"O seminário "A saúde do trabalhador e os transtornos mentais à luz das recentes reformas trabalhistas", promovido pela Escola Judicial do TRT-15 na última sexta-feira (15/9), foi encerrado com o painel "Reparação dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais à luz da Lei 13.467/2017", que reuniu o desembargador João Batista Martins César, presidente do Comitê Regional de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da 15ª Região, e o juiz Guilherme Guimarães Feliciano, titular 1ª da Vara do Trabalho de Taubaté e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). A coordenação dos debates coube ao presidente do Tribunal no biênio 2014-2016, desembargador Lorival Ferreira dos Santos, que apresentou os palestrantes e comentou sobre a importância do evento. "Não adianta ficarmos lamentando os equívocos da reforma trabalhista. A nova lei tem de ser aprofundada e debatida, para podermos aplicar a CLT da melhor forma possível, pensando sobretudo nos princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho", conclamou o magistrado.
Mestre em direito pela Universidade Metodista de Piracicaba e professor da Faculdade de Direito de Sorocaba, com vários livros publicados, o desembargador João Batista focou sua exposição nos artigos que passam a compor o Título II-A da CLT, sobre dano extrapatrimonial. O magistrado, que também preside a 11ª Câmara e a 6ª Turma do TRT-15, lecionou que o dano de natureza extrapatrimonial (moral) deve ser reconhecido sempre que houver violação aos direitos de personalidade, aí incluídos todos os direitos que tenham relação com o princípio da dignidade da pessoa humana. Para o palestrante, a Lei 13.467/2017 avançou ao reconhecer que causa dano moral a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial não só da pessoa física, mas também da pessoa jurídica (artigo 223-B). Contudo, João Batista avalia que o legislador não pode restringir às pessoas diretamente ofendidas o direito à reparação. "E o direito de reparação dos pais, da esposa, dos filhos, em caso de morte do titular? Os danos indiretos ou ‘por ricochete' permanecem. Não o direito do falecido, mas o direito próprio dos seus dependentes, como dispõe o artigo 948 do Código Civil."
O magistrado questionou também o rol de bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física elencados no artigo 223-C da CLT, que inclui a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física, mas exclui, segundo ele, "outros bens relevantes, como a liberdade religiosa, por exemplo, protegida no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal. Embora o legislador não tenha deixado explícito, é evidente que se trata de um rol aberto".
O desembargador chamou a atenção ainda para a redação do artigo 223-E, que atribui a responsabilidade pelo dano moral a "todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão". "E a solidariedade na terceirização? O artigo 254 do Código Civil, por exemplo, diz que zelar pelo meio ambiente do trabalho é obrigação do tomador de serviço", questionou.
João Batista debruçou-se, em especial, sobre o artigo 223-G, que traz os elementos a serem considerados pelo juiz ao apreciar um pedido de indenização por dano moral e estabelece parâmetros para a valoração das indenizações, baseados no salário do lesado. Na sua avaliação, a tarifação das indenizações na Justiça do Trabalho é "evidentemente inconstitucional". "Não pode haver equidade quando se busca a padronização pelo nível de remuneração de quem foi lesado. Em seu artigo 5º, a Constituição Federal diz que a indenização deve ser proporcional ao agravo. E a Carta tampouco fixa limitação aos valores a serem indenizados", argumenta o palestrante, para quem a nova lei"é ainda reflexo de nossa cultura escravocrata, que não reconhece o valor social do trabalho e acredita que só o empregador contribui para o desenvolvimento do País, quando todos sabemos que, se não há trabalho, não há capital".
O magistrado reconhece a dificuldade em fixar o valor de uma indenização por dano extrapatrimonial de modo a que ela cumpra um efeito reparatório para quem sofreu o dano e um efeito punitivo e pedagógico para que o perpetrou. "É preciso levar em conta o direito jurídico lesado e também as circunstâncias fáticas. Mas como valorar a perda de um ente querido, considerando, como o filósofo Kant, que o ser humano é sempre um fim, nunca um meio?" , perguntou o palestrante. "A indenização é só um paliativo. É evidente que não poderia haver tarifação de qualquer tipo, muito menos vinculada ao salário recebido ou à profissão exercida pela vítima. Cada pessoa é única e insubstituível, com a sua diversidade. A tarifação do dano extrapatrimonial tem de estar amparada na dignidade da pessoa humana. A lei terá de ser interpretada pelos magistrados. Afinal, o que é dano leve? A inclusão do trabalhador em lista negra? A restrição ao uso do banheiro? O acidente de trabalho seria um dano grave? E o dano gravíssimo? A demissão de um trabalhador com câncer? Qual o critério? Vamos ter de construir isso juntos. Só o tempo vai mostrar."
João Batista advogou também que os honorários sucumbenciais só devem ser cobrados de quem teve o pedido de indenização negado, independente de o juiz ter concordado ou não com o valor pretendido. "Não pode haver sucumbência recíproca do pedido. Temos de fincar pé nisso, com base no parágrafo único do artigo 86 do novo Código de Processo Civil (CPC) [o artigo estabelece que, se um litigante sucumbir em parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e pelos honorários]e na Súmula 326 do Superior Tribunal de Justiça, que assegura que, na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca."
O magistrado criticou, por fim, o teor do artigo 223-A da CLT, que dispõe que apenas os dispositivos incluídos no Título II-A da CLT podem ser aplicados à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho. Para João Batista, a Lei 13.467 tem inconstitucionalidades formais e materiais graves, como a ofensa aos princípios da equidade e da igualdade, e o legislador não poderá impedir o magistrado de fazer uma interpretação sistemática da lei, sopesando a Constituição Federal de 1988, as convenções internacionais, os princípios e valores construídos ao longo da história do direito do trabalho (doutrina e jurisprudência), as normas do CPC e do próprio Código Civil. "O vetor interpretativo da lei devem ser os princípios da dignidade, da igualdade e da máxima efetividade dos direitos fundamentais. O papel do legislador acabou no momento da aprovação da lei. Agora é tempo de amadurecimento e interpretação da nova legislação pelo sistema da Justiça do Trabalho, que inclui não só os magistrados e procuradores do trabalho, mas também advogados e sindicalistas. É isso que vai prevalecer até que o Supremo se manifeste."
Falácias
O segundo palestrante iniciou sua participação questionando os pressupostos econômicos da reforma trabalhista, em especial a ideia de que o direito do trabalho é "inimigo" da produtividade das empresas. "Há uma década o Brasil esteve próximo do pleno emprego e tínhamos a mesma legislação trabalhista agora considerada um entrave ao desenvolvimento do País. Esse fundamento não se sustenta. O propósito da lei é a mediocrização do direito do trabalho, sua apequenização, com base no princípio da intervenção mínima do Estado", avaliou o juiz Guilherme Feliciano. Ele criticou sobretudo o fato de se negar ao juiz o exame de eventuais vícios nas negociações entre patrões e empregados. "O contrato de trabalho é o único negócio jurídico cujo teor não poderá mais ser analisado pelo juiz, que deverá se limitar a cuidar das questões formais, em flagrante violação ao artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal."
Doutor em direito penal e livre-docente em direito do trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, da qual é professor associado, o palestrante disse concordar com o colega João Batista em tudo, em especial em sua crítica à tarifação dos valores indenizatórios. Para Feliciano, que também é doutor em ciências jurídicas pela Universidade Clássica de Lisboa, a fixação de "bandas" deverá ser vetada pelo STF, a tomar pela decisão da Corte, em abril de 2009, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130. Por maioria, os ministros do Supremo decidiram que a Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967), que regulava o valor das indenizações por dano moral de forma tarifada, era incompatível com a atual ordem constitucional. "As bandas limitam a livre convicção motivada do juiz. Há que se aferir as circunstâncias do fato. Imaginem que o elevador de uma empresa despenca com o CEO da empresa, um trabalhador e um visitante. Pela nova lei, se o dano moral sofrido for considerado grave, o trabalhador e o executivo da empresa vão receber uma indenização de até 20 vezes o seu último salário. Já o visitante poderá reclamar na Justiça Estadual, e aí o céu é o limite. Isso fere a isonomia constitucional."
Feliciano lembrou que muitas inconstitucionalidades e incongruências da nova lei foram reconhecidas pelo próprio governo, que prometeu vetar alguns pontos por meio de medida provisória. "Até agora nenhuma MP foi editada. Somos a única magistratura limitada por lei a um regime de bandas, embora a Justiça do Trabalho seja a que mais tutela a personalidade humana. Cabe aos juízes do trabalho, no seu controle difuso de constitucionalidade, identificar a inconstitucionalidade da tarifação da CLT."
Já focando no tema central de sua palestra, o atual presidente da Anamatra (biênio 2017-2019) abordou os danos morais decorrentes das mudanças nos processos produtivos do final do século XX, em especial das novas formas de contratação e gerenciamento, como a terceirização e a subcontratação, que, segundo ele, têm "ganhado o imaginário dos empresários". Para o magistrado, ainda que essas mudanças tenham reduzido muito a margem de erro na produção, do ponto de vista humano as novidades foram trágicas, provocando transtornos mentais e comportamentais, entre os quais os mais frequentes são a depressão, o transtorno bipolar, o alcoolismo e o TOC (transtorno obsessivo compulsivo). Segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2003, 5 mil pessoas morrem diariamente durante o trabalho. Já as doenças ocupacionais, conforme o mesmo levantamento, somam 160 milhões de casos por ano no mundo. Só os transtornos mentais graves incapacitam de 5% a 10% da população ativa mundial, lecionou o palestrante.
Feliciano chamou a atenção ainda para o fato de que a lei não faz referência a dolo ou culpa, o que, segundo ele, permite que se atribua ao causador do dano responsabilidade objetiva ou subjetiva, dependendo da hipótese. "Se o dano implicar desequilíbrio ao ambiente do trabalho, podemos aplicar o artigo 14, parágrafo 1º, da lei que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente [Lei 6.938/1981], o qual obriga o poluidor, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade. Assim, em caso de depressão ou neurose profissional causadas por assédio, devemos reconhecer a responsabilidade objetiva da empresa por esse dano."
Na avaliação do palestrante, a tônica deve ser evitar o dano, com a incorporação, à lógica protetiva do direito do trabalho, de alguns princípios do direito ambiental, como o da proteção, inscrito no artigo 200, inciso VIII, da Constituição Federal, e o da precaução, estabelecido como Princípio 15 da Declaração da Rio 92, documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Conforme esse princípio, incorporado à Lei de Biosseguranca, quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. "Isso significa que, quando houver ameaça de dano, ‘in dubio pro natura', ou seja, ‘pro homine'. Se há dúvidas sobre o risco de uma caldeira explodir, desligue-se a caldeira."
O magistrado concluiu conclamando todos a "fazer uma boa limonada com o limão oferecido pelos legisladores. Temos um novo paradigma legal, mas por trás deles temos valores, princípios e regras constitucionais. Basta entender isso. Tudo o que se criou, se for compreendido com a lente da Constituição Federal, será para o bem".
Fonte: https://trt-15.jusbrasil.com.br/noticias/500450421/seminario-sobre-os-reflexos-da-reforma-trabalhista-na-saude-do-trabalhador-e-concluido-com-painel-sobre-acidentes-de-trabalho-e-doencas-profissionais. Acesso: 16/05/2018
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