“Responsabilidade objetiva: o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor

JORGE A. Q. DE CARVALHO SILVA – Juiz de Direito
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Nos primeiros tempos do direito romano, a responsabilidade era objetiva, dissociada da noção de culpa e baseada na idéia de vingança privada, embora não tivesse nenhuma relação com o risco profissional, tal como hoje é concebido (1).
Com o tempo, abandonou-se a idéia de represália e, a partir da Lex Aquilia, desenvolveu-se a moderna noção de culpa do autor do dano (2), que progrediu com o direito de Justiniano até ser consagrada no Código Civil francês de 1804 (3).
Invertida a regra, a responsabilidade sem culpa tornou-se exceção à responsabilidade subjetiva e passou a ser tida como um sistema mais rigoroso, que poderia acarretar na prática conseqüências injustas.
O Código Civil brasileiro de 1916, inspirado no modelar e referencial Código Napoleão, representava a preponderância da responsabilidade subjetiva, calcada na culpa, pois seu art. 159 dispunha, de modo genérico, que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violasse direito, ou causasse prejuízo a outrem, ficava obrigado a reparar o dano.
Silvio Rodrigues, durante a vigência desse Código Civil, dizia que, dentro da concepção tradicional, a responsabilidade do agente causador do dano só se configurava se ele agisse culposa ou dolosamente, haja vista a prevalência da teoria da culpa em relação à do risco (4).
Contudo, havia no próprio Código Civil de 1916 artigos estabelecendo a responsabilidade independentemente de culpa, como os arts. 15 (responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causassem danos a terceiros), 1.101 a 1.106 (responsabilidade por vícios redibitórios) e 1.107 a 1.117 (responsabilidade por evicção), os dois últimos relativos à responsabilidade contratual (5).
O Código Civil de 1916 representava um modelo liberal-burguês, baseado numa sociedade agrária voltada para a exportação, em descompasso com a industrialização que ia tomando conta das economias européia e norte-americana no final do século XIX.
Nesses países, o advento da sociedade industrial — consistente na adoção de novas tecnologias, no desenvolvimento do maquinismo e no crescimento e concentração da população nas cidades —, multiplicara consideravelmente o número de acidentes envolvendo máquinas e vítimas, tornando a perquirição da culpa uma atividade complexa e, ao mesmo tempo, insuficiente para a responsabilização civil.
Pois ficara praticamente impossível à vítima provar a negligência, imprudência, ou imperícia, por exemplo, do maquinista, ou do dono da máquina industrial causadora do acidente, sobretudo porque ela não tinha conhecimento técnico para apontar a falha humana na manutenção ou condução do engenho.
Isso fez com que a doutrina, no final do século XIX, desviasse os olhos da culpa e voltasse a atenção para o risco criado pelo proprietário da máquina, deixando de lado exames de caráter subjetivo, cujo referencial era o comportamento do "homem médio".
Conseqüência foi o restabelecimento da antiga responsabilidade sem culpa, agora definida como responsabilidade objetiva e entendida como a responsabilidade segundo a qual a atividade criadora de risco é suficiente para responsabilizar quem a exerce, causando danos a terceiros, independentemente de ter agido com culpa ou dolo.
O direito brasileiro, sempre influenciado pela cultura européia, não ficou inerte à evolução da nova doutrina, cuja finalidade era eminentemente social. Antes mesmo do Código Civil de 1916 entrar em vigor, a responsabilidade objetiva logo foi recepcionada pela Lei n. 2.681/1912, que a estabeleceu para as empresas de transporte ferroviário.
Depois, o Decreto n. 24.687/1934 (Lei de Acidentes do Trabalho) fixou a responsabilidade objetiva do patrão pelo dano causado ao trabalhador, de que resultasse morte ou ferimento; esse encargo foi agravado pelo Decreto-lei n. 7.036/1944, que confirmou a responsabilidade mesmo no caso de culpa da vítima.
O Decreto n. 483/1938 responsabilizou o proprietário da aeronave pelos danos causados a pessoas em terra, por coisas que dela caíssem, assim como por danos derivados das manobras dos aviões em terra. Essas regras, não modificadas pelo Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei n.32/1966, alterado pelo Decreto-lei n. 234/1967), foram mantidas pelo atual Código Brasileiro da Aeronáutica (Lei n. 7.565/1986).
RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CDC
Durante muito tempo, falou-se na responsabilidade objetiva do Estado como exemplo maior para explicar a responsabilidade sem culpa, considerada exceção à regra da responsabilidade subjetiva. Da doutrina surgia a diferenciação entre as teorias da culpa administrativa, do risco administrativo (adotada pelo direito brasileiro) e do risco integral.
Citavam-se a Lei n. 2.681/1912 (das Estradas de Ferro), o Decreto n. 24.687/1934 (Lei de Acidentes do Trabalho) e a Lei n. 7.565/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), para justificar outros casos não envolvendo a atividade direta do Estado.
Contudo, foi com a chegada do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) que houve uma verdadeira reviravolta na doutrina e jurisprudência, que passaram a dar especial destaque à responsabilidade sem culpa.
Isso porque a lei de proteção do consumidor erigiu a responsabilidade objetiva à categoria de princípio, visando assegurar que o consumidor jamais ficasse indene por não provar a culpa do fornecedor de produto ou serviço.
Desse modo, estabeleceu-se a responsabilidade objetiva não só para o fato do produto ou serviço (acidentes de consumo), como também para os vícios do produto ou serviço (vícios de adequação) (6).
Segundo a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, regulada nos arts. 12 a 17 do Código de Defesa do Consumidor, o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o fornecedor de serviços respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos causados aos consumidores, por defeitos de fabricação, por vícios de informação ou, ainda, por defeitos relativos à prestação do serviço.
Conforme a responsabilidade por vício do produto ou serviço, regulada nos arts. 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor, os fornecedores de produtos ou serviços respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade, independentemente da verificação da culpa, conquanto a lei não o diga expressamente.
Todavia, é importante ressaltar que a responsabilidade por vício do produto ou serviço representa uma evolução da responsabilidade por vícios redibitórios (estabelecida nos arts. 1.101 a 1.117 do CC/1916 e repetida nos arts. 441/446 do CC/2002), conforme a qual o alienante responde perante o adquirente, sem ter agido com culpa (7).
Esse progresso pode ser constatado principalmente no fato de que, antes de o Código de Defesa do Consumidor entrar em vigor, não se falava em vício redibitório na prestação de serviço, mas tão-somente na coisa recebida em virtude de contrato comutativo, pressupondo-se o fornecimento de um produto.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CC/2002
Antonio Junqueira de Azevedo deu especial destaque ao caput do art. 5º da Constituição de 1988, ao deduzir do direito à segurança uma obrigação de segurança, que, por sua natureza, implicaria sempre a regra da responsabilidade objetiva de quem causasse dano à integridade física e psíquica de outrem, em qualquer tipo de situação (8).
Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a obrigação de segurança hoje adquiriu autonomia, existindo independentemente de contrato, pois "pode não haver contrato nem muito menos importa se o contrato é gratuito ou oneroso" (9).
Admitiu, contudo, a exceção da responsabilidade subjetiva para danos dessa natureza, desde que houvesse lei expressa, como o art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor (responsabilidade dos profissionais liberais), haja vista os preceitos decorrentes dos princípios jurídicos não serem absolutos (10).
O dispositivo constitucional citado, entretanto, não parece ter o alcance visado pelo ilustre professor, pois falar em garantia de inviolabilidade de direitos não significa, necessariamente, estabelecer um sistema de responsabilidade para a reparação de danos à integridade física e psíquica da pessoa humana (11).
Mas é importante ressaltar que o pensamento de Antonio Junqueira de Azevedo tem influenciado a doutrina e auxiliado quem defende que a responsabilidade objetiva, tal como se encontra hoje no Código Civil de 2002, está colocada hoje em pé de igualdade com a responsabilidade subjetiva, de maneira que uma não seja mais importante que a outra (12).
Assim, se por um lado o art. 186 desse mesmo código estabeleceu a culpa como requisito para a responsabilização civil (13), por outro, o art. 927, parágrafo único, definiu a obrigação de indenizar, independentemente de culpa, da seguinte forma:
"Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (14)"
Não há dúvida de que esse parágrafo único e o art. 186 do Código Civil de 2002 são cláusulas gerais (15,16) que possuem uma série de conceitos jurídicos indeterminados e normativos (como negligência, imprudência, dano, moral, atividade normalmente desenvolvida, risco), cujos sentido e alcance dependem de um juízo de valoração objetiva a ser feito pelo aplicador da lei (17).
Por isso Silvio Rodrigues, ao comentar o projeto de lei, dizia que a regra — hoje contida no parágrafo único do art. 927 —, abria uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade (18).
O parágrafo único do art. 927, pelo visto, é deveras amplo, abrangente o bastante para afastar a idéia de que seria exceção ao sistema da responsabilidade subjetiva.
Sua natureza genérica pode ser deduzida também da comparação com o art. 931 do mesmo código, este sim regra complementar e particular que responsabiliza os empresários individuais e as empresas, independentemente de culpa, pelos produtos postos em circulação.
A redação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, dada sua amplitude, ainda permite ao intérprete superar até mesmo o conceito de "atividade perigosa", pressuposto para aplicação da regra segundo boa parte da doutrina.
Ocorre que a redação original do projeto do Código Civil de 2002 falava em "grande risco para os direitos de outrem", enquanto as legislações italiana (19) e portuguesa (20), ao tratarem do assunto, diziam respeito à "atividade perigosa".
Isso levou parte do pensamento jurídico brasileiro a associar a atividade referida no parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002 com a "atividade perigosa" que contivesse em si "uma grave probabilidade, uma notável potencialidade danosa, em relação ao critério da normalidade média e revelada por meio de estatísticas, de elementos técnicos e da própria experiência comum (...)" (21).
O legislador, entretanto, ao excluir do Código Civil de 2002 a expressão "grande risco", que estava no projeto, deu a entender que qualquer atividade, normalmente desenvolvida, que, por sua natureza, implicar risco aos direitos de outrem, obrigará o autor a reparar o dano, independentemente do grau de periculosidade (22).
A posição liberal adotada no art. 927, parágrafo único, representa louvável progresso em responsabilidade civil, propiciando indenização a quem quer que sofra dano causado por qualquer tipo de atividade que, normalmente desenvolvida por outrem, possa, por sua natureza, implicar risco.
Ainda no que diz respeito aos atos ilícitos, a responsabilidade objetiva pode ser verificada no arts. 932 e 933, que estabelecem a responsabilidade dos pais em relação aos filhos; do tutor e curador em relação aos pupilos e curatelados; do empregador ou comitente quanto aos empregados e prepostos; dos donos de hotéis pelos hóspedes; e dos que gratuitamente houverem participado nos produtos de crime.
O art. 938 do Código Civil de 2002 manteve a responsabilidade objetiva daquele que habita prédio por dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido (regra contida no art. 1.529 do CC/1916).
No campo do direito administrativo, o Código Civil de 2002 repetiu o de 1916 e a Constituição da República, estabelecendo no art. 43 que as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causarem danos a terceiros.
Nas obrigações, o Código atual manteve como sendo objetiva a responsabilidade por vício redibitório (arts. 441 a 446), ampliando os prazos para o adquirente reclamar por defeito desse tipo.
Também a responsabilidade por evicção continuou sendo objetiva, porque o alienante permaneceu responsável, independentemente de culpa, pela perda da coisa em virtude de apreensão judicial ou policial (art. 447 a 457), quando o adquirente não sabia do risco ou se, dele informado, não o tinha assumido.
O Código Civil de 2002 deixou claro que a responsabilidade do transportador de pessoas é objetiva, haja vista não estar isento de reparar os danos causados por culpa de terceiro, ressalvada, porém, a força maior como excludente (arts. 734 e 735).
A responsabilidade objetiva ainda pode ser verificada nos arts. 884 a 886, relativos ao enriquecimento sem causa, e nos arts. 939 e 940, concernentes ao credor que demanda o devedor antes de vencida a dívida, bem como ao que o faz por dívida já paga (arts. 1.530 e 1.531 do CC/1916).
COMPARAÇÕES
Comparadas a responsabilidade objetiva estabelecida no Código Civil de 2002 e a firmada no Código de Defesa do Consumidor (1990), percebe-se que tanto o primeiro quanto o segundo adotaram a teoria do risco profissional, responsabilizando o fabricante, o prestador de serviço e também o comerciante pelos danos causados pelos produtos ou serviços colocados em circulação.
A prestação de serviço, conquanto não esteja inserida no art. 931 do Código Civil, que trata dos produtos postos em circulação, está contida na redação do art. 927, parágrafo único: "atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano (que) implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Conforme o Enunciado n. 42, da Jornada de Direito Civil, "o art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos" (23).
Pelo vício de segurança, o comerciante passa a ser responsabilizado não apenas subsidiariamente como estabelece o art. 13 do CDC, mas solidariamente, porque sua atividade pode ser interpretada como criadora de risco (art. 927, caput), na medida em que coloca produto em circulação (art. 931).
Comparado ao Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 é mais abrangente, porque estabelece a responsabilidade objetiva sem diferenciar a condição da vítima, consumidora ou não (se bem que o art. 17 do CDC seja norma de extensão, equiparando quaisquer vítimas do evento danoso aos consumidores).
Para quem sustenta que a culpa concorrente da vítima atenua a responsabilidade do fornecedor — a despeito de o art. 12, § 3º, III, do Código de Defesa do Consumidor mencionar culpa exclusiva —, o art. 945 do Código Civil de 2002 serve como reforço:
"Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano".
Essa é a posição de Carlos Roberto Gonçalves, para quem o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor, relativo à culpa exclusiva do consumidor, não teria mais aplicação (24).
Contudo, a idéia de revogação pela lei posterior (argumento do ilustre jurista) não leva em consideração o Código de Defesa do Consumidor como microssistema normativo, que estabelece regras e princípios próprios para as relações de consumo, somente modificáveis por normas da mesma natureza.
Ademais, porque a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço não admite discussão sobre a culpa do autor do dano, não há como aplicar aos casos relacionados a ressalva do art. 945 do Código Civil de 2002, que fala "em confronto com a (culpa) do autor do dano".
Se isso ocorresse, estaria sendo negada a natureza da responsabilidade objetiva, na medida em que a comparação das culpas (confronto) pressupõe a análise da culpa do autor do dano.
No campo das obrigações, especialmente no do vício redibitório, cuja responsabilidade se dá independentemente de culpa, o Código Civil de 2002 garantiu um prazo maior para o adquirente da coisa propor ação contra o alienante, ao adotar um sistema semelhante ao Código de Defesa do Consumidor.
Pelo Código Civil de 1916, o adquirente da coisa móvel só tinha 15 dias para enjeitar a coisa móvel (art, 178, § 2º) e seis meses para recusar a coisa imóvel, ambos a partir da tradição (art. 178, § 5º, IV).
O art. 445 do Código Civil de 2002 ampliou os prazos de 15 para 30 dias, no caso da coisa móvel, e de seis meses para um ano, no caso da coisa imóvel.
Tal como o art. 26, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, o art. 445 do Código Civil estabeleceu a regra de que o prazo começa a contar a partir do momento em que o adquirente tiver ciência do vício.
O § 1º do art. 445 do Código Civil, todavia, restringiu a aplicação dessa regra aos vícios que, por sua natureza, só puderem ser conhecidos mais tarde e ao definir um limite de 180 dias para bens móveis e um ano para imóveis, exceções não previstas no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor.
Por outro lado, o Código Civil de 2002 estabeleceu no art. 446 que não corre o prazo decadencial durante a constância da cláusula de garantia, não obstante o adquirente esteja obrigado a denunciar o vício nos trinta dias seguintes à verificação, sob pena de decadência.
Isso pode beneficiar o consumidor, porque parte da doutrina e jurisprudência tem entendido que as garantias legal e contratual se integram, iniciando-se ao mesmo tempo os prazos para reclamação, de maneira que expirado o prazo da garantia legal, restaria o término do prazo da garantia contratual.
CONCLUSÕES
No campo da responsabilidade aquiliana, o Código Civil de 2002 representa para a vítima um avanço em relação ao Código de Defesa do Consumidor, porque reforça a todos, consumidores ou não, a garantia da responsabilidade objetiva.
A despeito de não erigir a responsabilidade objetiva à categoria de princípio de indenização, tal como fez o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 coloca esse tipo de responsabilidade em pé de igualdade com a responsabilidade subjetiva, tornando possível ao intérprete utilizar a cláusula geral do art. 927, parágrafo único, para alcançar um número infindável de casos.
Com efeito, os conceitos "atividade normalmente desenvolvida", "natureza" e "risco", utilizados pelo mencionado artigo, dada sua indeterminação permitem ao intérprete aplicar a responsabilidade objetiva a todos os casos envolvendo danos à integridade física e psíquica da pessoa humana.
Nesse sentido, o Código Civil de 2002 recepciona a doutrina de Antônio Junqueira de Azevedo, para quem a violação do dever genérico de respeito à segurança da pessoa humana implica a responsabilização do autor do dano, independentemente de culpa.
No campo da responsabilidade contratual, o Código Civil de 2002 avança na responsabilidade por vício redibitório, ampliando os prazos para o adquirente não-consumidor exercitar seus direitos contra o alienante.
Dessa feita, pode-se concluir que o Código Civil de 2002 reforçou não só a garantia da vítima de ser indenizada pelo risco gerado por uma atividade normalmente desenvolvida por alguém (arts. 927, parágrafo único, e 931), como também a garantia do adquirente da coisa móvel ou imóvel em relação aos vícios redibitórios”.
Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva é juiz de Direito em São Paulo e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.
NOTAS:
José de Aguiar Dias acredita que a noção de culpa sempre fora precária no direito romano, onde jamais chegou a ser estabelecida como princípio geral ou fundamento da responsabilidade (Da Responsabilidade Civil, p. 42). Para Roberto Senise Lisboa, o direito primitivo dos povos demonstra que o causador do dano sempre foi considerado o responsável pelo prejuízo, sem nenhuma cogitação sobre culpa, sendo a responsabilidade objetiva uma velha teoria cuja existência antecede a teoria da responsabilidade subjetiva (Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 20 e 22).
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, p. 24.
O art. 1.382 do Código Civil francês, lei inspirada nas lições de Domat e Pothier, tem a seguinte redação: "Tout fait quelconque de l´homme, qui cause à autrui um dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer".
Curso de Direito Civil, p. 10 e 171.
José de Aguiar Dias cita como exemplo os arts. 1.519, 1.520, parágrafo único, e 1.529 (Da Responsabilidade Civil, p. 93).
Para Carlos Roberto Gonçalves, no CDC tanto a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço como a oriunda do vício do produto ou serviço são de natureza objetiva (Comentários, p. 85). Roberto Senise Lisboa também classifica a responsabilidade do fornecedor de produto defeituoso como objetiva (Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 57).
Roberto Senise Lisboa, nesse sentido, diz que a responsabilidade do alienante é objetiva (Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 55).
Art. 5º, caput, da Constituição da República: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)". (destacou-se)
Para Junqueira de Azevedo, o dever anexo de proteção, decorrente da boa-fé objetiva, pode ser considerado hoje autônomo, porque, no caput do art. 5º da Constituição da República, o direito à segurança pessoal adquiriu autonomia, reforçando a idéia de a responsabilidade objetiva não ser vista mais como exceção no direito brasileiro. Afirma o professor que, no caput do art. 5º, existe uma cláusula geral de segurança, fundamento para uma teoria desse tipo.
Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, p. 22.
, p. 22.
Tanto é que o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, declarou, recentemente, que a segurança de que trata o caput do art. 5º da Constituição diz respeito à segurança jurídica, revelando a seu modo uma interpretação diversa do sentido comum, de que o princípio refere-se à incolumidade física e psíquica da pessoa humana.
Esse é caso do Professor Gustavo Tepedino, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que fala em sistema dualista de responsabilidade no Código Civil de 2002 (http://www2.uerj.br/~direito/ publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino.html).
Art. 186: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
O projeto do CC/2002 tinha redação mais restritiva: "Parágrafo único. Também haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas".
Por cláusula geral, entende-se o tipo abrangendo genericamente situações não previstas na lei, pela impossibilidade prática de o legislador prever todos os casos possíveis relacionados à matéria regulada.
Fernando Noronha também defende ser o parágrafo único do art 927, do Código Civil de 2002, verdadeira "cláusula geral" (Direito das obrigações, p. 487).
Karl Engish, a propósito, lembra serem raros no Direito os conceitos absolutamente determinados, sendo os conceitos jurídicos predominantemente indeterminados (Introdução ao pensamento jurídico, p. 208 e 209).
Curso de Direito Civil, p. 176.
Art. 2.050 do CC italiano: "Chiunque cagiona ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, è tenuto al risarcimento se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno".
Art. 493, n. 2, do CC português: "Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir".
Bittar, Carlos Alberto. Responsabilidade civil, p. 93 e 94.
Merece destaque a interpretação dada pela Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (11 a 13 de setembro de 2002). Segundo o Enunciado n. 38, "a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade".
Promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ.
Comentários, p. 227-228.
BIBLIOGRAFIA
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