05/09/2012 - 10:35

É lição corrente na doutrina que o mero inadimplemento contratual não gera dano moral, tratando-se de simples percalço do cotidiano, o que é perfeitamente normal em uma sociedade em que contraimos uma série de obrigações e titularizamos direitos. Nesses casos, geralmente resolve-se o contrato, com o pagamento de perdas e danos.
Contudo, eventualmente o descumprimento de uma obrigação contratual será capaz de causar danos de natureza  extrapatrimonial à parte prejudicada pelo inadimplemento. Isso ocorrerá quando a falta de um dos contratantes violar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
A esse respeito, foi aprovado na V Jornada de Direito Civil – CJF/STJ o Enunciado nº 411, assim redigido: “Art. 186. O descumprimento de contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental protegido pela Constituição Federal de 1988.

Em outras ocasiões, tivemos a oportunidade de citar alguns casos em que o descumprimento de um contrato poderá ocasionar danos que extrapolam as raias da patrimonialidade, tais como a negativa de cobertura de doenças ou cirurgias por parte dos seguros de assistência à saúde (planos de saúde) e o atraso ou cancelamento de voos. Nada obstante, tendo em vista a vastidão do campo da responsabilidade civil, outras hipóteses envolvendo a possibilidade de danos morais decorrentes de inadimplemento contatual podem ser observadas na praxe forense.
A exemplificar esse tipo de violação, trago aos leitores a íntegra da didática e elucidativa sentença proferida pelo Juiz de Direito do TJPE – Luiz Mário Moutinho, que condenou uma concessionária de energia elétrica ao pagamento de verba compensatória por danos morais decorrentes de má prestação do serviço de fornecimento desse bem essencial.
Bons estudos!

TERMO DE AUDIÊNCIA PRELIMINAR – nos autos da AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS, processo nº. (…).2011.8.17.0001, tendo como partes Demandantes (…) e parte Demandada (…(, conforme melhor abaixo contém:
Aos 15 (quinze) dias do mês de março de 2012 (dois mil e doze), nesta cidade e Comarca do Recife, Capital do Estado de Pernambuco, pelas 15:30 horas, no 3º andar do Fórum do Recife, onde se achavam presentes o Dr. LUIZ MÁRIO DE GÓES MOUTINHO, Juiz de Direito titular desta 1ª Vara Cível da Capital, o (…)
Aberta e instalada a audiência, proposta a conciliação, esta restou frustrada e as partes disseram não mais pretender a produção de provas.
SENTENÇA.
Vistos, etc… 
(…), qualificados e regularmente representados, ingressaram com AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS contra (…), também identificada nos autos, dizendo que desde o dia 19/04/2011, a partir das 10h00min, as unidades consumidoras dos autores ficaram sem energia elétrica, não obstante terem sido feitas várias reclamações para a solução do problema, sendo certo que no dia seguinte a empresa mandou até o local um técnico, que constatou defeito na rede de distribuição, na parte externa.
Ressaltam que moram no conjunto habitacional e à exceção do módulo onde moram os autores, a energia foi restabelecida em todas as demais unidades.
Destacam que cumpriram com as obrigações de pagar a contraprestação pelo serviço e pedem, ao final, a concessão de medida liminar antecipatória para o restabelecimento do serviço, com a confirmação do provimento e a condenação da companhia ao pagamento de indenização de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a cada um dos autores, a título de danos morais, tendo em vista a demora no restabelecimento do fornecimento de energia. 
A peça vestibular veio acompanhada dos documentos de fls. 04/37, seguindo-se o despacho concessivo da liminar de fls. 38/39, ressaltando que os autores são beneficiários da assistência gratuita.
Expedida a comunicação processual da liminar, cumprida positivamente pelo oficial de justiça plantonista, fls. 40 e 40v, a companhia demandada atravessou a petição de fls. 42, habilitando o seu causídico, e mesmo antes da expedição da missiva citatória, a ré espontaneamente ofereceu a defesa de fls. 50/60, na qual afirma que agiu dentro das normas regulamentares do setor e atribui o evento gerador do alegado dano, de maneira genérica, a fato da natureza, indicando que na data do evento a cidade enfrentou um grande volume de chuvas.
Ao final, ainda no ataque meritório, afirma que não há comprovação de nenhum dano sofrido pelos autores, entendendo que o fato descrito na peça vestibular constitui simples desconforto.  
Os patronos dos autores ofereceram a réplica de fls. 64/66, sendo, na sequência, designada a audiência de que trata o art. 331, do CPC, realizada no dia de hoje, onde restou frustrada a tentativa de conciliação, pugnando as partes pelo julgamento antecipado da lide.  
É o que havia de importante para relatar. Decido.
A relação conflituosa é de consumo e, como tal, regida pela Lei 8.078/90, além das normas regulamentares do setor, sem prejuízo da incidência subsidiária da Lei 10.406/02, diplomas legais que devem ser interpretados à luz do fundamento e dos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Política de 1988. 
Nesse diapasão, para dizer o direito e solucionar o conflito, aplicarei no caso em exame, o art. 1º, III, art. 5º, V, X, XXXII e XXXV, art. 37, §6º, art. 170, V, todos da CF/88; art. 12 e ss., arts. 403 e 406, §único do art. 927, da Lei 10.406/02; além dos artigos 2º, 3º, 4º, caput, II, d, art. 6º, I, VI e X, art. 14, 22, estes da Lei 8.078/90; e artigos 20, 269, I, 273, 333, I e II, 334, III, e 461, todos estes do CPC. 
Definidas as balizas legais, passo a dizer o direito, subsumindo as normas em abstrato aqui referidas ao caso concreto. 
Restou incontroverso nos autos o fato constitutivo do direito dos autores, qual seja a suspensão do serviço ocorrida no dia 19/04/2011, por volta das 10h00min, e o seu não restabelecimento, pelo menos até o dia 21/04/2011, quando então a parte ré foi notificada sobre a antecipação de tutela concedida pelo juízo plantonista, merecendo registro de que a ré admite a ocorrência de tal fato, quando atribui o evento a fato da natureza. 
Portanto, restou provado nos autos que os autores ficaram sem o essencial serviço, por um prazo de, pelo menos, três dias, não trazendo a parte demandada prova de que o restabelecimento deu-se, pelo menos, no dia seguinte à sua intimação, preferindo sequer abordar o dia em que a energia foi restabelecida. 
O fato gerador do dano alegado, que constitui causa do pedido indenizatório é o retardo no restabelecimento da energia e este, de fato, ocorreu, pois os serviços públicos, concedidos ou não, segundo o texto constitucional, devem ser pautados pelos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e, especialmente para a resolução do conflito, da eficiência. 
No mesmo sentido, o art. 4º, VII, do CDC, estatui como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo, natureza que goza a relação controvertida, a racionalização e melhoria dos serviços públicos, sendo certo que os princípios constitucionais apontados e o princípio legal de consumo referido inspira o direito básico dos autores à adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral, nos termos do art. 6º, X, do CDC, conteúdo principiológico que também habita no disposto no art. 22, do CDC, segundo o qual os órgãos públicos, por si ou por suas concessionárias, como é a hipótese da ré, tem o dever legal de fornecer serviços adequados, eficientes, seguros, e quanto aos essenciais, ressalta o dispositivo, a necessidade da continuidade, sendo certo que energia elétrica, por óbvio, é serviço essencial. 
Também merece aplicação efetiva o princípio insculpido no art. 4º, II, alínea d, do CDC, que determina a ação governamental no sentido de que no mercado de consumo só existam produtos e serviços com adequada qualidade e desempenho. Sem dúvida alguma, a concessionária afastou-se de tais deveres jurídicos e, portanto, o seu comportamento omissivo, no retardamento do restabelecimento da energia, constitui ato contrário ao direito, o que lhe atribui natureza ilícita. 
A companhia sustenta que o retardo no restabelecimento do essencial serviço é fato que caracteriza mero aborrecimento do cotidiano e que, portanto, os autores deveriam demonstrar concretamente a alegada lesão aos seus bens imateriais. 
Sem sucesso a ré, na missão de se esquivar do pagamento da indenização que se anuncia.
As unidades consumidoras são residenciais e a experiência comum autoriza dizer que sem energia os consumidores contratantes e os demais habitantes de cada uma das unidades, que a consumidores se equiparam por força dos artigos 17 e 29, do CDC, ficaram privados do conforto do lar, do lazer dos equipamentos eletroeletrônicos, da alimentação saudável, sofrendo todos os demais inconvenientes que só foram experimentados pelas pessoas que antecederam a invenção da luz elétrica, por Thomas Edison, presumindo-se, portanto, o dano alegado.
Difícil justificar o óbvio, mas para não ser omisso, não há dúvida de que se a companhia tivesse cumprido o seu dever jurídico de prontamente restabelecer o serviço, os autores não teriam sofrido o que sofreram, logo, o dano alegado decorreu diretamente da omissão da concessionária. 
Presentes os pressupostos da pretensão indenizatória, dano, fato gerador e nexo de causalidade entre aquele e este, passo ao exame da desesperada excludente invocada pela parte ré, que diz, porém não prova, e nem pretendeu se desincumbir deste mister, que o atraso no restabelecimento do serviço decorreu de força maior.
Dizer e não provar é o mesmo que não dizer. Não é demais ressaltar que o ônus de demonstrar tal fato de excludente da obrigação de indenizar recai sobre os ombros da demandada, não só por força do art. 333, II, do CPC, mas especifica e especialmente, pelo disposto no art. 14, §3º, do CDC, que apesar de não se referir ao caso fortuito e força maior, nos seus dois incisos, trata da excludente que deve ser demonstrada pelo fornecedor. 
A omissão do aludido §3º, quanto ao caso fortuito e força maior, não afasta a incidência das referidas excludentes, porque ambas constituem princípios gerais do direito. 
Assim, reconhecidos os pressupostos do direito indenizatório e à míngua de excludente de responsabilidade, passo à fixação do quantum a ser pago pela ré a cada um dos autores, sendo certo que o montante tem por finalidade trazer uma satisfação mitigadora do sentimento negativo que habitou o ânimo de cada um deles, em razão do ilícito comportamento da ré, assim como servir de reprimenda para que esta não mais se comporte da maneira que se comportou. 
É da relação de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito entre o montante arbitrado para atingir os fins referidos que se materializa o princípio da proporcionalidade, e neste sentido entendo que o montante perseguido pelos autores, individualmente, demonstraram-se razoáveis, não importando, em hipótese alguma, a ruína da concessionária, que diante da sua capacidade econômica e do natural monopólio da atividade que explora, pode ser caracterizado como pequeno, se analisado apenas sob a essa perspectiva. Porém, o valor não pode se justificar um ganho injustificado para os autores. Nesse diapasão, os R$ 5.000,00 referidos revelam-se justos.
Isto posto, com base nos dispositivos legais referidos e nos fundamentos aqui suscitados, ACOLHO a pretensão autoral para ratificar os termos da antecipação de tutela, mandando que a ré restabeleça o serviço se ainda não o fez, no prazo de 24 horas e sob pena do pagamento da multa diária já arbitrada no provimento antecipatório do juízo plantonista, fls. 38/39, e ainda condenar a concessionária de serviço público demandada a a pagar, a cada um dos autores, a importância de R$ 5.000,00, montante que deverá ser atualizado pela tabela do ENCOGE da data de hoje até o efetivo pagamento, e acrescido dos juros de mora de 1% ao mês do dia 19/04/2011, até o efetivo pagamento, sendo aquele termo inicial a data do descumprimento contratual por parte da ré. Condeno a ré ainda ao pagamento da verba honorária de 15% sobre o total apurado através de simples cálculo matemático, sendo certo que este constitui o percentual máximo que pode ser fixado em favor dos patronos dos beneficiários de assistência judiciária, como é a hipótese dos autores, tudo nos exatos termos do §1º, do art. 11, da Lei 1.060/50, recaindo sobre os ombros da ré a obrigação de pagar as custas processuais que se não forem satisfeitas no prazo do art. 475-J, do CPC, determino que a secretaria expeça cópia da apresente para a PGE, a fim de lançar o montante na dívida ativa do Estado.
Fica intimada a parte autora de que se não requerer nenhuma providência no prazo de 6 meses, o feito será arquivado, em razão do art. 475-O, do CPC, ficando intimada também a parte ré de que se não cumprir a obrigação em 15 dias, espontaneamente, arcará com a multa de 10% de que trata o art. 475-J, do CPC. Publicada em audiência e intimados os presentes.
Como nada mais havia a registrar, determinou o MM. Juiz de Direito que se encerrasse o presente termo, (…)”


LUIZ MARIO DE GOES MOUTINHO -  Juiz de Direito


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