CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO.RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTORNOS.

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"1.c) A cirurgia plástica de transgenitalização

A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o papel social do gênero correspondente ao seu sexo biológico. É o indivíduo perfeitamente são do ponto de vista físico-funcional, mas que sente ter nascido no corpo errado e passa a viver como alguém pertencente ao outro sexo. Antônio Chaves, com apoio em John Money, define a transexualidade como “um distúrbio na identidade do próprio gênero no qual a pessoa manifesta, com persistente e constante convicção, o desejo de viver como membro do sexo oposto integralmente”.[43] Desperta interesse interdisciplinar, desafiando a medicina, a psicologia e as ciências sociais, na tentativa de melhor compreender a questão.  

No plano do direito, o estudo da transexualidade estimulou a construção dogmática do direito à identidade de gênero ou sexual como um dos atributos da personalidade, identificando-o entre as diversas projeções da pessoa tuteladas sob o fundamento da dignidade humana.[44]  Entende-se por identidade sexual um conjunto de características sexuais que nos fazem diferentes dos demais, aí incluídas a percepção de nossa sexualidade, nossas preferências sexuais, nossos sentimentos e atitudes frente ao sexo e nosso sentimento de pertencimento ao universo masculino ou feminino, com todas as consequências daí derivadas.[45] Em regra, há uma convergência entre a identidade sexual e o sexo biológico. No caso do transexual não é o que ocorre, possibilitando-se a cirurgia de redesignação sexual como alternativa para adequar a conformação estética do órgão genital à identidade de gênero vivenciada pela pessoa.   

Com base no sexo de identificação, denomina-se transexual feminino a pessoa do sexo masculino que se sente pertencer ao gênero feminino e transexual masculino aquele que, nascido mulher, passa a viver e ser identificado como alguém do sexo masculino.[46]

Nesses casos, a cirurgia de mudança de sexo é uma das alternativas oferecidas pela medicina para melhorar a qualidade de vida da pessoa, ao lado dos tratamentos hormonais e de cirurgias de menor extensão, realizadas com o objetivo de mudança dos caracteres sexuais secundários. Na lição de Yolanda B. Moreno, a operação de redesignação sexual consiste no processo cirúrgico a que se submetem homens e mulheres transexuais para harmonizar seu sexo anatômico com sua identidade de gênero. Quando concentrada nos genitais denomina-se cirurgia de reconstrução genital, como a vaginoplastia e a faloplastia, podendo limitar-se à mudança de caracteres sexuais secundários, como a mastectomia e cirurgia facial.[47]

A técnica para a retirada do órgão masculino e a construção do feminino está avançada e apresenta bons resultados. O mesmo não ocorre em relação à cirurgia para a construção do órgão masculino em mulheres, tratando-se de intervenção cirúrgica mais complexa e arriscada, cujos resultados são menos satisfatórios para o paciente.[48] 

Essa discrepância técnica é sentida no Brasil e resulta em regulamentação diferente no tratamento cirúrgico da transexualidade masculina e feminina. Diante do bom resultado “tanto do ponto de vista estético como funcional, das neocolpovulvoplastias nos casos com indicação precisa de transformação do fenótipo masculino para feminino”, o Conselho Federal de Medicina autorizou a cirurgia de transgenitalização como alternativa de tratamento do transexual feminino (CFM Resolução nº 1955/2010, 10º Considerando e art. 1º). No caso do transexual masculino, “Considerando as dificuldades técnicas ainda presentes para a obtenção de bom resultado tanto no aspecto estético como funcional das neofaloplastias, mesmo nos casos com boa indicação de transformação do fenótipo feminino para masculino”, o mesmo Conselho autorizou a realização da cirurgia do tipo neofaloplastia apenas a título experimental (CFM Resolução nº 1955/2010, 11º Considerando e art. 2º). Em razão dessa regulamentação, destarte, a cirurgia plástica para a construção do órgão anatômico masculino, em mulheres, apenas pode ser realizada experimentalmente, no âmbito da pesquisa, obedecendo a regras próprias.

A doutrina classifica a cirurgia plástica para a mudança de sexo como reparadora e não estética, no pressuposto de que é curativa e necessária. Sob esse aspecto, cabe trazer a lição de Elimar Szaniawski, deixando clara a necessidade da intervenção cirúrgica em alguns casos: “somente através desta que o paciente transexual encontrará equilíbrio emocional, livrar-se-á das angústias e aflições e poderá desenvolver, livremente, sua personalidade”.[49] Coerentemente, para o autor, na cirurgia de mudança de sexo, o médico assume uma obrigação de meio, obrigando-se a ser diligente e a empenhar-se o máximo, mas não se responsabilizando pela cura do paciente.[50]

No que toca à solução do conflito de identidade de gênero, não há dúvida dos limites da intervenção cirúrgica, diante do que não se pode mesmo exigir do médico qualquer obrigação de resultado. Por outro lado, em relação às partes anatômicas e visíveis do corpo, vislumbra-se hoje uma oferta de bons resultados estéticos e funcionais na cirurgia para a transformação do fenótipo masculino em feminino, técnica essa que não existia na época do estudo de Elimar Zaniawski. Reconhece-se a razoabilidade da expectativa estética do paciente em relação à aparência e funcionalidade do novo órgão, ao menos para oferecer condições de serenidade de espírito.[51]

Nos termos do 10º Considerando da Resolução CFM nº 1955/2010, os médicos partem da premissa de bons resultados “tanto do ponto de vista estético como funcional” da cirurgia de construção do órgão sexual feminino em homens, o que configura, de algum modo, uma oferta de resultado indicativa da assunção de obrigação de resultado pelo profissional que realiza o procedimento. Presumido que o interesse da pessoa que se submete a uma cirurgia para mudança de sexo é o de aproximar a parte visível de seu corpo a do sexo oposto, de rigor considerar a importância da promessa para aquele se submete à operação e, bem por isso, a vinculação do profissional à obrigação de resultado, o qual passa a ser decisivo para caracterizar o adimplemento da obrigação.

Em síntese, com base nas considerações da doutrina e nas normas do Conselho Federal de Medicina, pode-se afirmar, com Elimar Szaniawsky, que o médico contrai, na cirurgia de transgenitalização, uma obrigação de meio em relação ao conflito psicológico, ligado à identidade de gênero, não se exigindo que a operação ofereça resultados nesse particular. No que toca ao resultado estético e à funcionalidade do novo órgão, diversamente, a obrigação pode ser considerada como de resultado na hipótese de transformação do fenótipo masculino em feminino, diante do estado da técnica e da oferta positiva, criadora de expectativas de que o novo órgão será assemelhado ao do sexo oposto. Nesse panorama, considerando a oferta técnica e o propósito do transexual, de submeter um corpo saudável a uma cirurgia agressiva  com o exclusivo objetivo de se parecer com o outro sexo, vislumbra-se elementos autorizadores para o reconhecimento de uma obrigação de resultado, analogamente ao que ocorre nas demais cirurgias estéticas. Em relação à transformação do fenótipo feminino em masculino, diversamente, a própria autorização da cirurgia apenas em caráter experimental sinaliza a dificuldade de alcançar bons resultados e denota a ausência de oferta positiva. Diante dessa realidade, de limites claros inerentes ao estado da técnica para a transformação do órgão sexual da mulher em órgão masculino, de rigor imputar ao médico uma obrigação de meio não só em relação à cura do conflito identitário, mas também no que toca ao resultado estético e funcional da cirurgia de transgenitalização. Tal limitação de responsabilidade pressupõe o rigoroso cumprimento do dever de informar previamente à realização do procedimento, sob pena da responsabilização do profissional não mais pelo não alcance do resultado, mas sim pelo ilícito que se verifica na omissão da prestação da informação necessária e adequada.[52]

O desenvolvimento do tema da responsabilidade civil do médico na cirurgia de transgenitalização, pela doutrina e jurisprudência, ainda é incipiente, dada a própria novidade do procedimento em si. Interessante anotar que a jurisprudência já reconheceu a existência de obrigações mistas - ao mesmo tempo de meio e de resultado -, embora não no caso específico de transgenitalização, o que poderá vir a ocorrer também por ocasião da avaliação judicial da responsabilidade civil do médico no tratamento cirúrgico da transexualidade.

A título de ilustração, vale a seguinte transcrição: “PROCESSO CIVIL E CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. CIRURGIA DE NATUREZA MISTA – ESTÉTICA E REPARADORA. LIMITES. PETIÇÃO INICIAL. PEDIDO. INTERPRETAÇÃO. LIMITES. 1) (...) 2) Nas cirurgias de natureza mista  - estética e reparadora -, a responsabilidade do médico não pode ser generalizada , devendo ser analisada de forma fracionada, sendo de resultado em relação à sua parcela estética e de meio em relação à sua parcela reparadora. 3) (...) 4) (...) 5) (...) 6) (...)” ( STJ, REsp. 1.097.955 – MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/09/2011)."   

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Fonte: http://www.epm.tjsp.jus.br/Artigo/DireitoCivilProcessualCivil/26270?pagina=1. Acesso: 01/07/2018


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