PROCESSO FAMILIAR
Direito ao conhecimento da origem genética difere do direito
à filiação
“Em diversos trabalhos, desde 1999, procuramos salientar a
distinção necessária que se há de fazer entre o direito ao reconhecimento à
parentalidade (paternidade, maternidade, filiação e demais relações de
parentesco) e direito ao conhecimento da origem genética ou biológica. O
primeiro diz respeito ao direito da personalidade, de caráter absoluto e
oponível a todas as demais pessoas. O segundo emerge das relações de família.
Os direitos da personalidade integram o núcleo intangível e
indisponível da qualificação jurídica da pessoa, que destaca sua singularidade.
Compõem a qualificação jurídica da pessoa em si. Por essa razão, o Código Civil
(artigo 11) confere-lhes os requisitos de intransmissibilidade e
irrenunciabilidade. Deles podem resultar consequências patrimoniais em virtude
de sua lesão por outrem, mas não de relação jurídica originária com este. Entre
eles, está o direito à identificação pessoal, que não se resume aos aspectos
formais e registrais, tais como a nacionalidade, a data e o local de
nascimento, a filiação e outras características exigíveis. Nele se inclui,
igualmente, a identificação que brota da natureza humana, com as
características irredutíveis do corpo, da mente, dos modos de expressão, natos
ou adquiridos, além de, no ponto que agora nos interessa, a origem genética de
cada pessoa.
Diferentemente, o direito à parentalidade, inclusive o da
filiação, não resulta da natureza humana. Sua natureza é cultural. Seu objeto é
certificar a integração de uma pessoa em determinado grupo familiar. Cada povo,
cada ordenamento jurídico, refletindo seus graus de cultura, tradição e
história, vão definindo e alterando o que consideram parentes (pai, mãe, filho
e demais parentes). Não é um dado da natureza, mas uma construção cultural. Em
nosso direito atual, a filiação resultante da adoção é plena e imutável, mas
nem sempre foi assim, pois admitia certos graus, com limitações de direitos
parentais e sucessórios. Em nosso Direito, já houve proibição de reconhecimento
de filhos biológicos, quando prevaleceu a filiação dita ilegítima
(extraconjugal). A partir do Código Civil de 2002, na sequência da eliminação
das desigualdades jurídicas pela Constituição de 1988, há quatro espécies de
filiação: a de origem biológica e as que resultam da adoção, da inseminação
artificial heteróloga (técnica de reprodução assistida) e da posse de estado de
filiação.
Portanto, nem sempre a parentalidade e a filiação têm origem
biológica. Porém, qualquer pessoa tem direito a conhecer sua origem biológica,
ainda que não implique atribuição de parentalidade. Pouco importa sua
motivação, seja para satisfazer o anseio humano de saber de quem veio, seja
para assegurar o direito à saúde (e a vida), para prevenção de doenças
geneticamente transmissíveis.
No tocante à adoção, a Lei 12.010/2009, ao dar nova redação
ao artigo 48 do ECA, introduziu na legislação o “direito [do adotado] de
conhecer sua origem biológica”, mediante acesso ao processo de adoção, após
completar 18 anos, ou quando menor com assistência jurídica e psicológica. A
norma assegura o exercício do direito da personalidade do adotado, mas sem
qualquer reflexo na relação de parentesco. O conhecimento da origem biológica
não importa desfazimento da adoção, que é irreversível.
Se são distintos os direitos (direito da personalidade e
direito de família), então não se pode pretender a obtenção do conhecimento da
origem genética mediante ação de investigação de paternidade. O que se busca é
esclarecer a origem genética, mas não a atribuição de paternidade ou
maternidade, ou a negação da parentalidade já constituída. Quando uma pessoa
que foi adotada pugna por conhecer sua origem genética e consegue seu intento,
disso não resulta o desfazimento da relação parental/filial. Do mesmo modo, se
tiver sido concebido a partir de sêmen de homem que não é seu pai. Pode-se
afirmar que as situações de genitor biológico e de pai nem sempre estão
reunidas.
As questões que frequentemente demandam decisões judiciais
são relativas à posse de estado de filiação, cuja relação de parentalidade,
emergente de fatos, não ostentam o mesmo grau de cognoscibilidade da adoção ou
da inseminação artificial heteróloga. Quando o Judiciário confirma a existência
da posse de estado de filiação e sua consequente imutabilidade, emergem
insatisfações acerca das pretensões econômicas que normalmente estavam
subjacentes, notadamente alimentos e sucessão hereditária.
Pensamos que, para harmonizar o princípio da imutabilidade do
estado de filiação, decorrente da posse de estado, com a possível pretensão
patrimonial, pode-se encontrar solução dentro do sistema jurídico existente,
máxime com recurso à reparação civil. Com efeito, a Constituição (artigo 229)
estabelece que os pais têm o dever de criar, educar e assistir os filhos
menores. A não assunção da paternidade (ou maternidade) do descendente
biológico (salvo no caso de dação de sêmen), cuja filiação foi assumida apenas
pela mãe e, depois, pelo pai socioafetivo, implica inadimplemento de dever
jurídico, que se resolve com a reparação civil correspondente. Se o genitor
biológico for vivo, deve responder pelo equivalente ao valor que teria de arcar
com a criação, educação e assistência do filho não reconhecido, de acordo com
suas condições econômicas, até a maioridade deste. Se morto for, o mesmo valor
pode consistir em crédito contra a herança, pois significa dívida deixada pelo
de cujus”.
Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP,
professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito
de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.
Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2016, 8h00
Acesso: 15/02/2017
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