Aspectos jurídicos do transexualismo.

"Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo.



RESUMO
A cirurgia de adequação de sexo é de natureza terapêutica, não se constituindo em uma violência punível. O indivíduo não quer simplesmente mudar de sexo.
A adequação lhe é imposta de forma irresistível; portanto, ele nada mais reclama que a colocação de sua aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo: o sexo psicológico. O direito, a psicologia e a medicina devem contribuir na diminuição do sofrimento das pessoas, reconhecendo o direito do transexual em adequar sua genitália e sua documentação.

Palavras-Chave: Identidade Sexual, Transexualismo, Aspectos Jurídicos

ABSTRACT
The Sex suitability surgery is of therapeutic nature, it isn’t a punishing violence.
The individual doesn’t want only. to change the Sex. The suitability is imposed to him in a irresistible way, so, he demands his physical appearence to be according to his true sex: the phychological sex. The law, the phychology and the medical science must contribute to the decrease af people’s suffering, recognizing the right of the transexual to suit his genitals and his documentation.
Keys-words: Sex Identity, Transsexual, Juridical Aspects

1. Nota introdutória
A problemática transexual vem suscitando grande interesse pela sua indiscutível atualidade, passando a integrar a pauta dos psicólogos e dos nossos tribunais, pois o sexo não pode mais ser considerado apenas como um elemento fisiológico, portanto, geneticamente determinado e, por natureza, imutável.
O progresso da Medicina permite, há algumas décadas, a adequação da genitália do indivíduo que possui a inabalável certeza de pertencer a outro sexo. Contudo, a realização de tal cirurgia apresenta diferentes questionamentos, sobretudo de ordem médico-jurídica. Em assim sendo, como deverão proceder os profissionais solicitados?
Qual a importância da participação do psicólogo? A quem incumbe a autorização para a cirurgia? Tal intervenção pode ser considerada mutiladora? O que dizer do consentimento do ofendido? Quais os critérios seletivos?
Indagações igualmente importantes emergem e reclamam soluções, como por exemplo: É necessário acompanhamento psicológico após a cirurgia? É possível a mudança de prenome e sexo no Registro Civil?
O que dizer das conseqüências para a sociedade, a família e terceiros ?
Poderia o ex-transexual, após a cirurgia, se casar? É frutífera a luta do ex-transexual pela guarda dos filhos? O transexualismo retira a idoneidadede um candidato à adoção?
O nosso universo jurídico responde claramente a essas questões, as quais são delicadas em seus desdobramentos, ou necessitamos legiferar sobre o assunto?
2.Conceito de transexual
Transexual, é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo uma concepção moderna,o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem.
Um transexual feminino é , evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de neurodiscordância de gênero.
Suas reações são, em geral, aquelas próprias do sexo com o qual se identifica psíquica e socialmente. Culpar este indivíduo é o mesmo que culpar a bússola por apontar para o norte.
O componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento.
Sua convicção de pertencer ao sexo oposto àquele que lhe fora oficialmente dado é inabalável e se caracteriza pelas primeiras manifestações da perseverança desta convicção, segundo uma progressão constante e irreversível, escapando a seu livre arbítrio.
3. Etiologia e tentativas terapêuticas
Existe muita controvérsia acerca da etiologia do transexualismo.
Entendemos que a transexualidade pode ser determinada por uma alteração genética no componente cerebral, combinando com alteração hormonal e o fator social (Quaglia, 1980, p. 2).
Atualmente, o transexualismo vem sendo enquadrado no âmbito das intersexualidades, visto que o hipotálamo do transexual o leva a se comportar contrariamente ao sexo correspondente à sua genitália de nascença.
Embora reconheçamos o elevado propósito da psicanálise na anulação dos distúrbios psíquicos originados no inconsciente dos seres humanos, facilitando, assim, a estabilidade emocional do indivíduo, não percebemos efeitos satisfatórios no sentido da reversibilidade do transexualismo em indivíduos adolescentes ou adultos.
Destarte, melhor solução não se apresenta atualmente que a cirurgia.
Uma triagem rigorosa em transexuais primários, maiores e capazes, deve ser observada visando assegurar as chances de sucesso na fase pós-operatória. Inclinamo-nos pela submissão do transexual a uma equipe multidisciplinar de profissionais especializados no assunto.
Tal quadro deve ser composto por, pelo menos, um endocrinologista, um psiquiatra, um psicólogo e um cirurgião plástico, os quais analisarão o grau de feminilidade ou masculinidade do paciente.
Assim, o papel do psicólogo é importantíssimo na indicação ou não para a cirurgia, bem como no pós-operatório.
4. Direito à identidade sexual
O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual, ou seja, à adequação de sexo e prenome, está ancorado no direito ao próprio corpo, no direito à saúde (arts. 60 e 196 da Constituição Federal), principalmente, no direito à identidade sexual, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal (Vieira, 1996, p.117).
Trata-se, destarte, de um direito da personalidade.
Direito à saúde vale dizer que, em caso de doença, cada um possui o direito a um tratamento condigno de conformidade com a situação atual da medicina, não submisso à sua condição financeira, sob pena de não ter muito significado o seu estabelecimento entre as normas constitucionais (Silva, 1994, p. 276 ).
5. Legislação de outros países
No direito comparado existe uma forte corrente favorável ao reconhecimento do transexualismo, seja por via administrativa, judicial ou legislativa.
As legislações sueca, alemã, holandesa, italiana e de certos estados dos Estados Unidos e do Canadá consagram os direitos dos transexuais.
Por outras vias, igualmente o reconhecem: Dinamarca, Finlândia, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, França, Suíça. Portugal, Turquia, Peru etc.
A doutrina nacional tem-se manifestado favoravelmente ao acolhimento do pedido. Tentativas de regulamentação da matéria já foram empreendidas, sem, no entanto, obterem o merecido êxito. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 70, de 1995, de autoria do deputado paulista José de Castro Coimbra, propondo alterações no art.129 do Cód. Penal e no art. 58 da lei de Registros Públicos.
Sem dúvida, a lei constitui uma base segura para a sentença de acolhimento do pedido de adequação. Contudo, a não previsão de forma explícita não é o suficiente para que os Tribunais recusem as novas descobertas da Medicina.
6. Licitude da intervenção cirúrgica
Trata-se de uma cirurgia em que o indivíduo não quer simplesmente mudar de sexo; esta adequação lhe é imposta de forma irreversível, portanto, ele nada mais reclama que a colocação de sua aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo.
Para nós, o escopo curativo da operação exclui que possa falar-se de contrariedade à lei e à ordem pública, visto que objetiva melhorar a saúde do paciente. Assim, poderá o médico não apenas ministrar medicamentos inibidores de características de um sexo e estimuladores do sexo oposto, mas também executar a cirurgia de adequação, constituindo exercício regular da profissão.
O transexual, por sua vez, exerce direito próprio, sem ofensa a direito alheio.
É evidente que o cirurgião plástico não poderá obrigar-se a conseguir resultado certo no tocante à cura do paciente que realiza tal cirurgia.
A obtenção do orgasmo ou prazer carnal é resultante da somatória de diversos fatores. O efeito estético deverá ser a semelhança ao sexo almejado, não se objetivando a perfeição. Todavia, a nova genitália deverá permitir ao operado a realização normal de suas necessidades fisiológicas.
Em questões trazidas à sua apreciação, a Comissão Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais a considera como uma conversão curativa com o fim de permitir a integração pessoal e social do doente ao sexo a que possui convicção de pertencer.
Em 17 de outubro de 1978, o jurista Heleno Cláudio Fragoso proferiu parecer sobre o caso Waldyr N. (Waldirene), onde entendeu que o cirurgião plástico Roberto Farina, condenado a dois anos de reclusão sob alegação de ter infringido o disposto no art. 192, § 2o, III, do Código Penal brasileiro, atuou estritamente dentro dos limites do exercício do direito (art. 23, III do Cód. Penal), não praticando crime algum.
Em 6 de novembro de 1979 a 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, por votação majoritária, deu provimento ao apelo e absolveu o acusado. Eis a ementa: “Não age dolosamente o médico que, através de cirurgia, faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica”.
Entendemos que o transexual não necessitará ingressar com ação em juízo para obter autorização para a realização da cirurgia, por ser a questão de competência médica, não demandando controle judicial, resolvendo-se de acordo com os princípios éticos.
Tal profissional tem formação específica, portanto conhecedor das minúcias que envolvem tão delicada cirurgia.
Assim, em 10 de setembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina , através da Resolução 1.482/97, resolveu autorizar, a título experimental, em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
A seleção dos pacientes, segundo a Resolução 1.482/97, obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar composta por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, após dois anos de acompanhamento conjunto.
Estabelece como critérios para os candidatos, além do diagnóstico médico de transexualismo, a maioridade de 21 anos e a ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
É exigido também o consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução CNS n. 196/96.
Alguns setores da Igreja Católica já se mostraram favoráveis à Resolução do CFM.
Afirma Dom Angélico Bernardino, bispo-auxiliar de São Paulo, que, “a cirurgia não é eticamente condenável se o transexual encontrar-se numa situação limite”.
Em 14 de outubro de 1997, o Magistrado paulista José Henrique Rodrigues Torres, em notável sentença proferida em Campinas, comparecer favorável do Promotor de Justiça, Arthur Pinto de Lemos Junior, autorizou Edilson M. a submeter-se à cirurgia.
Elencando diversas citações de especialistas no tema, o que muito nos honrou, o sage Juiz embasou sua decisão nos artigos 5º. III, 6º e 196 da Constituição Federal, no artigo 3º do Código de Processo Penal, nos princípios gerais de direito, nos princípios da jurisdição voluntária e nos artigos 1.104 e seguintes do Código de Processo Civil.
Edilson M. (Bianca) foi examinado minuciosamente no âmbito psicológico e também pelos peritos dos Departamentos de Medicina Legal, Genética Médica e de Endocrinologia da Unicamp, os quais atestaram sua transexualidade.
Essa cirurgia foi realizada com êxito por equipe chefiada pelo cirurgião plástico Jalma Jurado, no dia 8 de abril de 1998, em conjunto com equipe médica do Hospital das Clínicas da Unicamp.
A paciente mostrou-se bastante satisfeita com a intervenção cirúrgica.
Destarte, entendemos não ser criminosa a cirurgia porque não há dolo por parte do médico, não há intenção de mutilar, mas de curar, ou pelo menos amenizar o problema deste indivíduo.
Este, por sua vez, fornece o consentimento esclarecido.
Ademais, existem laudos psicológicos e médicos aconselhando a cirurgia para o restabelecimento da sua saúde. Não há tipicidade, pois, como sabemos, para que uma conduta seja considerada criminosa deverá estar tipificada de forma clara na lei. Não há crime, pois o agente (médico) pratica o ato no exercício regular de um direito (art. 23, III, Cód. Penal brasileiro).
Trata-se de uma cirurgia ética, autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1482, desde setembro de 1997.
Vale reafirmar que a cirurgia só deverá ser realizada com a aprovação de uma equipe multidisciplinar qualificada.
O progresso médico também ocorrerá no transexualismo, quando a prática das ablações será rejeitada; todavia, no momento, esta ainda é a melhor das soluções conhecidas.
7. Nome e sexo no Registro Civil
A adequação do Registro Civil, no que concerne ao prenome e ao sexo, é uma das últimas etapas a serem transpostas pelo transexual, a qual integra o tratamento.
Neste momento sim, deverá o transexual recorrer ao Judiciário.
Os países signatários da Convenção Européia dos Direitos do Homem têm acolhido o pedido de adequação de sexo do transexual verdadeiro, desde que esgotadas as vias internas de recursos.
Os Juizes da Corte Européia têm entendido que o não acolhimento do pedido é uma transgressão ao art. 8o da Convenção.
Eis o texto: “Toda pessoa tem direito ao respeito à vida privada e familiar de seu domicílio e da sua correspondência”.
O magistrado Henrique Nelson Callandra, da 7ª Vara de Família e Sucessões de São Paulo, em decisão inovadora, concedeu ao amazonense João Bosco L. N., o direito de se chamar Joana.
Tal sentença baseou-se em exames médicos, os quais, segundo Callandra, não provam que Joana se enquadra nas características físicas e psicológicas do sexo masculino ou feminino. Houve desistência por parte dotransexual que contentou-se apenas parcialmente com a decisão do Magistrado.
Havia decidido este que o requerente poderia fazer constar em sua Certidão de Nascimento, adiante da designação do sexo, a inscrição transexual.
É evidente que tal solução não satisfaz ao ex-transexual, visto que continuará sendo marginalizado e ridicularizado pela sociedade.
Em 21 de abril de 1989, o magistrado pernambucano José Fernandes Lemos julgou procedente o pedido de Severino do R. A, autorizando que se procedesse no assento do Registro Civil, a modificação do sexo, de masculino para feminino e, no prenome, de Severino para Silvia, cancelando, inclusive, os deveres de reservista.
Não se vislumbrou nenhuma hipótese em que pudesse ocorrer prejuízo à outrem.
O requerente “faz jus ao reconhecimento legal do gênero sexual que melhor se adapta à toda sua personalidade”, fundamenta o Juiz.
Eis a ementa: “Registro civil. Retificação. Modificação de sexo e prenome. Transexual. Cirurgia de emasculação, acrescida de implante de neovagina. Sexo psíquico reconhecidamente feminino. Pedido procedente.”
Mesma sorte não teve Roberta Close, pessoa que aprendemos a admirar e a respeitar.
Luís Roberto Gambine Moreira ingressou junto a 8a. Vara de Família do Rio de Janeiro, com o pedido de retificação de nome e sexo. Por fim, após três anos de embate judicial, no dia 10
de dezembro de 1992, a juíza Conceição Mousnier autorizou Roberta Close a usar o nome de Roberta Gambine Moreira.
Ao final da decisão, a Juíza ressalva: “Somente os casos comprovados clinicamente de transexualidade poderão ser objeto de conhecimento pela esfera judicial, que decidirá, neste ou naquele sentido, de acordo com a prova dos autos e conhecimento formado no caso”.
Todavia, a promotora Marilza Matos Mendes, recorreu da aludida sentença, argumentando que existem apenas dois sexos definidos e que Close nasceu homem, em que pese a intervenção cirúrgica.
Tivemos a oportunidade de conversar por diversas vezes com Roberta e esta em nenhum momento pareceu-nos um homem. Roberta é mulher e comporta-se com tal. A cirurgia corretiva tinha caráter terapêutico e serviu para reparar um erro ocorrido durante sua formação intra-uterina. (Vieira, 1999, p. 114).
Diversos transexuais já conseguiram em Juízo a adequação da documentação, sustentando hoje, eufóricos e felizes, prenome e sexo adaptados à sua realidade. Citaremos apenas alguns deles.
Grande parte prefere continuar no anonimato, solicitando, inclusive, que o feito se processe em segredo de justiça, dispensando publicidade sensacionalista.
É o caso de muitos ex-transexuais de São Paulo e de outros estados que auxiliamos judicialmente.
Em 20 de março de l994, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu ao bancário aposentado Rafael A.R. o direito de adequar sua documentação no que concerne ao sexo e ao prenome, passando a chamar-se Rafaela.
A decisão foi tomada por unanimidade.
Do mesmo modo, em 28 dezembro de 1995, o mesmo tribunal, após a Apelação do Ministério Público, reconheceu a Carlos H. B. F. o direito a adequar a sua Certidão de Nascimento, constando nesta onome Carla, do sexo feminino.
Em Joinville, em sentença proferida no dia 21 de junho de 1996, o esclarecido magistrado catarinense, Carlos Adilson Silva, deferiu a pretensão deduzida por Gilberto H. P. J., passando a constar Sarah C. P., do sexo feminino, sem qualquer referência, no registro, às alterações sofridas.
Contribuimos pessoalmente no fornecimento de supedâneos legais,doutrinários e jurisprudenciais para o aparelhamento da ação de A.T.
P.em um outro caso julgado pela justiça catarinense em 1997.
O magistrado Antonio Rêgo Monteiro Rocha sentenciou que “o fato de inexistir leis em nosso Código Civil e em nossa Lei dos Registros Públicos, que tratem sobre o assunto em tela, o problema sub judice não enseja a possibilidade de omissão judicial, mesmo porque o direito tem numerosas fontes (...) Aliás, entre a proliferação legislativa e a falta de leis, é preferível a última porque as relações sociais poderão ser reguladas através do pluralismo jurídico. (...)
O resultado da cirurgia a que se submeteu A. foi ruinoso a ele? A minha resposta é negativa porque, para que haja integração psicossomática do ser humano há necessidade do entrelaçamento sadio do corpo com a alma e da alma com o corpo. Ser humano sem interação psicossomática é homem dividido, impossibilitado de sentir-se feliz e de transmitir felicidade a outrem.(...)
Visando evitar um desenlace tão trágico e objetivando fazer com que a lei seja mais um recurso para a felicidade humana, o pedido inicial deve ser deferido.
Face ao exposto, julgo procedente o pedido de retificação de registro civil formulado por A. para, em conseqüência, determinar que em sua certidão de nascimento passe a constar o nome A.... do sexo feminino”.
Em 1997, a equipe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, coordenada pelo renomado legista Fortunato Badan Palhares, examinou e forneceu laudo médico atestando a transexualidade de Maria Tereza A., transexual feminino. Tal parecer foi fundamental para a procedência da ação impetrada em Sorocaba-SP, passando o transexual a chamar-se Luís Henrique A. .
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, também defende o direito do transexual em adequar sua documentação, no que concerne ao nome e ao sexo. Segundo ele, “de nada adianta superar esse impasse – a dicotomia entre a realidade morfológica e psíquica – se a pessoa continua vivendo o constrangimento de se apresentar como portadora do sexo oposto.”
Os representantes atuais do Judiciário e do Ministério Público têm acompanhado a evolução científica, reconhecendo a relevância do sexo psicológico.
Ademais, o advento da lei 9.708, de 18 de novembro de 1998, contribuiu para a adequação do nome, alterando a redação do art. 58 da lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), a qual prevê a imutabilidade do prenome.
A atual redação prescreve que “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único: Não se admite a adoção de apelidos proibidos por lei.”
De nada adianta ostentar um prenome pelo qual não é conhecido, que não o identifica, que não exprime a verdade. O registro deve estar em consonância com a realidade.
Aflora-nos uma questão bastante relevante no que toca à concessão legal de adequação do prenome e do sexo do transexual.
Deve-se realizar uma averbação no registro já existente ou deve produzir-se um novo?
Os Registros Públicos relatam fatos históricos da vida do indivíduo.
Assim, acreditamos que a adequação de prenome e de sexo deve constar para demonstrar que determinado indivíduo passa oficialmente, a partir daquele momento, e não do seu nascimento, a chamar-se fulano de tal, pertencente ao sexo X ( não retroativo).
Entendemos que os direitos dos transexuais e de terceiros estariam muito mais explicitamente assegurados se, no Registro Civil, constar a alteração ocorrida.
Trata-se de uma ação modificadora do estado da pessoa, com a adequação de sexo, devendo, portanto, ser averbada ( art. 29, & 1O., letra f , da lei 6.015/73).
Todavia, defendemos que não deverá ocorrer nenhuma referência à aludida alteração na Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Carteira de Trabalho, Cadastro Bancário, Título de Eleitor, Cartões de Crédito etc.
8. Repercussões na família
Fundada também sobre a sexualidade, a família é igualmente atingida pelo transexualismo, uma vez que a adequação de sexo exerce influência sobre as relações entre seus membros.
A partir do momento em que o direito admite a adequação de sexo deve ser coerente e reconhecer ao transexual o direito a contrair matrimônio.
A adequação de sexo dá ao transexual os direitos do seu novo sexo.
Dificilmente as tendências transexuais são supervenientes ao matrimônio.
Apesar dessa crença, entendemos que o celibato não deve ser imposto como condição para a realização da cirurgia. Visando, portanto, evitar desarranjos constrangedores ao cônjuge e à prole, o reconhecimento jurídico da adequação de sexo deve ser concedido apenas ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo.
Estando ainda o indivíduo sob a égide do casamento, assentimos que a cirurgia de adequação de sexo é motivo para a dissolução do vínculo, pela identidade de sexo dos cônjuges.
A sentença que ordena a adequação de sexo possui efeito ex nunc; no entanto, não está o transexual isento de prestar alimentos ao cônjuge e aos filhos.
Deve-se deixar a cargo do transexual a liberdade de informar ao outro cônjuge sua condição, pois não seria correto compeli-lo a confidenciar algo pessoal. Não deve o legislador intervir nessa autonomia; no entanto, o transexual que dissimulou sua condição deverá responder pela omissão.
A jurisprudência e a doutrina têm entendido como prazo de decadência, o de dois anos, para que o cônjuge exerça o direito de anular o casamento nos casos de erro essencial ( art. 178, § 7o, I, do Código Civil brasileiro).
O transexualismo por si só não retira do indivíduo a idoneidade e a aptidão para instruir uma criança. Tal circunstância não depõe contra a índole moral do indivíduo, nem vai de encontro aos interesses do adotado.
Assim, posicionamo-nos favoravelmente à adoção por parte de um transexual verdadeiro, por entendermos que este possui a capacidade de dar à criança a família que lhe falta.
9. Conclusão
O sexo não é mais considerado apenas como um elemento fisiológico, geneticamente determinado e, por natureza imutável.
A noção de sexo é complexa, tomando lugar os componentes genético, cromatínico, gonádico, anatômico, hormonal, social, jurídico e principalmente , o psicológico, os quais, normalmente estão em harmonia.
O transexualismo é uma anomalia da identidade sexual.
O transexual é um indivíduo que se identifica psíquica e socialmente com o sexo oposto ao que lhe fora imputado no Registro Civil.
Existe uma reprovação veemente de seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar. A convicção de pertencer ao sexo oposto é uma idéia fixa que preenche sua consciência, impulsionando-o a tentar por todos os meios conciliar seu corpo à sua mente.
Através dos séculos o transexualismo vem sendo confundido com outros estados comportamentais, patológicos ou não, tais como homossexualismo, hermafroditismo, travestismo, fetichismo, drag queen, transformismo etc.
Tomando por base a superioridade da alma sobre o corpo, máxima apregoada pela quase totalidade das religiões, podemos concluir que,no que toca ao transexualismo, deve prevalecer o sexo determinado pela alma.
Podemos assim concluir pela adequação do corpo à alma, ao sexo psicológico, favorecendo a cirurgia.
O direito à saúde, tutelado constitucionalmente por diversos países, é elemento incentivador primordial dos interesses do transexual em ver reconhecido o seu direito à adequação de sexo e do prenome.
O direito à busca do equilíbrio corpo-mente do transexual está ancorado, portanto, no direito ao próprio corpo, no direito à saúde e no direito à identidade sexual, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal.
Não pregamos que a liberdade do indivíduo deva suprimir ou eliminar a ordem, mas entendemos que a sociedade não é um quartel, onde quem não obedece às suas normas será expulso da corporação.
A transexualidade pode ser determinada por uma alteração no componente cerebral (que está relacionado ao mecanismo que permite desenvolver o gênero) combinada com alteração hormonal e o fator social.
Quando a transexualidade já está percucientemente arraigada após a puberdade do indivíduo, a aceitação do sexo anatômico é praticamente impossível.
Assim, devem os especialistas intentar uma ajuda efetiva ao indivíduo para que este venha a obter a tão sonhada harmonia, facilitando sua aparência morfológica-externa e a adequação do Registro Civil.
O tratamento cirúrgico é o que melhor satisfaz a realidade psíquica do paciente, sobrepondo-se às falhas das demais terapias.
Adequar o sexo não é uma questão de querer, mas de estar habilitado.
Normalmente, os transexuais querem se beneficiar do duplo tratamento: endocrinológico e cirúrgico.
O puro e simples consentimento do paciente não será suficiente para fazer cair por terra o princípio da integridade física. Para que tal fato ocorra este deverá estar atrelado a necessidade terapêutica comprovada.
O resultado de uma cirurgia de adequação de sexo, no tocante ao cirurgião plástico, não é a obtenção do prazer carnal ou orgasmo, mas sim o efeito estético que deverá ser a semelhança ao sexo almejado, não se objetivando, é claro, a perfeição absoluta.
Os princípios que guiam a responsabilidade civil médica também são aplicáveis à cirurgia plástica de adequação de sexo.
A licitude da intervenção cirúrgica deve ser admitida diante da comprovação da perturbação patológica e da imperatividade do tratamento.
Se um determinado tratamento for considerado legítimo por uma norma extrapenal não se pode considerá-lo como um ilícito penal.
Defendemos a adequação do prenome para os casos de transexualismo, mesmo que não se tenha o transexual submetido a uma prévia intervenção cirúrgica de adequação de sexo.
Há que se revelar aqui a sua aparência externa e o seu sexo psicológico. É legítimo o interesse do transexual em querer harmonizar o caráter feminino ou masculino do prenome à sua aparência.
Dificilmente as tendências transexuais são supervenientes ao matrimônio. Apesar dessa crença, entendemos que o celibato não deve ser imposto como condição para a realização da cirurgia. Visando, portanto, evitar desarranjos constrangedores ao cônjuge e a prole, o reconhecimento jurídico da adequação de sexo deve ser concedido apenas ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo. Estando ainda o indivíduo sob a égide do casamento, assentimos que a cirurgia de adequação de sexo é motivo para a dissolução do vínculo, pela identidade de sexo dos cônjuges.
A sentença que ordena a adequação de sexo possui efeitos ex nunc,, no entanto, não será o transexual isento da obrigação de prestar alimentos ao cônjuge e aos filhos.
Posicionamo-nos favoravelmente à adoção por parte do transexual verdadeiro, por entendermos que este possui a capacidade de dar à criança a família que lhe falta.
Acreditamos não haver necessidade de autorização do magistrado para a realização da cirurgia; esta decisão cabe à junta médica,munida de um parecer psicológico. Aquele deverá autorizar a averbaçãoda adequação de sexo e prenome no Registro Civil, caso lhe pareça justa a reivindicação.
Cabe lembrar sempre que o psicólogo possui a qualificação exigida para determinar se o indivíduo é um verdadeiro transexual ou não, pois está afeito à diferenciação dos diversos estados comportamentais.
Ele integra, com a junta médica, a equipe que autorizará ou não a cirurgia. Estes profissionais, posteriormente, também poderão ser indicados como assistentes técnicos ou peritos, no momento em que o transexual recorre ao judiciário para alterar seu Registro Civil.
Para nós, o transexual maior e capaz que se submete ao tratamento possui o direito à adequação de seu sexo, já resguardado, constitucionalmente, pelo direito à saúde.
A intervenção do legislador serviria apenas como um norteador para o juiz, o advogado e os profissionais ligados à terapêutica, os quais se sentirão mais seguros.
Ademais uma lei de tal importância poderá estabelecer os requisitos para a realização da cirurgia, obedecendo ao fim terapêutico e objetivando sempre a inserção do transexual na sociedade.
O homem tende a se livrar do preconceito a partir do momento em que tem acesso a um conhecimento científico do problema.
O preconceito não é inato e se apresenta como um produto da desinformação.
Os problemas dos transexuais não cessam com a realização das cirurgias, pois as dificuldades não são apenas médicas; elas são também éticas, jurídicas, religiosas, sociais etc.
Os transexuais não querem favores, querem igualdade de oportunidades e viver com dignidade e respeito.
Destarte, não pode o juiz estar atrelado a tradições e costumes já superados pela dinâmica da
vida. De que adianta a vida sem poder sentir-se vivo?
Referências bibliográficas
DE CUPIS, A. (196l). Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora.
QUAGLIA, D. (1980). O paciente e a intersexualidade. São Paulo: Sarvier.
SILVA, J. A. (1994). Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros.
VIEIRA, T. R. (1999). Bioética e direito. São Paulo: Jurídica Brasileira.
VIEIRA, T. R. (1996). Mudança de sexo: aspectos médicos, psicológicos e jurídicos. São Paulo:

Autora: TEREZA RODRIGUES VIEIRA ( Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Doutoranda pela Université Paris XIII). (e-mail:vieira@mgnet.com.br)


Fonte: >editora.metodista.br/Psicologo1/psi05.pdf<. Acesso: 22/04/2012

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