“(Ir)retroatividade dos efeitos
patrimoniais no contrato de união estável - Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro
Publicado em 23/07/2015
Por Moacyr Petrocelli de Ávila
Ribeiro *
A união estável – caracterizada pela
união entre duas pessoas, do mesmo sexo ou de sexos diferentes, que possuem
convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família
– tem sido eleita como entidade familiar por muitos brasileiros. Por ser uma
relação de fato informal, não depende de nenhuma solenidade ou celebração para
produzir efeitos legais, como ocorre com o casamento.
É sabido, entretanto, que dentre
os principais efeitos desse arranjo familiar estão os patrimoniais. Vale dizer,
vivendo duas pessoas em união estável, a Lei Substantiva Civil preocupou-se em
disciplinar o patrimônio desse casal. Nesse particular, o art. 1.725 do Código
Civil estabelece que, na união estável, as relações patrimoniais entre o casal
obedecem às regras do regime da comunhão parcial de bens.
Frise-se, no entanto, que esta
regra sobre os efeitos patrimoniais da relação, assim como no casamento, pode
ser alterada pelo casal. Isso significa falar que os conviventes podem celebrar
um contrato escrito entre si estipulando regras patrimoniais específicas que
irão vigorar naquela união estável. Em síntese, a previsão do art. 1.725 do
Código Civil – que prevê o regime da comunhão parcial na união estável – é
regra supletiva, aplicável na inércia das partes. Destarte, quedando-se em
silêncio os conviventes a escolha é feita, supletivamente, pela lei.
A disposição legal referida
funciona, pois, como soldado de reserva, justamente por ser possível às partes,
mediante contrato escrito, estabelecer, quanto ao seu patrimônio, o que lhes
aprouver. É o famoso contrato de convivência. Cuida-se de pacto firmado entre
os companheiros, por meio do qual são disciplinados os efeitos pessoais e
patrimoniais da união.
Para o contrato de convivência a
lei apenas exige a apenas forma escrita, podendo ser instrumentalizado por
escritura pública ou escrito particular. No entanto, é altamente recomendável
que o contrato seja confeccionado por meio de escritura pública em um
tabelionato de notas, seguido, ainda, de seu registro nos cartórios de registro
civil das pessoas naturais e de registro de imóveis, garantindo-se, assim, sua
plena eficácia erga omnes. Em paralelo didático, pode-se dizer que, grosso
modo, o contrato de convivência é o pacto antenupcial da união estável. Diz-se
a grosso modo, justamente porque o pacto antenupcial exige a forma pública é
destinado ao casamento, enquanto o contrato de convivência basta a forma
escrita, sendo aplicável à união estável.
Importante observar que o
contrato de convivência, de per si, não cria a união estável, pois sua
constituição decorre do atendimento dos requisitos legais (art. 1.723 do Código
Civil). Em realidade, o contrato de convivência possui eficácia condicionada à
caracterização, de fato, da união. Isto é, a convenção não cria a união
estável, que se constitui pela observância dos requisitos previstos em lei, e
não pela vontade manifestada no contrato.
Ademais, o contrato pode ser
alterado a qualquer momento, podendo também ser revogado desde que seja a
vontade expressa de ambos os companheiros, já que a manifestação unilateral de
um dos conviventes não tem o condão de provar nada, nem o começo, nem o fim da
união estável.
Esclareça-se, por oportuno, que o
contrato de convivência também não se confunde com o contrato de namoro. Este
um contrato atípico em que as partes declaram ser de sua vontade não viver em
união estável, mas em mero namoro, sem o animus de constituir família.
Distingue-se o namoro da união estável pelo nível de comprometimento do casal,
e é enorme o desafio dos operadores do direito para estabelecer sua
caracterização e os efeitos jurídicos dele decorrentes.
Feitas essas considerações
preambulares, questão que se pretende enfrentar nessas breves notas é uma só:
podem os conviventes em contrato de convivência estabelecer efeitos patrimoniais
retroativos para a união estável? Em outras palavras, pode o casal estabelecer
que o regime de bens por eles eleito vale desde o início da sua união?
Em recente julgado, o Superior
Tribunal de Justiça entendeu pela impossibilidade de os conviventes atribuírem
efeitos retroativos (ex tunc) ao contrato de união estável, a fim de eleger
regime de bens aplicável ao período de convivência anterior a sua assinatura
(STJ – REsp 1.383.624-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª T., julgado em 2/6/2015).
Segundo o entendimento fixado, o
regime de bens entre os companheiros começa a vigorar na data da assinatura do
contrato, assim como o regime de bens entre os cônjuges começa a produzir
efeitos na data do casamento (art. 1.639, § 1º, do Código Civil). Em outros
dizeres, o contrato de união estável é plenamente válido, mas somente pode
gerar efeitos para o futuro, não sendo lícita a produção de efeitos pretéritos.
Incabível, pois, cláusula de retroatividade do pacto patrimonial celebrado
pelos conviventes.
Não se pode perder de vista que a
união estável, como situação de fato, não se sujeita a nenhuma solenidade.
Normalmente, concretizar-se-á com o decorrer do tempo, pois não há como saber
previamente se ela será duradoura e estável. Dessa forma, eventual contrato de
convivência pode ser formalizado a qualquer momento, seja na sua constância
seja previamente ao seu início. Isso se justifica, afinal, como não se submetem
às solenidades e rigores do casamento, os conviventes possuem maior liberdade
para decidir o momento em que vão celebrar o contrato.
O contrato de convivência possui,
portanto, grande elasticidade, permitindo às partes disciplinar suas relações
pessoais e patrimoniais, criando novos modelos de regimes de bens, definindo a
administração do patrimônio, comum e recíproco, estipulando comunhão em
percentuais diversos, enfim, tudo dentro das latitudes da autonomia privada.
Desse modo, a regulamentação das relações pessoais e patrimoniais por contrato
escrito será legítima, desde que as suas cláusulas não ofendam os direitos
pessoais dos conviventes, nem os princípios gerais de direito, nem o interesse
público ou os de terceiros.
Especialmente nesse ponto, por
questão de segurança jurídica, parece correta a interpretação dada pelo
Superior Tribunal de Justiça. Afinal, o Código Civil é claro no sentido de que,
no silêncio das partes, vigora na união estável o regime da comunhão parcial de
bens, ou seja, até que o contrato de convivência seja formalizado, vigora a
norma supletiva.
Nessa situação, para as relações
patrimoniais anteriores ao contrato, há presunção absoluta (juris et de jure) –
não se admitindo prova em contrário – de que os bens adquiridos de forma
onerosa na constância da união são frutos do esforço comum, adquiridos por
colaboração mútua, passando a pertencer ambos, em partes iguais. Instala-se,
pois, um estado de condomínio entre o par. Assim, adquirido o bem na ausência
de contrato escrito, ainda que por apenas um dos conviventes, transforma-se em
propriedade comum, devendo ser partilhado por metade na hipótese de dissolução
do vínculo.
No caso específico enfrentado
pelo Superior Tribunal de Justiça, como o contrato de convivência foi celebrado
oito anos após o início da união estável, concluiu-se que o ajuste era válido,
mas que somente geraria efeitos para o futuro, ou seja, não se admitiu a
atribuição de efeitos pretéritos. Dito de outro modo, fixou-se que a eficácia
do contrato de convivência é da data de sua formalização para frente, já que
não se pode permitir os efeitos pretéritos do ato, sob pena de se autorizar que
ocorra a modificação do regime de comunhão parcial que até então vigorava na
união estável.
É de se averbar que sobre os
efeitos do contrato de união estável, doutrinadores de renome, como Francisco
José Cahali, Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno, sustentam que na união
estável é possível a alteração a qualquer tempo das disposições de caráter
patrimonial, inclusive com efeitos retroativos, mediante singelo acordo despido
de caráter patrimonial, sob o argumento de que deve prevalecer o princípio da
autonomia da vontade.
Entretanto, conforme destacado
pelo Superior Tribunal de Justiça no julgado em comento, o art. 1.725 do Código
Civil autoriza que os conviventes formalizem suas relações patrimoniais e
pessoais por meio de contrato e que na ausência dele aplicar-se-á, no que
couber, o regime de comunhão parcial. Ora, enquanto não houver a formalização
da união estável, vigora o regime da comunhão parcial. Nessa linha de
pensamento, observe-se que, no caso, durante oito anos de convivência e diante
da ausência de contrato presume-se que vigia entre o casal o regime da comunhão
parcial de bens. Após, com a superveniência do ajuste, modificou-se o regime
para o da separação total de bens e lhe conferiu efeitos retroativos, como se o
outro jamais tivesse existido e produzido efeitos jurídicos. Conforme bem
delineado pelo relator, Ministro Moura Ribeiro, “admitir essa situação seria
conferir, sem dúvida, mais benefícios à união estável do que ao matrimônio
civil, bem como teria o potencial de causar prejuízo a direito de terceiros que
porventura tivessem contratado com eles”.
Adotando-se o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, dentro da esfera de atuação dos notários,
observando-se a profilaxia jurídica que lastreia a atividade notarial, no nobre
intuito de se evitar futuros litígios e garantir segurança jurídica ex ante, é
altamente recomendável que no contrato de convivência fique claramente
consignado que os efeitos patrimoniais decorrentes do regime de bens eleito pelos
conviventes passam a valer daquela data em diante, ressalvando-se expressamente
que eventuais reflexos patrimoniais anteriores ao pacto reger-se-ão pelo regime
da comunhão parcial de bens, nos termos do art. 1.725 do Código Civil.
* Moacyr Petrocelli de Ávila
Ribeiro é Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do
Município de Platina, São Paulo. Colunista do Colégio Notarial do Brasil -
Conselho Federal. Contato: moacyrpetrocelli@hotmail.com
O presente artigo é uma reflexão
pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB-CF”.
Acesso: 24/07/2015
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