A
teoria do fato consumado é bastante invocada pelas partes, ou trazida
nas teses dos julgados que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ),
para que os ministros decidam, de maneira definitiva, no âmbito
infraconstitucional, sobre a sua aplicação.
Os
magistrados do STJ possuem um pensamento já consolidado a respeito do
tema e afirmam que “a teoria aplica-se apenas em situações
excepcionalíssimas, nas quais a inércia da administração ou a morosidade
do Judiciário deram ensejo a que situações precárias se consolidassem
pelo decurso do tempo”, conforme explica o ministro Castro Meira no RMS
34.189.
Entretanto,
a teoria “visa preservar não só interesses jurídicos, mas interesses
sociais já consolidados, não se aplicando, contudo, em hipóteses
contrárias à lei, principalmente quando amparadas em provimento judicial
de natureza precária” - conforme destacou a ministra Eliana Calmon no
REsp 1.189.485.
Vestibular
O
julgamento do REsp 1.244.991 tratou de um aluno aprovado no vestibular
para o curso de engenharia mecatrônica da Universidade Federal de
Uberlândia, em julho de 2007, que não apresentou certificado de
conclusão do ensino médio no ato da matrícula e por isso não foi aceito.
O
estudante impetrou mandado de segurança contra o ato do reitor, mas o
pedido foi negado no primeiro grau. Apelou então para o Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que o concedeu. O TRF1 afirmou que
o candidato aprovado em regular processo seletivo para ingresso no
ensino superior terá assegurado o direito à matrícula no curso para o
qual concorreu, se antes de a sentença ser proferida, ele apresentar o
certificado de conclusão do nível médio, como ocorreu no caso.
Para
o tribunal federal, a demora do estado para a emissão do certificado de
ensino médio em razão de seus próprios mecanismos não podem prejudicar o
estudante, até porque o aluno comprovou que já havia concluído o ensino
médio em 2007, antes mesmo de o tribunal conceder a segurança.
A
universidade, inconformada com o acórdão do segundo grau, recorreu para
o STJ alegando ofensa à Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. O recurso foi julgado em 2011 pelos
ministros da Segunda Turma, que, sob a relatoria do ministro Mauro
Campbell Marques, decidiram se tratar de uma “situação de fato
consolidada”, visto que o aluno já havia concluído o ensino médio e a
matrícula havia sido deferida pela universidade em 2008, em virtude do
acórdão do TRF1.
Senso de justiça
Em
outro caso que tratou sobre aprovação em vestibular e no qual os
ministros do STJ aplicaram a teoria do fato consumado, o estudante não
havia atingido a idade mínima de 18 anos para a realização do exame
supletivo, com objetivo de concluir o ensino médio (Ag 997.268).
O
recurso foi relatado pelo ministro Herman Benjamin e discutiu
especificamente os artigos 37 e 38 da Lei 9.394. O Tribunal de Justiça
da Bahia (TJBA) considerou que a exigência da idade mínima de 18 anos
para a conclusão do ensino médio pelo exame supletivo era razoável, pois
esta modalidade de exame visa exclusivamente dar oportunidade aos
jovens e adultos atrasados nos estudos, de modo que possam recuperar o
tempo perdido.
Entretanto,
para o TJBA, se o impetrante, mesmo em idade precoce e ainda por
concluir o ensino médio, presta vestibular e obtém sucesso, revela
capacidade e maturidade suficiente para cursá-lo. Se, todavia, para se
matricular no curso superior, necessita do certificado de conclusão de
ensino médio, mas, exatamente porque ainda não completou 18 anos de
idade, é proibido de realizar tais exames supletivos, “não se mostra
razoável e justa a lei que assim o impede de, diferentemente de muitos
outros, prosseguir avançando em seus estudos”.
Para
Benjamin, a tese do tribunal de origem estava em consonância com o
entendimento pacífico do STJ. Segundo o ministro, o TJBA estava correto
ao não reformar a sentença que concedeu a segurança ao estudante, porque
“mediante liminar lhe foi deferido o direito de realizar os exames
supletivos do ensino médio e, durante o tramitar do feito, veio a
completar a idade mínima exigida”.
Por
isso, de acordo com Benjamin, teve de incidir a teoria do fato
consumado, “segundo a qual o retorno ao status quo anterior se mostra
contrário ao senso de justiça quando, além de evidenciada a maturidade e
a capacidade do estudante, todos os requisitos exigidos ao ato foram
cumpridos no curso da demanda”.
Para
o ministro, em hipóteses excepcionais como essa, é preciso fazer uma
ponderação entre a situação fática consolidada e os princípios jurídicos
em questão, para que “o estudante beneficiado com o provimento judicial
favorável não seja prejudicado pela posterior desconstituição da
decisão que lhe conferiu o direito pleiteado inicialmente”.
Situação cristalizada
No
REsp 1.291.328, da relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que
compõe a Primeira Turma, o assunto foi a liminar concedida em primeira
instância que possibilitou que o estudante obtivesse diploma de
conclusão do ensino superior, mesmo sem ter feito o Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (Enade).
O
Enade foi estabelecido pela Lei 10.861/04 e o STJ, de acordo com o
ministro, não tem considerado ilegal quando se condiciona a colação de
grau à realização do exame. Entretanto, nesse caso, o estudante colou
grau por força de uma medida liminar emitida mais de dois anos antes do
julgamento no STJ, obtendo o diploma de conclusão de curso.
Dessa
maneira, para o ministro relator, houve a “cristalização da situação
fática em razão do decurso de tempo entre a colação de grau e os dias
atuais, de maneira que a reversão desse quadro implicaria danos
irreparáveis ao agravado (graduado)”.
A
Fundação Universidade Federal do Rio Grande, inconformada com o acórdão
do STJ, apresentou recurso extraordinário para o Supremo Tribunal
Federal (STF), alegando violação dos artigos 5º, caput e incisos II,
XXXV, XXXVI, e 105 da Constituição Federal.
Restauração danosa
No
mesmo sentido foi julgado o REsp 1.346.893, da relatoria do ministro
Mauro Campbell Marques. O ministro lembrou que a jurisprudência do
Tribunal é no sentido de que o Enade “é obrigatório a todos os
estudantes convocados regularmente para sua realização, não sendo ilegal
o condicionamento da colação de grau e, consequentemente, a obtenção do
diploma de curso superior ao comparecimento ao referido exame”.
Porém,
mais uma vez, a excepcionalidade do caso permitiu que fosse consolidada
a situação de fato, pois a liminar concedida em primeira instância
possibilitou que a estudante obtivesse o diploma de conclusão do curso
de farmácia quase dois anos antes do julgamento do recurso no STJ,
“sendo natural que esteja valendo-se de sua formação para exercer sua
profissão e prover o seu sustento”, afirmou Campbell.
Para
o ministro, houve solidificação de situações fáticas em razão do
decurso de tempo, de maneira que reverter esse quadro implicaria danos
“desnecessários e irreparáveis” à graduada.
Por
isso, segundo o ministro, nesses casos excepcionais, em que a
restauração da estrita legalidade ocasionaria mais danos sociais do que a
manutenção da situação consolidada pelo decurso do tempo, a
jurisprudência do STJ tem-se firmado no sentido de aplicar a teoria do
fato consumado.
Longo lapso temporal
Em
um caso julgado recentemente pela Primeira Seção do STJ, órgão
fracionário formado pelos ministros da Primeira e da Segunda Turma, os
ministros aplicaram a teoria ao caso de uma auditora fiscal do trabalho
que teve sua nomeação tornada sem efeito pelo ministro do Trabalho, após
15 anos de serviço (MS 15.473).
A
servidora pública, após obter êxito no concurso de provas e títulos,
chegou à fase posterior do certame por meio de medida liminar.
Entretanto, quando o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2)
apreciou o mérito do mandado de segurança, a tutela foi revertida. De
acordo com o relator, o caso ficou inerte ao longo dos anos e somente
foi trazido ao cumprimento pela administração quando transcorridos mais
de 15 anos dos atos de nomeação, posse e exercício por parte da
servidora.
Segundo
o ministro Humberto Martins, a Primeira Seção já apreciou outros casos
de servidores na mesma situação, e acordou que seria necessária a
atenção aos princípios da ampla defesa e do contraditório no âmbito dos
processos administrativos que ensejam restrição de direito.
E
nesse caso, o entendimento do colegiado foi o de conceder a segurança
de forma integral, “excepcionalmente, em atenção ao longo lapso temporal
envolvido, além de ponderar que a negativa da ordem ensejaria mais
danos ao servidor e à administração pública do que sua concessão”,
declarou Martins.
Requisitos preenchidos
A
Sexta Turma também tratou do tema servidor público no Recurso Especial
1.121.307. O caso era de um candidato a perito da Polícia Federal que
ocupou a primeira colocação no concurso e, devido a uma tendinite no
ombro e no cotovelo, não pôde participar de uma das modalidades da prova
física no dia destinado pelo edital.
Ele
solicitou a remarcação do teste de flexão em barra fixa, para que
pudesse realizá-lo quando cessasse o período de afastamento médico. A
tutela foi concedida liminarmente e depois confirmada pela sentença e
pelo TRF2.
A
União recorreu ao STJ alegando que o candidato deveria ser eliminado
porque não havia realizado a prova física na data prevista pelo edital.
Quando o recurso foi julgado pela Turma, o candidato - aprovado com nota
máxima em todos os testes e no curso de formação - já exercia o cargo
havia alguns anos.
A
Turma confirmou a tese do tribunal de origem. O relator do recurso,
ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que ficou demonstrado que o
candidato foi devidamente aprovado em todas as fases do concurso, com
resultado homologado e publicado, tomando posse no cargo de perito
criminal da Polícia Federal.
De
acordo com o ministro, a “situação jurídica”, a “boa-fé” e a
“dignidade” do servidor deveriam ser levadas em conta, “merecendo ser
beneficiado” com a teoria do fato consumado.
Redução do dano
Em
outro caso envolvendo servidor público, a União também recorreu para o
STJ. Dessa vez, o assunto foi um exame psicotécnico baseado em critérios
subjetivos, cujo resultado foi irrecorrível, realizado por candidato em
curso de formação de sargentos (REsp 1.310.811).
A
liminar que anulou o exame psicológico foi confirmada pela sentença e
pelo acórdão do TRF1. O candidato concluiu o curso de formação de
sargento e foi promovido à graduação de terceiro sargento pelo critério
de merecimento desde junho de 2002.
Mesmo
com a alegação da União de que o candidato deveria ter se submetido a
novo exame psicológico para se habilitar ao cargo, o ministro Humberto
Martins, relator do caso, afirmou que, diante da comprovada lesão
causada a direito do então candidato, a teoria do fato consumado foi
aplicada “para reduzir o dano experimentado” por ele.
O
ministro considerou que o entendimento do TRF1, de que os diversos
documentos juntados aos autos pelo servidor atendiam aos objetivos
buscados pelo exame psicotécnico anulado, estava amparado na
jurisprudência do STJ. E com isso, negou provimento ao recurso da União.
Peculiaridades fáticas
No
julgamento do REsp 1.223.220, o caso foi de um candidato reprovado no
teste físico do concurso para delegado da Polícia Federal, mantido no
certame por força de liminar e em exercício no cargo havia mais de dez
anos.
Ao
julgar a questão, o TRF2 entendeu que o Judiciário não pode dispensar
candidatos de realizar testes previstos em edital para o ingresso em
cargos públicos, sob pena de “conferir tratamento desigual e
anti-isonômico entre candidatos e afrontar o princípio da separação dos
poderes”.
No
recurso especial, o servidor alegou que a teoria do fato consumado
deveria ser aplicada ao seu caso, pois diante da demora considerável na
prestação jurisdicional, ele já havia atingido a estabilidade e sua
situação já estava consolidada.
Mesmo
com as alegações da União de que a jurisprudência do STJ não aplica a
teoria do fato consumado nas hipóteses em que o candidato permanece no
certame por força de decisão judicial concedida a título precário, para o
relator do recurso, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em virtude das
“peculiaridades fáticas” desse caso, o entendimento deveria ser
“flexibilizado”.
De
acordo com o ministro, que compõe a Primeira Turma, não é recomendável,
do ponto de vista do interesse público, “que uma pessoa que já se
encontra trabalhando desde 2001, sem que haja qualquer indício de que
exerça seu trabalho de maneira insatisfatória, seja abruptamente dali
desalojada e sofra uma drástica modificação na sua situação
profissional, econômica e moral, com consequências irreversíveis”.
Segundo
Maia Filho, nesse caso, o princípio da segurança jurídica deve ser
respeitado, em contraste com a aplicação “pura e simples” do princípio
da legalidade.
Decurso do tempo
O
STJ também possui julgados em que aplica a teoria em casos de direito
civil, especificamente envolvendo família, como na Sentença Estrangeira
Contestada 274. O caso era de adoção internacional. O adotando nasceu em
1990, possui mãe e pai brasileiros, entretanto foi criado apenas pela
mãe desde o nascimento e, a partir de 1994, também pelo esposo da mãe,
de nacionalidade suíça.
O
pai biológico registrou documento no qual concedeu a guarda da criança
para a mãe, outorgou a ela todas as decisões que diziam respeito à vida
do filho e ressaltou que abria mão de qualquer influência na vida dele. A
família residia havia mais de dez anos na Suíça e o cônjuge desejava
adotar o enteado, em virtude do forte vínculo estabelecido ao longo dos
anos entre eles, considerando-se efetivamente pai e filho.
De
acordo com o ministro Castro Meira, relator da sentença estrangeira,
para a adoção de menor que tenha pais biológicos no exercício do poder
familiar, haverá a necessidade do consentimento de ambos, salvo se, por
decisão judicial, forem destituídos desse poder, conforme estabelece o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Para
Meira, o abandono do filho pelo pai autoriza a perda judicial do poder
familiar, nos termos do artigo 1.638, II, do Código Civil. Porém, em
casos como esse em questão, o ministro ressalta que o STJ admite outra
hipótese de dispensa do consentimento dos pais sem prévia destituição do
poder familiar: “Quando for observada situação de fato consolidada no
tempo que seja favorável ao adotando.”
Situação contrária à lei
A
teoria do fato consumado é aplicada pelos ministros da Corte de forma
excepcional, quando observada uma situação consolidada no tempo.
Todavia, conforme explica a ministra Eliana Calmon, deve-se ter o
cuidado de não ser validada uma situação contrária à lei.
A
posição fica bem explicitada no REsp 1.333.588, no qual um médico
graduado pela Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, México,
requereu o reconhecimento de direito adquirido à revalidação automática
do seu diploma no Brasil. Em 2004, por força de liminar, seu pedido foi
concedido. Entretanto, a sentença proferida na ação julgou improcedente o
pedido do médico, que apelou para o Tribunal Regional Federal da 4ª
Região.
O
TRF4, apesar de reconhecer a necessidade de o médico se submeter ao
processo de revalidação, embasou-se em um precedente isolado do STJ e o
dispensou da exigência estabelecida pela Lei 9.394, fundamentando a tese
na aplicação da teoria do fato consumado. Por isso, a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apresentou recurso no STJ contra o
acórdão do TRF4, defendendo a inaplicabilidade da teoria e invocando
ofensa ao artigo 462 do Código de Processo Civil.
Segundo
Eliana Calmon, a posição do STJ sobre o tema é no sentido de que “não
se aplica a teoria do fato consumado em situações amparadas por medida
de natureza precária, como liminar em antecipação do efeito de tutela,
não havendo que se falar em situação consolidada pelo decurso do tempo”.
Para
a ministra, o médico deveria se submeter ao processo de revalidação de
seu diploma estrangeiro “como qualquer interessado em situação análoga”.
Calmon garantiu que a concessão de antecipação de tutela, ainda mais
aquela posteriormente reconhecida como ilegal, “não pode servir de
justificativa para aplicação da teoria do fato consumado, sob pena de se
chancelar situação contrária à lei”.
Por
isso, o entendimento unânime da Segunda Turma, da qual faz parte a
ministra, foi o de considerar descabido falar em direito adquirido no
caso. O colegiado também entendeu que o simples decurso de tempo, desde a
concessão da medida precária, não caracterizou uma hipótese válida de
aplicação da teoria.
Inaplicabilidade
De
acordo com o ministro Humberto Martins, é pacífico no STJ o
entendimento de que a aplicação da teoria do fato consumado em matéria
de concurso público requer o cumprimento dos requisitos legalmente
estabelecidos.
A
posição foi defendida no julgamento do REsp 1.263.232, no qual um
candidato a concurso para oficial bombeiro militar conseguiu, por meio
de liminar, prosseguir nas demais fases do certame, mesmo tendo sido
reprovado no teste de aptidão física.
O
candidato concluiu todas as demais fases do certame, inclusive o Curso
de Formação de Oficiais. Porém, para os demais ministros que compõem a
Segunda Turma, em razão do princípio da isonomia, não haveria como
reconhecer ao candidato uma “segunda chance” (de novo teste físico) sem
que o mesmo tratamento tenha sido reconhecido aos demais candidatos.
Processos
relacionados: RMS 34189, REsp 1189485, REsp 1244991, Ag 997268,
REsp1297328, REsp 1346893, MS 15473, REsp 1121307, REsp 1310811, REsp
1223220, SEC 274, REsp 1333588, REsp 1263232
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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