando-a do campo biológico, para
encartá-la na seara cultural, a partir da compreensão do parentesco a partir de
um laço social, desatrelado do fato biológico, cf. Les structures élémentaires de la parenté, Paris: Mouton, 1967.
[3]
Cf. Direito Civil – Alguns aspectos de
sua evolução, cit., p.172.
[4]
Cf. Direito de Família: uma abordagem
psicanalítica, cit., p.35.
[5] Com
idêntico raciocínio, ANTHONY GIDDENS, cf. Mundo
em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós, cit., p.61.
[6]
Cf. Os novos paradigmas da família
contemporânea, cit., p.11.
[7]
Cf. “Família: algumas inquietações”, cit., p.36.
[8]
Cf. Temas de Direito Civil, cit.,
p.349.
[9]
Cf. Temas de Direito Civil, cit.,
p.328.
[10]
Nesse sentido, o emérito professor alagoano PAULO LUIZ NETTO LÔBO, ponto de
referência do novo Direito Civil brasileiro, percebe que não há no Texto
Constitucional qualquer distinção limitadora, mas sim na interpretação que lhe
é dada, cf. “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, cit., p.44.
[11]
Cf. “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, cit., p.46.
[12]
TJ/RS, Ac.7ªCâm.Cív., v.u., Ap.Cív. 70001388982 – Porto Alegre, rel. Des. José
Carlos Teixeira Giorgis, j. 14.03.2001, RTDC
5:249.
[13]
TJ/RS, Ap.Cív. 70003016136, Ac.8ª Câm.Cív., rel. Des. Alfredo Guilherme
Englert, j.08.11.2001, DJ 25.07.2002. Com o mesmo raciocínio, TJ/RS, Ap.Cív.
598362655, Ac.8ª Câm.Cív., rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade,
j.01.03.2000, DJ 07.04.2000.
[14]
Com idêntico pensamento, MARCOS ALVES DA SILVA, em excelente monografia
intitulada Do pátrio poder à autoridade
parental – Repensando fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos”,
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.182 e ss..
[15]
Cf. Mundo em descontrole – o que a
globalização está fazendo de nós, cit., p.72.
[16] Apud FACHIN, Rosana Amara Girardi, cf. Em busca da família do novo milênio,
cit., p.147.
[17]
Cf. Elementos críticos de Direito de
Família, cit., p.14.
[18]
Cf. Em busca da família do novo milênio,
cit., p.141.
[19]
Cf. “Direito de visita dos avós”, cit., p.60.
[20] STJ, Ac.4ªT., REsp.67.112-RJ, rel. Min.
Barros Monteiro, j. 29.08.1995, DJU 23.10.1995. A atual posição do STJ é no
sentido de reconhecer a proteção do bem de família legal às pessoas humanas,
independentemente da formação de entidade familiar. Veja-se: “I – O conceito de
entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei n.8.009/90 e 226, §4º, da
CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa
que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da
impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua
residência. II – Recurso especial conhecido e provido.” (STJ, REsp.205.170/SP, Ac.5ªT., rel. Min.
Gílson Dipp, DJU 07.02.2000, RTDC 3:159).
[21]
Cf. Temas de Direito Civil, cit.,
p.326.
[22] STJ, Ac. 6ªT., REsp.182.223-SP,
rel. Min. Luiz
Vicente Cernicchiaro, j. 19.09.1999, DJU 10.05.1999.
[23]
FACHIN, com habitual proficiência, leciona que o “conceito de cidadania pode ser o continente que irá abrigar a dimensão
fortificada da pessoa no plano de seus valores e direitos fundamentais. Não
mais, porém, como um sujeito de direitos virtuais, abstratos ou atomizados para
servir mais à noção de objeto ou mercadoria”, cf. Teoria Crítica do Direito Civil, cit., p.330.
[24]
Assim já se firmou a jurisprudência do STJ: “Guarda de menor. Criança criada
pelos avós maternos. Reconhecida pelas instâncias ordinárias ser melhor para o
menor permanecer na companhia dos avós maternos, com quem sempre viveu e a quem
foi concedida a guarda depois da morte prematura da mãe, não cabe rever a
matéria em recurso especial, seja porque se trata de matéria de fato, seja
porque estão preservados os interesses da criança.” (STJ, Ac. 4ªT., REsp.280.228/PB, rel . Min.
Ruy Rosado de Aguiar, j.28.11.2000, DJU 12.02.2001).
[25]
Veja-se interessante precedente do STJ acolhendo a solidariedade social como princípio norteador das relações familiares:
“A união duradoura entre homem e mulher, com o propósito de estabelecer uma
vida em comum, pode determinar a obrigação de prestar alimentos ao companheiro
necessitado, uma vez que o dever de
solidariedade não decorre exclusivamente do casamento, mas também da
realidade do laço familiar. Precedente da Quarta Turma.” (STJ, Ac.4ªT., REsp.102.819/RJ, rel. Min.
Barros Monteiro, j.23.11.1998, RTDC
1:187)
[26]
Cf. Temas de Direito Civil, cit.,
p.326.
[27]
Cf. Temas de Direito Civil, cit.,
p.326.
[28]
Cf. “O que há de novo em Direito de Família?”, cit., p.46.
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