“O
direito ao delírio[1]
Por
Eduardo Galeano
Que
tal se delirarmos por um tempinho?
Que
tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia para imaginar outro
mundo possível?
O
ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das
humanas paixões.
Nas
ruas os automóveis serão esmagados pelos cães.
As
pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo
computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também
assistidas pelo televisor.
O
televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado
como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.
Será
incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem
para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o
pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.
Em
nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a cumprir o serviço militar,
mas os que queiram cumpri-lo.
Ninguém
viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver.
Os
economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo; nem chamarão
qualidade de vida a quantidade de coisas.
Os
cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram que as fervam vivas.
Os
historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os
políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas.
A
solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a
sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo.
A
morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento nem por
fortuna se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro.
A
comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.
Porque
a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém
morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
As
crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá
crianças de rua.
As
crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá
crianças ricas.
A
educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la, e a polícia não
será a maldição de quem não pode comprá-la.
A
justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a
juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.
Na
Argentina, as loucas da “Praça de Maio” serão um exemplo de saúde mental,
porque
elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória.
A
Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das Tábuas de Moisés e o sexto
mandamento ordenará festejar o corpo.
A
Igreja também proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: “Amarás a
natureza da qual fazes parte”.
Serão
reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.
Os
desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles
são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito,
muito procurar.
Seremos
compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e
vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde
tenham vivido, sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem
do tempo.
Seremos
imperfeitos porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio
dos deuses.
Mas
neste mundo, neste mundo desajeitado, seremos capazes de viver cada dia como se
fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.
[1] É trecho do livro “Patas Arriba”: Buenos
Aires, dezembro de 1998, ps. 222/224. O trecho do livro traduzido para o
português pode ser encontrado na web. Este eu extraí do vídeo citado acima”.
http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog/2013/09/16/o-direito-de-sonhar/.
Acesso: 25/9/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!