“Decisão autoriza mudança em documentos de mulher transexual,
após pedido da Defensoria Pública de SP
Aos 24 anos, a jovem Marcela* poderá finalmente se ver livre
de uma companhia incômoda que sempre a seguiu aonde quer que fosse. Nascida com
o sexo masculino mas reconhecida desde criança como pertencente ao gênero
feminino, ela não terá mais que explicar quem é o tal de “Marcos”* que aparece
em seus documentos, toda vez em que precisar apresentá-los para fazer coisas
cotidianas como uma compra ou solicitar um serviço bancário.
“É uma carta de alforria. É um direito de todo cidadão poder
ir e vir sem passar por constrangimentos e humilhação. A sensação que tenho é
de dignidade”, diz Marcela. Uma sentença de 19/10, em ação judicial movida pela
Defensoria Pública de SP, garantiu o direito à alteração no registro civil de
Marcela. Em vez de “Marcos”, documentos como certidão de nascimento e carteira
de identidade passarão a mostrar o nome “Marcela”. No lugar do sexo
“masculino”, o “feminino”.
Documentos condizentes com a aparência de Marcela são o passo
que faltava para garantir uma existência digna a quem sempre viveu e foi
reconhecida socialmente como mulher. Uma vida com dignidade – um dos princípios
da Constituição Federal – pressupõe a garantia dos direitos da personalidade,
entre os quais a preservação da imagem e a ter um nome com o qual a pessoa se identifique
e que não lhe provoque constrangimento, argumentaram os Defensores Públicos
Julio Grostein, Raphael Bruno Aragão Pereira de Oliveira e Natalia Nissia
Nogueira Seco.
Constrangimentos
Graduada em Marketing, a assistente administrativa de escola
de computação gráfica esbarrou em Marcos ao tentar realizar o sonho de
construir uma carreira em instituição bancária. Há cerca de quatro anos, foi
aprovada entre 50 candidatos que concorriam a uma vaga em banco. Chamada para
entrevista, teve que explicar por que o nome de batismo não batia com a pessoa.
O entrevistador disse que seria “muito complicado” contratá-la, alegando que
haveria dificuldades na confecção de registros e contratos. Terminou por pedir
que ela assinasse um documento desistindo da vaga.
Na formatura do curso de Marketing, passou por um grande
constrangimento entre várias pessoas, quando ouviu de uma fotógrafa que devia
haver algum problema em seu diploma, pois ali constava o nome “Marcos”. O nome
masculino também levou Marcela a ser chamada de “fraudadora”, em uma das
diversas vezes em que apresentou o documento e foi detida ao tentar pagar pelas
compras em alguma loja.
Infância e família
As companhias femininas e brincadeiras com boneca e casinha,
tradicionalmente identificadas como de meninas, eram desde a infância a
preferência da jovem, que sempre contou com o apoio da família. “Sempre foram
bem compreensivos. Isso ajudou que minha mente não ficasse tão confusa, como
acontece com a maioria das pessoas nessa situação”, diz Marcela, que foi
“rebatizada” com esse nome pelo próprio pai. Ele e a mãe faziam questão de
explicar a situação aos professores da filha na escola, buscando evitar
constrangimentos à filha.
Na adolescência, uma alteração nos níveis hormonais provocou
o desenvolvimento das mamas e fez o corpo de Marcela tomar formas ainda mais
femininas, enquanto o rosto nunca desenvolveu barba. Ela tem cabelos longos,
voz e comportamento comumente identificados como femininos – seus irmãos mais
novos nem sequer sabem que nasceu com o sexo biológico masculino.
Cirurgia
Marcela não pensa em se submeter à cirurgia de
transgenitalização, pois a considera uma mutilação e está satisfeita com seu
corpo. O fato de não ter sido operada não impediu que a Juíza Ediliz Claro de
Vicente Reginato, da 4ª Vara da Família e Sucessões do Foro de Santo Amaro,
reconhecesse que ela, apesar do sexo biológico, identifica-se com o gênero
feminino. A Magistrada ressaltou também que a transexualidade não depende da
cirurgia de mudança de sexo.
Um relatório elaborado pela Psicóloga Marília Marra de
Almeida e pela Assistente Social Melina Machado Miranda, que atuam na
Defensoria Pública, ajudou a embasar a ação judicial. O documento atesta que
Marcela vive desde a infância uma patente inadequação entre o sexo biológico e
sua identidade de gênero. As impressões são reforçadas por laudos judiciais
psicológico e psiquiátrico.
Direito
“Não há como ser cidadão completo para o exercício pleno de
suas capacidades se lhe é negado o reconhecimento social enquanto pessoa do
sexo feminino, de acordo com a identidade de gênero”, argumentou a Defensoria
Pública na ação, ressaltando que a identidade de uma pessoa é uma construção
social e cultural derivada da autonomia do ser humano livre, pensante e capaz
de determinar suas próprias escolhas.
A Defensoria aponta que a Lei de Registros Públicos (lei nº
6.015/73) prevê que não devem ser registrados prenomes capazes de expor seus
portadores ao ridículo e possibilita o pedido de mudança do registro. O nome,
segundo a ação, existe para permitir uma plena e exata identificação de uma
pessoa na sociedade, não para causar-lhe constrangimento. Também faz parte dos
direitos da personalidade, que devem ser garantidos para preservar a dignidade
da pessoa.
A ação da Defensoria Pública de SP afirma, ainda, que a
instituição possui uma tese (nº 5) segundo a qual a cirurgia de
transgenitalização não é condição para que seja proposta ação para mudança de
registro civil. Essa ideia também se relaciona à garantia do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Planos
Os novos documentos de Marcela ainda não saíram. Para isso,
ela precisa esperar a Justiça expedir a certidão de trânsito em julgado da
decisão (ou seja, de que a sentença não pode ser alterada mais). Até lá, ela
terá que ter paciência. “Eu fico ansiosa só de pensar, em ter mais um ou dois
meses pela frente.”
Assim que passar por essa fase, Marcela pretende continuar a
estudar, oficializar o casamento com o homem com quem vive há cinco anos,
constituir uma família e tocar a vida. “Fazer tudo sem constrangimento.
Continuar a vida no mesmo ritmo em que estou, só que mais tranquila, com menos
peso na consciência”, diz.
* nomes fictícios”
Acesso: 26/11/2015
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