quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O direito ao delírio - Filosofia e Globalização





“O direito ao delírio[1]
Por Eduardo Galeano

Que tal se delirarmos por um tempinho?
Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia  para imaginar outro mundo possível?
O ar estará limpo de todo veneno que não venha  dos medos humanos e das humanas paixões.
Nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também assistidas pelo televisor.
O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.
Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.
Em nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a cumprir o serviço militar, mas os que queiram cumpri-lo.
Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver.
Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo;  nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram que as fervam vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas.
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo.

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento nem por fortuna se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro.
A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.
Porque a comida e a comunicação  são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas  como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.
A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.
Na Argentina, as loucas da “Praça de Maio” serão um exemplo de saúde mental,
porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória.
A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo.
A Igreja também proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: “Amarás a natureza da qual fazes parte”.
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.
Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados,  porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar.
Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido,  sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo.
Seremos imperfeitos porque  a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses.
Mas neste mundo, neste mundo desajeitado, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.  

[1] É trecho do livro “Patas Arriba”: Buenos Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224.  O trecho do livro traduzido para o português pode ser encontrado na web. Este eu extraí do vídeo citado acima”.



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