“Entregar a direção de veículo para pessoa não habilitada. Só
“entregar” já é crime? Perigo abstrato presumido? Isso vale no direito penal?
Flávio Daher e Luiz Flávio Gomes
Só entregar o carro para não habilitado já é crime? Seria
perigo abstrato presumido? Isso vale no direito penal? Vamos tirar essas e
outras dúvidas no texto a seguir.
Aos amigos simpatizantes do direito penal. Nós seguimos a
doutrina de que não existe crime sem afetação real do bem jurídico protegido
pela norma penal. Não basta realizar a conduta descrita na lei. É preciso
também ofender o bem jurídico. Quem faz uma falsificação grosseira (um único
rabisco no local da assinatura de um cheque furtado) realiza a conduta do crime
de falsidade, mas não afeta o bem jurídico (porque um rabisco não engana
ninguém). Isso se chama princípio da ofensividade (que Zaffaroni, Ferrajoli
etc. chamam de lesividade).
De acordo com o direito penal da ofensividade há quatro
formas de se ofender um bem jurídico:
(a) lesão ao bem jurídico (resultante do dano ou destruição
do bem jurídico: vida, por exemplo);
(b) perigo concreto (exigência de vítima concreta determinada
ou indeterminada – CP, art. 132, por exemplo);
(c) perigo abstrato de perigosidade real (art. 306, do CTB:
dirigir veículo embriagado e em ziguezague, por exemplo) e
(d) perigo abstrato presumido.
As três primeiras são legítimas e admitidas pelo direito
penal da ofensividade. A última forma (perigo abstrato presumido) é
inconciliável com o direito penal (por ser inconstitucional). Vale para o
direito administrativo (para as infrações administrativas do CTB, por exemplo).
Não para o direito penal (e é aqui que a polêmica esquenta).
O limite máximo de intervenção do direito penal é o crime de
perigo abstrato (sem vítima concreta) de perigosidade real (conduta
efetivamente perigosa para o bem jurídico, sem necessidade de apresentação de
vítima concreta) (ver GOMES, BIANCHINI e DAHER, Curso de Direito penal,
Salvador: JusPodivum, 2016, p. 86 e ss.).
A nova Súmula 575 do STJ diz o seguinte:
“Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a
direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se
encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB,
independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na
condução do veículo.”.
A nova súmula dispensa a lesão ou o perigo concreto no caso
(correto, porque o tipo penal não faz essa exigência). Daí a doutrina clássica
assim como a jurisprudência preponderante infere que o crime do art. 310 seria
então de perigo abstrato presumido. Isso é equivocado (data vênia). O que a súmula oculta? O perigo abstrato de
perigosidade real. Há dois extremos que, no caso, temos que evitar (caso do
art. 310): a lesão ou o perigo concreto (com vítima concreta) e o perigo
abstrato presumido. O primeiro extremo não é exigido pelo tipo penal. O segundo
extremo não é compatível com a Constituição. Logo, só resta concluir que o
crime do art. 310 do CTB é de perigo abstrato de perigosidade real. Isso é o
que a súmula deveria esclarecer (mas não esclareceu; ao contrário, ocultou,
dando ensejo à aplicação equivocada do direito penal, fundado no perigo
abstrato presumido).
O Art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro diz: “Permitir,
confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com
habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem,
por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em
condições de conduzi-lo com segurança”.
Na segunda parte a lei exige, expressamente, a comprovação da
perigosidade real da conduta (“que o motorista não esteja em condições de conduzir
com segurança”). Isso tem que ficar provado no processo (e essa prova recai
sobre uma condução anormal: ziguezague, contramão, subir calçada, passar no
vermelho, bater numa árvore etc.).
Se a segunda parte do tipo penal exige prova da perigosidade
real da conduta, de forma diferente não podemos interpretar a 1ª parte do mesmo
dispositivo legal. O princípio da igualdade impede tratamento diverso. Logo,
também a conduta da 1ª parte é de perigosidade real (é preciso comprovar uma
condução anormal: ziguezague, contramão etc.).
Não basta “entregar” a direção de veículo a pessoa não habilitada (por
exemplo). É preciso que essa pessoa promova uma condução anormal. Aí o crime
acontece. Aí entra o direito penal.
E se não houve condução anormal? Ocorre uma infração
administrativa (como veremos em seguida). O que seria inconcebível é a
impunidade. Para o crime do art. 310 não é necessária vítima concreta (não se
trata de crime de perigo concreto). Não se trata de crime de lesão (não precisa
esperar a lesão corporal ou o homicídio). Cuida-se de uma situação de
antecipação da tutela penal (Vorfeldkriminalisierung). Mas essa antecipação não
pode chegar no perigo abstrato presumido (incompatível com o direito
penal). Logo, o art. 310 inteiro é de
perigo abstrato de perigosidade real. Algo, além da conduta descrita na lei,
deve ser provado ou não se derruba a presunção de inocência. Esse algo é a
efetiva perigosidade da conduta (porque isso é suficiente para entrar no raio
de ofensividade do bem jurídico).
O direito, como um time de futebol, é um sistema. O CTB
também é um sistema. Todas as suas partes contam com a devida relevância. O
time não é composto só do ataque ou só da defesa. Tudo é importante.
Lendo os arts. 162-164 do CTB vê-se que praticamente todas as
condutas incriminadas no art. 310 se acham presentes nesses dispositivos. Qual
a diferença? Os arts. 162-164 cuidam das infrações administrativas. O art. 310
do delito.
O eixo distintivo entre tais infrações reside precisamente no
seguinte: as infrações administrativas são de perigo abstrato presumido (no
campo administrativo o perigo abstrato presumido é indiscutivelmente aceito e
constitucional, em razão das consequências de menor intensidade para o agente).
O perigo abstrato presumido só não é possível onde entra pena
privativa de liberdade (essa proporcionalidade é da essência do princípio da
ofensividade).
Em suma, a súmula 575, tanto quanto milhares de informação
nos meios de comunicação, vale não pelo que ela diz, sim, pelo que ela oculta.
Aparentemente ela teria rechaçado o conteúdo mínimo de ofensividade em abstrato
que um tipo penal deve ter, conforme nosso pensamento defendido na obra Curso
de Direito Penal (Ed. JusPodivum/2016 2ª edição). Mas a correta interpretação
da súmula não é o que ela expressa, sim, o que ela escamoteia.
Saiba mais: Recordemos: o resultado de uma infração penal
pode ser classificado como resultado natural (alteração física tangível no
objeto material do delito) ou resultado jurídico (lesão ou perigo de lesão no
bem jurídico protegido). Quanto ao resultado natural os delitos se subdividem
em crimes materiais, crimes formais ou crimes de mera conduta, conforme a
exigência ou não do resultado natural para a consumação do delito ou a previsão
ou não na descrição típica de resultado natural.
Já em relação ao resultado jurídico a subdivisão clássica,
também em três, é afirmar que os crimes podem ser de dano, de perigo concreto
ou de perigo abstrato. Este agora, por força das novas doutrinas, divide-se em
perigo abstrato presumido e perigo abstrato de perigosidade real. Essa
distinção ainda não foi captada pela jurisprudência. Mas isso vai mudar,
seguramente. Apesar de parecer intuitiva uma parametricidade terminológica
(p.ex.: os crimes materiais são sempre de dano e os de mera conduta de perigo),
essa lógica é enganosa – basta lembrar que a injúria é crime de mera conduta,
porém de dano (basta o comportamento injurioso para a consumação, não existindo
resultado natural nem sequer descrito no tipo, mas as palavras proferidas têm
que atingir a autoestima da vítima provocando dano ao bem jurídico honra
subjetiva).
Nos crimes de dano temos como obrigatória a supressão ou
alteração do bem jurídico tutelado para que haja a consumação (como nos delitos
de homicídio e lesão corporal em que o bem jurídico vida precisa ser suprimido
para a consumação no primeiro e modificado no segundo, in casu a incolumidade
física). Nos crimes de perigo concreto não é necessário o dano ao bem jurídico
para a consumação, mas é necessário comprovar que no caso concreto houve
exposição a dano.
O exemplo mais didático para visualizar a diferença é a
modificação de redação que o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro sofreu
em 2008. A redação anterior estabelecia que o crime de direção em estado de
embriaguez seria: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob influência
de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a
incolumidade de outrem.”. Depois veio a
Lei 11705/08 e propôs a seguinte redação: “Conduzir veículo auto automotor, na
via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou
superior a seis decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância
psicoativa que determine dependência”.
Repare que a lei jamais exigiu que da direção em estado de
embriaguez houvesse um acidente com morte, lesões ou danos patrimoniais: se
assim o fizesse, seria de dano o crime do art. 306 do CTB. Na versão original, além da direção em estado
de torpor, havia também que se constatar a exposição de outrem a dano. Só
haveria o crime do 306 se no caso concreto ficasse comprovada essa situação.
Isso se provava caso o motorista embriagado estivesse em alta velocidade, ou na
contramão, ou dirigindo em ziguezague numa rua com outros carros ou com
transeuntes.
Já pela redação da lei 11705/08 tornou-se dispensável a
comprovação de que no caso concreto houvesse bem jurídico efetivamente exposto
a dano: basta a direção sob influência de psicoativo. Se uma pessoa às 06 horas
da manhã de uma sexta-feira da Paixão numa cidade com cinco mil habitantes
tomar dois copos de cerveja e dirigir seu veículo por dois quarteirões desertos
sem nem mesmo avistar outro ser humano teríamos o crime do art. 306 do CTB, uma
vez que a lei presume que aquele comportamento é perigoso independente do
contexto que o cerque.
Em nossa obra (pág. 59), ao comentar o Princípio da
Ofensividade fizemos a seguinte consideração sobre os crimes de perigo
abstrato: “Em virtude do princípio da ofensividade está proibido no direito
penal o perigo abstrato presumido (o perigo é presumido quando se dispensa a
prova de sua existência, bastando a periculosidade definida pelo legislador em
critérios abstratos e genéricos). No perigo abstrato presumido o legislador
passa a cumprir papel processual, dispensando a acusação de provar a perigosidade
(ou lesividade) real da conduta do agente. O legislador sai do campo da
delimitação do âmbito do proibido para interferir na esfera probatória.
Trata-se de uma atividade imprópria e inconstitucional, por violação ao
princípio da presunção de inocência (que somente pode ser derrubada quando há
prova da culpabilidade do agente).”.
O art. 306 do CTB ainda sofreu outra modificação, sendo sua
redação atual: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada
em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência”.
Para nós houve ali uma tentativa do legislador de observar o
Princípio da Ofensividade, uma vez que não basta agora a direção em estado de
embriaguez para caracterização do delito, sendo necessária a alteração
psicomotora.
Sobre o histórico de alterações do art. 306 do CTB e a
proposição da necessidade de perigosidade real no crime abstrato (pág. 60)
discorremos: “Pela redação original não bastava que o motorista estivesse sob
efeito do álcool, pois era necessário demonstrar que ele dirigia expondo a
perigo os demais motoristas e eventuais transeuntes, ou mesmo o patrimônio
alheio a dano, ainda que em caráter potencial.
A partir de 2008 se estabeleceu uma presunção absoluta de que
o motorista expunha a todos a risco pelo simples fato de dirigir tendo antes
ingerido álcool (ainda que nada de anormal ficasse demonstrado quanto à sua
forma de guiar o veículo). Na redação atual exige-se (a) não apenas a ingestão
de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, senão
também (b) que o motorista esteja sob a “influência” dessa substância e (c) que
esteja dirigindo com sua “capacidade psicomotora alterada”.
Como se provam esses dois últimos requisitos: demonstrando-se
no processo uma condução anormal (ziguezague, subir calçada, entrar na
contramão, bater em um poste etc.). É isso que se chama “perigosidade real”.
Sua comprovação derruba a presunção de inocência. Logo, o perigo abstrato de
perigosidade real é o limite máximo permitido pelo princípio da ofensividade
(que conflita totalmente com o perigo abstrato presumido). Contra o réu
imputável nada pode ser presumido no direito penal.”.
E qual seria então a diferença entre o crime de perigo
concreto e o de perigo abstrato de perigosidade real? No crime de perigo
concreto, o perigo precisa de destinatário certo: por exemplo, em sua redação
original o delito do art. 306 do CTB precisava para sua caracterização da
embriaguez somada a direção perigosa que expunha concretamente alguém a dano (é
preciso que haja no fato vítimas potenciais – é preciso expor a outrem).
Já pela redação atual basta a embriaguez somada à direção
perigosa (ainda que não existam vítimas potencias). O cidadão que dirigir
embriagado pela contramão comete o crime do art. 306 do CTB ainda que a rua
esteja deserta. O comportamento é, no caso concreto, perigoso, ainda que não
hajam bens jurídicos especificamente expostos ao perigo de dano. O perigo é abstrato mas a perigosidade é
real.
O STJ ao analisar o art. 310 do CTB, no entanto, pensou de
forma diferente.
Vamos aprofundar um pouco uma das possibilidades da Súmula
para entender como a mesma revisita problemas de aplicação que o Art. 306 do
CTB já enfrentou. Uma das situações do art. 310 do CTB é a entrega da direção
de veículo automotor a pessoa que não esteja em condições de conduzi-lo com
segurança devido a problemas de saúde física ou mental.
Conforme a Súmula, é desnecessária a desconformidade a norma
ou regulamento de trânsito durante a condução do veículo e a autuação se dará
com base única e exclusivamente no estado de saúde do condutor.
Como o infrator não é obrigado a fazer prova contra si mesmo,
independente dos sinais exteriores de sua moléstia, qual o fundamento técnico
da materialidade de um eventual flagrante? As polícias militares e os DETRANs
se utilizam do Anexo II da Resolução 432/2013 do CONTRAN, que elenca dezoito
características a serem avaliadas para a constatação da embriaguez, para
fundamentar tecnicamente a materialidade nas hipóteses do art. 306 (que vão
desde a aferição de situações estritamente objetivas como o vômito ou a
recordação do próprio endereço até itens inacreditavelmente subjetivos como
arrogância ou desordem nas vestes). Seria o caso de também elencar os itens
para aferição de todas as patologias existentes e então viabilizar a aplicação
do art. 310 do CTB? Cremos que não. Não seria mais fácil restringir o 310 para
as situações em que, no fato, houvesse perigosidade real?
A ideia é demandar ao menos a perigosidade real para manter
os tipos de perigo abstrato para atender a teleologia da Constituição. O perigo
abstrato de perigo presumido, no campo penal, é na verdade uma antecipação
indevida nas considerações sobre o desvalor da conduta. Mas isso é um assunto
para outro artigo. Ele (perigo abstrato presumido) vale para as infrações
administrativas, não para o campo penal (que exige, no mínimo, perigo abstrato
de perigosidade real). Não se comprovando a perigosidade real da conduta,
aplicam-se os dispositivos administrativos. O bem jurídico não pode ficar sem
nenhuma proteção”.”
Fonte: https://jus.com.br/pergunte?utm_campaign=Envie%2520Duvida&utm_medium=modal&utm_source=jus.
Acesso: 15.04.2018
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