Inconformado
com a sentença proferida pelo Juízo da 3ª Vara do Trabalho de
Piracicaba, que julgou improcedentes os pedidos de vínculo de emprego e
danos morais, recorreu o espólio da reclamante, uma jovem de 25 anos que
trabalhou durante nove meses como dançarina e acompanhante de clientes
numa conhecida casa noturna de Piracicaba. O recurso do espólio defendeu
a tese de que houve cerceamento de defesa, impossibilitando a
comprovação de que a ingestão de bebida alcoólica era obrigatória
durante o serviço, o que configuraria, segundo o recurso, a culpa da
reclamada no acidente.
A
reclamante morreu de uma queda, ocorrida quando, alcoolizada, tentava
entrar em seu quarto escalando a janela do prédio por meio de um quarto
contíguo. A queda causou graves ferimentos na jovem, que permaneceu por
meses sem movimentos do pescoço para baixo.
O
espólio afirmou, em seu recurso, que a inquirição das testemunhas
comprovaria que a ausência de consumo de bebidas - que eram pagas pelos
clientes e representavam a maior parte dos lucros da reclamada -
acarretava o pagamento de multa por parte das trabalhadoras. Segundo
afirmou, a ausência de consumo acarretava o desconto de R$ 50 do valor a
ser recebido. Por outro lado, caso a cota de consumo diário fosse
atingida, a trabalhadora faria jus a uma gratificação no mesmo valor.
O
Juízo de primeira instância entendeu que não houve vínculo empregatício
porque a atividade desempenhada pela reclamante é a que se conhece
vulgarmente como de meretriz, com exposição do próprio corpo. Nesse
sentido, concluiu que a tarefa exercida é relacionada à sua opção
pessoal de vida, não sendo coagida física nem moralmente, e que não
houve intenção de contratação com subordinação jurídica, nem intenção de
empregar-se como trabalhador assalariado.
Quanto
ao pedido de danos morais, igualmente indeferido, a decisão de 1º grau
afirmou que a culpa pelo acidente foi inteiramente da trabalhadora, uma
vez que ninguém é obrigado a se embriagar, e que não pode a autora
querer transferir a culpa de seu estado de embriaguez à reclamada.
A relatora do acórdão da 4ª Câmara do TRT-15, a
juíza convocada Ana Claudia Torres Vianna, entendeu diferente. Segundo o
acórdão, os elementos dos autos afastam a autonomia e a ausência de
subordinação e onerosidade propaladas pela recorrida. Apesar de a
reclamada ter afirmado que a reclamante era tão somente frequentadora da
casa noturna, declarou que, em razão de horário avançado quando do
encerramento do estabelecimento da reclamada, a reclamante acabava por
dormir nas dependências, bem como alimentava-se, o que, para o
colegiado, denota que ela tinha que permanecer no local até o seu
fechamento e, portanto, não era apenas uma cliente, como quer fazer crer
a recorrida.
O
colegiado entendeu também que soa no mínimo estranho, e contraria as
regras da experiência comum, o fornecimento de hospedagem e alimentação
às ‘frequentadoras de um estabelecimento que tem como atividade o
entretenimento adulto, de forma gratuita, sem benefício algum ao
‘fornecedor, e ressaltou que não ficou claro por qual motivo a
reclamante, que, segundo a defesa, não tinha qualquer relação com a
reclamada, podia usar os seus aposentos para dormir, se alimentar e
ainda, ‘atender clientes que ela ‘angariava de forma autônoma.
Nos
autos, constou que a reclamante recebia cerca de R$ 2.500 mensais e
cumpria jornada de segunda a sexta-feira ou de terça-feira a sábado, das
21h às 3h, e que residia no próprio local, em um quarto nos fundos da
boate, utilizado também para os encontros íntimos com os clientes. A
empresa, por sua vez, negou o vínculo, afirmando não interferir nos
relacionamentos mantidos pela reclamante com os clientes, tampouco na
remuneração por serviços prestados, e ainda se valeu do argumento de que
a profissão de meretriz não é regulamentada, o que, por si só, tornaria
nula a contratação, caso tivesse ocorrido.
A
Câmara concluiu, assim, que a reclamante desempenhava a atividade de
dançarina em benefício da reclamada, com habitualidade e subordinação,
mediante remuneração. No entendimento do colegiado, não se mostra
razoável concluir que a empresa que explora atividade comercial, com o
intuito de lucro, cedesse, a título gratuito, aposentos e alimentação a
pessoas que fossem meras ‘frequentadoras do local.
O
colegiado salientou também que o que a mulher faz ou deixa de fazer com
o seu corpo é direito exclusivo dela, conquistado em apenas alguns
lugares do mundo atual e não sem muitas lutas, mas que fazer uso da
imagem e da presença física da mulher para cobrar ingressos e aumentar o
consumo de bebidas alcoólicas de um estabelecimento constitui
exploração com finalidade comercial. Nesse sentido, concluiu que se há
comércio e existem pessoas trabalhando com habitualidade, subordinação,
pessoalidade e onerosidade, nesse local há vínculo de emprego.
Quanto
à ilicitude alegada pela reclamada em sua defesa, o acórdão lembrou que
ainda que a empregada atuasse apenas como acompanhante dos clientes da
ré, a solução não seria diversa, pois no entendimento da Câmara, o não
reconhecimento da relação empregatícia importaria em odioso
enriquecimento sem causa do empregador, e certamente o efeito seria
reverso: estimularia a exploração do corpo humano e permitiria trabalho
na condição análoga à de escravo. O colegiado observou também o patente
prejuízo ao menor, filho da falecida reclamante, que não contaria sequer
com a proteção previdenciária.
Com
esse raciocínio, o colegiado reformou o julgado originário,
reconhecendo o vínculo empregatício entre as partes no período de 1º de
janeiro de 2008 a
14 de outubro de 2008. Também fixou como remuneração mensal o valor de
R$ 2.500 indicado na inicial, porque cabia à reclamada juntar recibos
que comprovassem os pagamentos ou provar valores diversos, o que ela não
fez. Além disso, determinou a anotação da CTPS, nos termos do artigo 29
da CLT, na função de dançarina.
Quanto
ao acidente de trabalho, a Câmara não concordou com a tese defendida
pela reclamada de que o fato se deu por culpa exclusiva da vítima, que
se embriagou por livre e espontânea vontade e, agindo com total
imprudência, tentou passar de um cômodo a outro do estabelecimento pelo
lado externo do prédio, apenas se segurando nas janelas com as mãos, o
que provocou a queda. O colegiado assentiu, porém, com o que foi narrado
pelo espólio da reclamante, de que esta, em 14 de outubro de 2008, por
volta das 2h15, após trabalhar na casa noturna e ingerir grande
quantidade de bebida alcoólica, dirigiu-se aos seus aposentos, que
ficavam nos fundos do local, na parte superior. Lá chegando, constatou
que a porta estava trancada, razão pela qual se dirigiu ao quarto
vizinho e, ao solicitar a chave para sua ‘amiga de quarto, sentiu-se mal
e, não conseguindo apoiar-se na parede, veio a cair pela janela.
Socorrida pelo Corpo de Bombeiros, a reclamante permaneceu internada até
6 de janeiro de 2009. Em razão da queda, sofreu trauma vertebral e
perdeu todos os movimentos da cabeça para baixo, passando a depender de
terceiros para a realização de todas as atividades da vida cotidiana.
A
empresa negou que houvesse obrigatoriedade de consumo de bebidas
alcoólicas, e quanto à falta de proteção no ambiente de trabalho alegada
pela defesa da reclamante, afirmou que a janela de onde a reclamante
caiu está dentro das normas de segurança e que o acidente só ocorreu
porque ela subiu no parapeito e se pendurou para o lado de fora,
tentando alcançar outra janela, que ficava a cerca de dois metros de
distância, suportando o peso do próprio corpo, já que não havia apoio
para os pés.
O
perito nomeado pelo juízo ouviu a reclamante em sua própria residência,
em face da sua total limitação física, e concluiu que as atividades por
ela exercidas na casa noturna incluíam os serviços de dançarina sensual
e de acompanhante de homens no ambiente da boate, com os quais
realizava programas íntimos, realizando, em média, dois programas
íntimos com clientes diferentes e uma dança sensual por noite. Também
tinha como meta, além dos programas, fazer o estímulo do cliente a
consumir bebidas alcoólicas, geralmente doses de destilados - duas doses
por cliente - e assim, também bebia junto com os clientes.
Para
o perito, a trabalhadora contou que não era muito comum ficar
embriagada, porém, muitas vezes, para realizar suas funções, passava do
limite. No dia do acidente, ela afirmou que estava embriagada, pois
tinha consumido muita bebida alcoólica, porque na semana anterior tinha
ficado doente e não tinha atingido as cotas necessárias.
Na
empresa, o perito conversou com outras trabalhadoras e registrou,
segundo o que contaram, que na atividade consomem bebidas alcoólicas e,
como opção, água de coco. Conforme apurado pela perícia, apesar de
ingerirem bebidas alcoólicas, elas não atingem o estado de embriaguez,
visto que é prejudicial nos ‘negócios (programas íntimos); todavia, na
maior parte das vezes ficam ‘altinhas.
Na
audiência de instrução, foi comunicado o falecimento da reclamante. A
certidão de óbito registrou que a morte foi natural, decorrente de
choque séptico, infecção urinária, bexiga neurogênica, sequela de trauma
medular. Não houve oitiva de testemunhas, indeferida pelo juízo, o qual
concluiu pela culpa exclusiva da autora pelo acidente.
O
acórdão concluiu, assim, que a reclamada assumiu o risco da ocorrência
de qualquer acidente grave em suas dependências, o que era perfeitamente
previsível diante das condições de trabalho a que eram submetidas as
dançarinas. E por falta de outras provas, reputou como suficientes os
relatos das demais trabalhadoras reproduzidos no laudo pericial e
prestados espontaneamente, sem prévio conhecimento de que a perícia
seria realizada naquela data, no sentido de comprovar que a ingestão de
bebidas alcoólicas era prática comum das dançarinas, com o intuito de
elevar a quantia gasta pelos clientes, que eram estimulados a custear
também as doses por elas consumidas.
Diante
de tudo isso, fica evidente que a reclamada não agiu com a devida
cautela, deixando de cumprir os seus deveres quanto à segurança e à
garantia de um meio ambiente do trabalho saudável, afirmou o acórdão,
que fixou o montante indenizatório de danos morais em R$ 100 mil, com
paralelo no valor do salário da autora, pela culpa grave da empresa,
pelo não atendimento das normas de segurança, assim como na sua
capacidade econômica. Também julgou devidos, desde a data do acidente e
até o óbito, lucros cessantes e pensão mensal no importe do salário
fixado, incluindo 13o salário, a título de danos materiais. (Processo
0006700-15.2009.5.15.0137)
Fonte: Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região
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