domingo, 15 de abril de 2018

DIREÇÃO DE VEÍCULO. PESSOA NÃO HABILITADA. RESPONSABILIDADE.


“Entregar a direção de veículo para pessoa não habilitada. Só “entregar” já é crime? Perigo abstrato presumido? Isso vale no direito penal?
Flávio Daher e Luiz Flávio Gomes

Só entregar o carro para não habilitado já é crime? Seria perigo abstrato presumido? Isso vale no direito penal? Vamos tirar essas e outras dúvidas no texto a seguir.

Aos amigos simpatizantes do direito penal. Nós seguimos a doutrina de que não existe crime sem afetação real do bem jurídico protegido pela norma penal. Não basta realizar a conduta descrita na lei. É preciso também ofender o bem jurídico. Quem faz uma falsificação grosseira (um único rabisco no local da assinatura de um cheque furtado) realiza a conduta do crime de falsidade, mas não afeta o bem jurídico (porque um rabisco não engana ninguém). Isso se chama princípio da ofensividade (que Zaffaroni, Ferrajoli etc. chamam de lesividade).

De acordo com o direito penal da ofensividade há quatro formas de se ofender um bem jurídico:

(a) lesão ao bem jurídico (resultante do dano ou destruição do bem jurídico: vida, por exemplo);

(b) perigo concreto (exigência de vítima concreta determinada ou indeterminada – CP, art. 132, por exemplo);

(c) perigo abstrato de perigosidade real (art. 306, do CTB: dirigir veículo embriagado e em ziguezague, por exemplo) e

(d) perigo abstrato presumido.

As três primeiras são legítimas e admitidas pelo direito penal da ofensividade. A última forma (perigo abstrato presumido) é inconciliável com o direito penal (por ser inconstitucional). Vale para o direito administrativo (para as infrações administrativas do CTB, por exemplo). Não para o direito penal (e é aqui que a polêmica esquenta).

O limite máximo de intervenção do direito penal é o crime de perigo abstrato (sem vítima concreta) de perigosidade real (conduta efetivamente perigosa para o bem jurídico, sem necessidade de apresentação de vítima concreta) (ver GOMES, BIANCHINI e DAHER, Curso de Direito penal, Salvador: JusPodivum, 2016, p. 86 e ss.).

A nova Súmula 575 do STJ diz o seguinte:

“Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB, independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na condução do veículo.”.

A nova súmula dispensa a lesão ou o perigo concreto no caso (correto, porque o tipo penal não faz essa exigência). Daí a doutrina clássica assim como a jurisprudência preponderante infere que o crime do art. 310 seria então de perigo abstrato presumido. Isso é equivocado (data vênia).  O que a súmula oculta? O perigo abstrato de perigosidade real. Há dois extremos que, no caso, temos que evitar (caso do art. 310): a lesão ou o perigo concreto (com vítima concreta) e o perigo abstrato presumido. O primeiro extremo não é exigido pelo tipo penal. O segundo extremo não é compatível com a Constituição. Logo, só resta concluir que o crime do art. 310 do CTB é de perigo abstrato de perigosidade real. Isso é o que a súmula deveria esclarecer (mas não esclareceu; ao contrário, ocultou, dando ensejo à aplicação equivocada do direito penal, fundado no perigo abstrato presumido).

O Art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro diz: “Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança”.  Na segunda parte a lei exige, expressamente, a comprovação da perigosidade real da conduta (“que o motorista não esteja em condições de conduzir com segurança”). Isso tem que ficar provado no processo (e essa prova recai sobre uma condução anormal: ziguezague, contramão, subir calçada, passar no vermelho, bater numa árvore etc.).

Se a segunda parte do tipo penal exige prova da perigosidade real da conduta, de forma diferente não podemos interpretar a 1ª parte do mesmo dispositivo legal. O princípio da igualdade impede tratamento diverso. Logo, também a conduta da 1ª parte é de perigosidade real (é preciso comprovar uma condução anormal: ziguezague, contramão etc.).  Não basta “entregar” a direção de veículo a pessoa não habilitada (por exemplo). É preciso que essa pessoa promova uma condução anormal. Aí o crime acontece. Aí entra o direito penal.

E se não houve condução anormal? Ocorre uma infração administrativa (como veremos em seguida). O que seria inconcebível é a impunidade. Para o crime do art. 310 não é necessária vítima concreta (não se trata de crime de perigo concreto). Não se trata de crime de lesão (não precisa esperar a lesão corporal ou o homicídio). Cuida-se de uma situação de antecipação da tutela penal (Vorfeldkriminalisierung). Mas essa antecipação não pode chegar no perigo abstrato presumido (incompatível com o direito penal).  Logo, o art. 310 inteiro é de perigo abstrato de perigosidade real. Algo, além da conduta descrita na lei, deve ser provado ou não se derruba a presunção de inocência. Esse algo é a efetiva perigosidade da conduta (porque isso é suficiente para entrar no raio de ofensividade do bem jurídico).

O direito, como um time de futebol, é um sistema. O CTB também é um sistema. Todas as suas partes contam com a devida relevância. O time não é composto só do ataque ou só da defesa. Tudo é importante.

Lendo os arts. 162-164 do CTB vê-se que praticamente todas as condutas incriminadas no art. 310 se acham presentes nesses dispositivos. Qual a diferença? Os arts. 162-164 cuidam das infrações administrativas. O art. 310 do delito.

O eixo distintivo entre tais infrações reside precisamente no seguinte: as infrações administrativas são de perigo abstrato presumido (no campo administrativo o perigo abstrato presumido é indiscutivelmente aceito e constitucional, em razão das consequências de menor intensidade para o agente).

O perigo abstrato presumido só não é possível onde entra pena privativa de liberdade (essa proporcionalidade é da essência do princípio da ofensividade).

Em suma, a súmula 575, tanto quanto milhares de informação nos meios de comunicação, vale não pelo que ela diz, sim, pelo que ela oculta. Aparentemente ela teria rechaçado o conteúdo mínimo de ofensividade em abstrato que um tipo penal deve ter, conforme nosso pensamento defendido na obra Curso de Direito Penal (Ed. JusPodivum/2016 2ª edição). Mas a correta interpretação da súmula não é o que ela expressa, sim, o que ela escamoteia.

Saiba mais: Recordemos: o resultado de uma infração penal pode ser classificado como resultado natural (alteração física tangível no objeto material do delito) ou resultado jurídico (lesão ou perigo de lesão no bem jurídico protegido). Quanto ao resultado natural os delitos se subdividem em crimes materiais, crimes formais ou crimes de mera conduta, conforme a exigência ou não do resultado natural para a consumação do delito ou a previsão ou não na descrição típica de resultado natural.

Já em relação ao resultado jurídico a subdivisão clássica, também em três, é afirmar que os crimes podem ser de dano, de perigo concreto ou de perigo abstrato. Este agora, por força das novas doutrinas, divide-se em perigo abstrato presumido e perigo abstrato de perigosidade real. Essa distinção ainda não foi captada pela jurisprudência. Mas isso vai mudar, seguramente. Apesar de parecer intuitiva uma parametricidade terminológica (p.ex.: os crimes materiais são sempre de dano e os de mera conduta de perigo), essa lógica é enganosa – basta lembrar que a injúria é crime de mera conduta, porém de dano (basta o comportamento injurioso para a consumação, não existindo resultado natural nem sequer descrito no tipo, mas as palavras proferidas têm que atingir a autoestima da vítima provocando dano ao bem jurídico honra subjetiva).

Nos crimes de dano temos como obrigatória a supressão ou alteração do bem jurídico tutelado para que haja a consumação (como nos delitos de homicídio e lesão corporal em que o bem jurídico vida precisa ser suprimido para a consumação no primeiro e modificado no segundo, in casu a incolumidade física). Nos crimes de perigo concreto não é necessário o dano ao bem jurídico para a consumação, mas é necessário comprovar que no caso concreto houve exposição a dano.

O exemplo mais didático para visualizar a diferença é a modificação de redação que o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro sofreu em 2008. A redação anterior estabelecia que o crime de direção em estado de embriaguez seria: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.”.  Depois veio a Lei 11705/08 e propôs a seguinte redação: “Conduzir veículo auto automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

Repare que a lei jamais exigiu que da direção em estado de embriaguez houvesse um acidente com morte, lesões ou danos patrimoniais: se assim o fizesse, seria de dano o crime do art. 306 do CTB.  Na versão original, além da direção em estado de torpor, havia também que se constatar a exposição de outrem a dano. Só haveria o crime do 306 se no caso concreto ficasse comprovada essa situação. Isso se provava caso o motorista embriagado estivesse em alta velocidade, ou na contramão, ou dirigindo em ziguezague numa rua com outros carros ou com transeuntes.

Já pela redação da lei 11705/08 tornou-se dispensável a comprovação de que no caso concreto houvesse bem jurídico efetivamente exposto a dano: basta a direção sob influência de psicoativo. Se uma pessoa às 06 horas da manhã de uma sexta-feira da Paixão numa cidade com cinco mil habitantes tomar dois copos de cerveja e dirigir seu veículo por dois quarteirões desertos sem nem mesmo avistar outro ser humano teríamos o crime do art. 306 do CTB, uma vez que a lei presume que aquele comportamento é perigoso independente do contexto que o cerque.

Em nossa obra (pág. 59), ao comentar o Princípio da Ofensividade fizemos a seguinte consideração sobre os crimes de perigo abstrato: “Em virtude do princípio da ofensividade está proibido no direito penal o perigo abstrato presumido (o perigo é presumido quando se dispensa a prova de sua existência, bastando a periculosidade definida pelo legislador em critérios abstratos e genéricos). No perigo abstrato presumido o legislador passa a cumprir papel processual, dispensando a acusação de provar a perigosidade (ou lesividade) real da conduta do agente. O legislador sai do campo da delimitação do âmbito do proibido para interferir na esfera probatória. Trata-se de uma atividade imprópria e inconstitucional, por violação ao princípio da presunção de inocência (que somente pode ser derrubada quando há prova da culpabilidade do agente).”.

O art. 306 do CTB ainda sofreu outra modificação, sendo sua redação atual: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Para nós houve ali uma tentativa do legislador de observar o Princípio da Ofensividade, uma vez que não basta agora a direção em estado de embriaguez para caracterização do delito, sendo necessária a alteração psicomotora.

Sobre o histórico de alterações do art. 306 do CTB e a proposição da necessidade de perigosidade real no crime abstrato (pág. 60) discorremos: “Pela redação original não bastava que o motorista estivesse sob efeito do álcool, pois era necessário demonstrar que ele dirigia expondo a perigo os demais motoristas e eventuais transeuntes, ou mesmo o patrimônio alheio a dano, ainda que em caráter potencial.

A partir de 2008 se estabeleceu uma presunção absoluta de que o motorista expunha a todos a risco pelo simples fato de dirigir tendo antes ingerido álcool (ainda que nada de anormal ficasse demonstrado quanto à sua forma de guiar o veículo). Na redação atual exige-se (a) não apenas a ingestão de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, senão também (b) que o motorista esteja sob a “influência” dessa substância e (c) que esteja dirigindo com sua “capacidade psicomotora alterada”.

Como se provam esses dois últimos requisitos: demonstrando-se no processo uma condução anormal (ziguezague, subir calçada, entrar na contramão, bater em um poste etc.). É isso que se chama “perigosidade real”. Sua comprovação derruba a presunção de inocência. Logo, o perigo abstrato de perigosidade real é o limite máximo permitido pelo princípio da ofensividade (que conflita totalmente com o perigo abstrato presumido). Contra o réu imputável nada pode ser presumido no direito penal.”.

E qual seria então a diferença entre o crime de perigo concreto e o de perigo abstrato de perigosidade real? No crime de perigo concreto, o perigo precisa de destinatário certo: por exemplo, em sua redação original o delito do art. 306 do CTB precisava para sua caracterização da embriaguez somada a direção perigosa que expunha concretamente alguém a dano (é preciso que haja no fato vítimas potenciais – é preciso expor a outrem).

Já pela redação atual basta a embriaguez somada à direção perigosa (ainda que não existam vítimas potencias). O cidadão que dirigir embriagado pela contramão comete o crime do art. 306 do CTB ainda que a rua esteja deserta. O comportamento é, no caso concreto, perigoso, ainda que não hajam bens jurídicos especificamente expostos ao perigo de dano.  O perigo é abstrato mas a perigosidade é real.

O STJ ao analisar o art. 310 do CTB, no entanto, pensou de forma diferente.

Vamos aprofundar um pouco uma das possibilidades da Súmula para entender como a mesma revisita problemas de aplicação que o Art. 306 do CTB já enfrentou. Uma das situações do art. 310 do CTB é a entrega da direção de veículo automotor a pessoa que não esteja em condições de conduzi-lo com segurança devido a problemas de saúde física ou mental.

Conforme a Súmula, é desnecessária a desconformidade a norma ou regulamento de trânsito durante a condução do veículo e a autuação se dará com base única e exclusivamente no estado de saúde do condutor.

Como o infrator não é obrigado a fazer prova contra si mesmo, independente dos sinais exteriores de sua moléstia, qual o fundamento técnico da materialidade de um eventual flagrante? As polícias militares e os DETRANs se utilizam do Anexo II da Resolução 432/2013 do CONTRAN, que elenca dezoito características a serem avaliadas para a constatação da embriaguez, para fundamentar tecnicamente a materialidade nas hipóteses do art. 306 (que vão desde a aferição de situações estritamente objetivas como o vômito ou a recordação do próprio endereço até itens inacreditavelmente subjetivos como arrogância ou desordem nas vestes). Seria o caso de também elencar os itens para aferição de todas as patologias existentes e então viabilizar a aplicação do art. 310 do CTB? Cremos que não. Não seria mais fácil restringir o 310 para as situações em que, no fato, houvesse perigosidade real?

A ideia é demandar ao menos a perigosidade real para manter os tipos de perigo abstrato para atender a teleologia da Constituição. O perigo abstrato de perigo presumido, no campo penal, é na verdade uma antecipação indevida nas considerações sobre o desvalor da conduta. Mas isso é um assunto para outro artigo. Ele (perigo abstrato presumido) vale para as infrações administrativas, não para o campo penal (que exige, no mínimo, perigo abstrato de perigosidade real). Não se comprovando a perigosidade real da conduta, aplicam-se os dispositivos administrativos. O bem jurídico não pode ficar sem nenhuma proteção”.”


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