“A problemática compatibilização do novo CPC com os juizados
especiais
Fernando da Fonseca Gajardoni
Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Doutor e Mestre em Direito
Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Juiz de Direito no Estado
de São Paulo
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988 o Brasil já se
preocupava em disciplinar, de modo diferenciado, o tratamento processual a ser
dado às causas de reduzido valor econômico. Compreendia-se, sob a ótica das
“ondas renovatórias” de Garth/Cappelletti[1], que um modelo de acesso à justiça
dependia, necessariamente, da existência de mecanismos oficiais capazes de
solucionar rapidamente, sem custos ou com custos reduzidos, e sem pretensão de
alcançar a decisão mais justa e perfeita, conflitos banais, ordinários, de
menor complexidade, do cidadão comum.
A Lei 7.244/1984 introduziu no país os Juizados de Pequenas
Causas e, com ele, o ideário de simplificação, facilitação do acesso e, por
conseguinte, de aproximação do jurisdicionado do Poder Judiciário (Justiça
Comunitária). Conforme tantas vezes apontado pelo Prof. Kazuo Watanabe, um dos
mentores da lei, no sistema dos Juizados de Pequenas Causas todo cidadão teria
o direito não só ao seu “day in court”, mas também a um processo, informado
pelos princípios de celeridade, simplificação e oralidade, conduzido e decidido
sem os rapapés e rococós ordinariamente empregados por advogados e juízes na
Justiça Comum.
Nasceu a CF/1988 e com ela o comando do art. 98, I, no
sentido de que deveriam ser criados Juizados Especiais, providos por juízes
togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a
execução de causas cíveis de menor complexidade, mediante procedimento oral e
sumaríssimo, permitindo-se, ainda, o julgamento de recursos por turmas de
juízes de primeiro grau.
Foi o momento para que a lei 7.244/1984 fosse substituída e
aperfeiçoada pela Lei 9.099/95 (Juizado Especial Cível) – depois amplificada
pelas Leis 10.259/2001 (Juizado Especial Federal) e 12.153/2009 (Juizado
Especial da Fazenda Pública) –, que mantendo o mesmo ideário dos Juizados de
Pequenas Causas, apostou em um modelo processual para as causas de menor valor
(40 s.m. no JEC e 60 s.m. no JEF e JEFP) fundado na oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível,
a conciliação. Algo admissível e recomendável em virtude da pequena
complexidade ou do diminuto valor da controvérsia.
Mesmo com os conhecidos problemas estruturais e de
operacionalização prática do sistema dos Juizados (taxa de congestionamento em
elevação, não implantação da figura do juiz leigo em vários Estados, ausência
de conciliadores/mediadores capacitados, etc.) – e tirante uma ou outra crítica
infundada de cunho puramente acadêmico[2] -, após 20 anos de vigência da Lei
9.099/95, são inegáveis os resultados positivos alcançados pelos Juizados
Especiais.
A absoluta maioria dos jurisdicionados e advogados confiam no
Sistema dos Juizados, a ponto de os JECs, cujo acesso é facultativo,
responderem, atualmente, por 27% dos 17,6 milhões de casos novos que chegam ao
Judiciário Estadual (4.804.855 processos); sendo que nos JEFs (cuja competência
é absoluta onde instalados) a quantidade de casos novos passou o número de
casos registrados pela Justiça comum federal: 1,3 milhão (quase 60% da demanda
total).[3]
O ano de 2016, todavia, é crucial para a preservação do
sucesso dos Juizados. Em março/2016, entra em vigor o Novo Código de Processo
Civil, que tem importantíssima aplicação subsidiária aos Juizados Especiais
Cíveis, Federais e da Fazenda Pública.
Sem prejuízo de alterações pontuais promovidas pela própria
Lei 13.105/2015 na lei 9.099/95[4] – e a cujo respeito não há dúvida sobre a
aplicação –, é real o risco de que, deixando-se influenciar por uma série de
outras regras do Novo CPC, percam os Juizados aquilo que eles têm de mais
valioso: a simplicidade, a oralidade e a eficiência.
Pois por expressa disposição legal (art. 1.062, CPC/2015),
aplica-se aos Juizados o bom regramento do CPC/2015 sobre o incidente de
desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137 do CPC/2015). O
problema é que o processo nos Juizados nasceu para ser simples, sem intervenção
de terceiros (art. 10 da Lei 9.099/95) e sem incidentes paralelos que pudessem
burocratizar o seu desenvolvimento. Além disso, a previsão trouxe a reboco
questão prática de difícil solução: o CPC/2015 fala em cabimento de agravo de
instrumento contra a decisão que julgar, com ares de coisa julgada, o incidente
de desconsideração (art. 1.015, IV, CPC/2015). Mas, como regra, não é admitido
agravo no procedimento dos Juizados.
O art. 985, § 1º, do CPC/2015, estabelece que uma vez julgado
o incidente de resolução de demandas repetitivas, a tese jurídica será aplicada
a todos os processos individuais e coletivos que versem sobre questão idêntica
e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive as que
tramitem nos Juizados. Regra coerente, que dá integridade ao sistema, mas que –
conforme já advertido por um dos autores desta coluna
(http://jota.info/abracadabra) –, padece de inconstitucionalidade por sujeitar
os Juizados Especiais às decisões dos TJs/TRFs/STJ, embora,
constitucionalmente, não subordinados jurisdicionalmente a eles.[5]
Leia mais na Coluna Novo CPC
O Novo CPC, de modo adequado, disciplina a questão da
fundamentação das decisões judiciais no art. 489, § 1º, dando concretude,
através de inteligente fórmula negativa (indicativa das situações em que uma
decisão não é fundamentada), ao art. 93, IX, da CF. A aplicação aos Juizados
Especiais do regramento lá contido, todavia – especialmente na situação do art.
489, § 1º, IV, que determina o enfrentamento de todas as questões que, em tese,
poderiam infirmar a conclusão adotada pelo órgão julgador -, é duro golpe
contra a celeridade e simplicidade do processo oral e sumário dos Juizados. O
enfrentamento de todas as questões impede a consecução do ideário de que, nas
causas em curso nos Juizados, as decisões são tomadas informalmente, “na ponta
do martelo”, com fundamentação sucinta, breve. Os Juizados não nasceram para
fazer doutrina, tampouco para o desenvolvimento das principais teses que
informarão a construção da jurisprudência ou do sistema de precedentes do
direito brasileiro. Por isso – e até como mecanismo de proteção da viabilidade
e eficiência do sistema dos Juizados –, já se sustenta a não aplicabilidade do
dispositivo nos Juizados, especialmente se considerado que há disciplina
própria da questão na Lei 9.099/95 (art. 38).[6]
Os arts. 300 a 310 disciplinam as tutelas de urgência no Novo
CPC. Disciplina com grandes novidades, como a admissão da tutela antecipada
antecedente (art. 303) e sua estabilização (304). Dispositivos, todavia,
absolutamente incompatíveis com modelo informalizado e funcional do Sistema dos
Juizados Especiais. Primeiro porque há disciplina própria do tema nas Leis
10.259/2001 (art. 4º) e 12.153/2009 (art. 3º), a afastar a subsidiariedade do
CPC/2015. E segundo, porque não cabendo agravo das decisões proferidas em sede
de Juizados, não há como o réu, o maior prejudicado pela estabilização da
tutela antecipada, impedi-la, nos termos do art. 304, caput, CPC/2015.
O sistema recursal do CPC/2015 é rico, tendo ampliado as
hipóteses de sustentação oral, criado antídotos contra a jurisprudência
defensiva, mas contraditoriamente mantido o efeito suspensivo automático da
apelação (arts.994 e ss., CPC/2015). Porém, é incompatível com o sistema
recursal dos Juizados, cuja regra de funcionamento é bastante simples: da
sentença cabe recurso inominado para o próprio Juizados, sem efeito suspensivo
automático, no qual podem ser impugnadas todas as questões decididas no curso
do processo (art. 41 e ss. da Lei 9.099/95). Qualquer tentativa de fazer
incidir o CPC/2015 nesta temática contraria a regra da subsidiariedade.
Apesar de todos o exposto, e pese o nobre propósito de
proteger o Sistema dos Juizados do modelo processual (muito) mais complexo e
formal introduzido pelo Novo CPC, parece não ser o caso de sustentar a não
aplicação do CPC/2015 aos Juizados[7]. É inegável que há no CPC/2015 várias
disposições inspiradas nos princípios informadores do art. 2º da Lei 9.099/95 e
que, por guardarem fina sintonia com os propósitos de aceleração, simplicidade
e efetividade do Sistema, devem valer nos processos em curso nos Juizados.
Exemplificativamente, é o caso da regra que admite o
julgamento liminar de improcedência do pedido (art. 332 CPC/2015); da que
determina o respeito aos precedentes (arts. 926 e 927 CPC/2015), inclusive dos
próprios Colégios e Turmas Recursais e de Uniformização de Jurisprudência; da
que dispensa a avaliação de veículos automotores ou de outros bens cujo preço
médio de mercado possa ser conhecido por meio de pesquisas realizadas por
órgãos oficiais ou anúncios de vendas divulgados nos meios de comunicação (art.
871, IV, CPC/2015); da que autoriza o juiz a flexibilizar o procedimento
ampliando prazos e invertendo a ordem de produção de provas (art. 139, VI,
CPC/2015); da que autoriza as partes a celebrarem, dentro das condicionantes
estabelecidas em lei, convenções sobre rito e situações jurídicas processuais
(art. 190 CPC/2015); da que admite a distribuição do ônus da prova (art. 373, §
1º, CPC/2015); etc. Todas aplicáveis aos Juizados.
O CPC/2015, portanto, terá aplicação ao Sistema dos Juizados
Especiais. Porém, considerando princípio da especialidade, apenas: a) nos casos
de expressa e específica remissão; ou b) na hipótese de compatibilidade do
regramento do CPC/2015 com os critérios previstos no art. 2º da Lei 9.099/95 (o
que deve ser analisado casuisticamente).
Por fim, uma confissão de receio. Receio de quem sabe sim
pensar o novo. Mas com olhos na realidade, no interesse do jurisdicionado e na
funcionalidade do Sistema de Justiça.
Já há movimento na academia pela elaboração de uma nova Lei
dos Juizados Especiais, “dando-se aos juizados Especiais Cíveis, aos Juizados
Especiais Cíveis Federais e aos Juizados Especiais da Fazenda Pública
tratamento compatível com o CPC de 2015 e com as mais modernas conquistas do
Direito Processual Civil brasileiro”[8].
Se a nova lei vier para potencializar os princípios
informadores do Sistema dos Juizados (art. 2º da Lei 9.099/95), incorporando ao
texto legal alguns dispositivos do CPC/2015 compatíveis com eles; se vier para
restabelecer o ideário inaugural dos Juizados como “Justiça do cidadão”,
afastando de seu albergo a possibilidade, hoje existente, de ajuizamento de
demandas por empresas de pequeno porte e microempresas (art. 8º, II, da Lei 9.099/95);
se vier potencializar a competência material dos juizados, permitindo que
causas outras, hoje fora de sua competência (direito de família, por exemplo),
sejam solucionadas pelo processo oral, célere, sem custos, com poucos recursos
e de acesso direto pelo cidadão; que seja MUITO BEM VINDA a nova lei.
Agora se o processo legislativo, a pretexto de incorporar ao
texto legal as “conquistas” do CPC/2015”, servir para que o Poder Público e as
grandes corporações ordinariamente acionadas nos Juizados (instituições
financeiras, concessionárias de serviço público, etc.) consigam se livrar do
alcance deles; se objetivar, tal como acabou por fazer o CPC/2015, dar fim à
oralidade ou ampliar o número de recursos e ações impugnativas; se ceder às
pressões corporativas e limitar a possibilidade de o jurisdicionado,
diretamente, sem a participação de advogado ou pagamento de custas, demandar
perante os Juizados; então que FIQUEMOS VIGILANTES, pois há risco de termos,
também nos Juizados, um sistema ordinarizado e nada diferente do que atualmente
se tem na Justiça comum.
Fonte: http://jota.uol.com.br/a-problematica-compatibilizacao-do-novo-cpc-com-os-juizados-especiais.
Acesso: 13/10/2016
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