“REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO - POSIÇÕES DO STF
Info. 660, STF – 26.03 a 06.04
EMENTA:Plenário–Inquéritoe redução a condição análoga à de
escravo - 1
O Plenário, por maioria, recebeu denúncia oferecida contra
deputado federal e outro denunciado pela suposta prática do crime previsto no
art. 149 do CP (“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a
condições degradantes de trabalho,quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”). A
inicial acusatória narra — a partir de relatório elaborado pelo Grupo Especial
de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego — que eles teriam
submetido trabalhadores de empresa agrícola a jornada exaustiva e a condições
degradantes de trabalho, cerceando-lhes a locomoção com o objetivo de mantê-los
no local onde laboravam. Reputou-se não ser exigida, para o recebimento da
inicial, valoração aprofundada dos elementos trazidos, que seriam suficientes
para a instauração da ação penal. O Min. Luiz Fux acrescentou que o tipo penal
em questão deveria ser analisado sob o prisma do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana. Destacou que as condições de higiene, habitação,
saúde, alimentação, transporte, trabalho e remuneração das pessoas que
laboravam no local demonstrariam violação a este postulado e, ademais, configurariam
o crime analisado. Aduziu que a denúncia descreveria práticas delituosas
perpetradas no âmbito da estrutura organizada pelos representantes da empresa,
sendo certo que, em crimes societários, os criminosos esconder-se-iam por
detrás do véu da personalidade jurídica em busca da impunidade. Inq 3412/AL,
rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber, 29.3.2012.
(Inq-3412)
Inquérito e redução a condição análoga à de escravo - 2
O Min. Ricardo Lewandowski registrou que ao menos um dos
núcleos do tipo descrito no art. 149 do CP — submeter alguém a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva — estaria suficientemente demonstrado, sem
prejuízo de outros que fossem, eventualmente, melhor explicitados. O Min. Ayres
Britto, por sua vez, observou que além deste núcleo do tipo, a submissão a
condições degradantes de trabalho estaria presente. Asseverou, ademais, que o
art. 149 do CP não protegeria o trabalhador — tutelado pelo art. 203 do mesmo
diploma —, mas o indivíduo de maneira geral. No ponto, o Min. Cezar Peluso,
Presidente, divergiu, ao frisar que a origem histórica do crime de redução a
condição análoga à de escravo teria incluído o tipo na defesa da liberdade.
Entretanto, com a modificação advinda pela Lei 10.803/2003, o campo de proteção
da norma teria sido restrito às relações de trabalho, pela vulnerabilidade
imanente à condição do trabalhador. Assim, o objeto da tutela material seria a
dignidade da pessoa na posição de trabalhador, e não a liberdade de qualquer
pessoa. Bastaria, portanto, a demonstração do fato de trabalhador ser submetido
a condições degradantes, para que fosse caracterizado, em tese, o crime.
Reputou, por fim, que ambos os denunciados teriam o domínio dos fatos, ou seja,
não poderiam ignorar as condições a que os trabalhadores eram submetidos e,
portanto, seriam capazes de tolher a prática do crime. Inq 3412/AL, rel. orig.
Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber, 29.3.2012. (Inq-3412)
Inquérito e redução a condição análoga à de escravo - 3
Vencidos os Ministros Marco Aurélio, relator, Dias Toffoli,
Gilmar Mendes e Celso de Mello, que rejeitavam a peça acusatória. O relator
afirmava que os fatos nela narrados não consubstanciariam responsabilidade
penal, mas cível-trabalhista. Anotava que o simples descumprimento de normas de
proteção ao trabalho não configuraria trabalho escravo, o qual pressuporia
cerceio à locomoção, diante de quadro opressivo imposto pelo empregador. Nesse
sentido, o tipo penal versaria a submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
com sujeição a condições degradantes ou restrição da liberdade em virtude de
dívidas com o contratante. Afastava, também, o dolo por parte dos denunciados.
O Min. Dias Toffoli corroborava que o crime em questão tutelaria a liberdade
individual, que não teria sido atingida. O Min. Gilmar Mendes reforçava que dar
enfoque penal para problemas de irregularidade no plano trabalhista seria
grave, embora reconhecesse a necessidade de melhoria das condições de trabalho
de maneira geral. Assim, deveria haver outras iniciativas, além da punição,
para buscar soluções a respeito, especialmente nos setores econômicos mais
dinâmicos. O Min. Celso de Mello assentava que o fato de os denunciados
ostentarem a condição de diretor-presidente e diretor-vice-presidente da
empresa, por si só, não poderia justificar a acusação, sob pena de presunção de
culpa em âmbito penal. Não obstante, reconhecia a possibilidade de o Ministério
Público formular nova denúncia, em que as condutas fossem individualizadas. Inq
3412/AL, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber,
29.3.2012. (Inq-3412)
COMENTÁRIO
SÍNTESE: Trata-se de três julgados do STF, versando sobre a
configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149,
CP). Em dois casos iniciais consideram-se satisfeitos os elementos do tipo
penal. No terceiro caso há controvérsia acerca da natureza penal e/ou
trabalhista das irregularidades constatadas, prevalecendo a tese da atipicidade
penal e mera infração trabalhista. Ademais, é discutida a questão da
individualização das condutas e da responsabilidade subjetiva para a imputação
criminal neste e em outros casos.
COMENTÁRIOS AO JULGADO (Eduardo Luiz Santos Cabette*): O
artigo 149, CP tutela induvidosamente não somente a condição de trabalhador e
seus direitos, mas a própria liberdade e dignidade humanas. A pessoa é reduzida
a uma “condição análoga à de escravo” e não se fala em “escravidão”, uma vez
que esta como instituição já foi abolida há bastante tempo dos ordenamentos
jurídicos (ainda bem). Portanto, menciona-se redução à “condição análoga”, ou
seja, a uma situação semelhante ou similar àquela a que eram submetidos os
escravos, sofrendo exploração de sua força de trabalho, sem contraprestação e
em condições degradantes.
Conforme bem indicam os dois primeiros julgados,
encontrando-se tipificação do regime de trabalho e remuneração a que estavam
submetidas as vítimas em qualquer das descrições constantes no artigo 149, CP,
não há discussão acerca da necessidade de repressão penal. Ademais, havendo
elementos suficientes a indicarem que os acusados tinham ciência das condições
a que estavam submetidos os trabalhadores, a responsabilidade penal subjetiva
estará satisfeita, já que o crime é doloso, inexistindo previsão de figura
culposa.
Já o terceiro julgado é paradigmático para a devida aplicação
do artigo 149, CP de acordo com o Princípio da Fragmentariedade e do Direito
Penal como “Ultima ratio”, afora o Princípio da Responsabilidade Subjetiva,
ligado ainda aos Princípios Processuais do Devido Processo Legal e seus
corolários da Ampla Defesa e do Contraditório.
A fragmentariedade está a indicar que o Direito Penal é
apenas um dos ramos do Direito existentes para a solução dos conflitos sociais
e individuais, havendo outros instrumentos que, em certos casos, são até mais
adequados. Na verdade a fragmentariedade se completa com a “Ultima ratio” na
medida em que o Direito Penal na realidade não somente é uma das vias de
solução de conflitos, mas é aquela que deve ser utilizada somente em último
caso, quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes. No caso
específico do crime de redução à condição análoga à de escravo pode-se
vislumbrar que sua aplicação somente pode justificar-se em situações de suma
gravidade em que o tipo penal seja suficientemente satisfeito sob seu aspecto
formal e material. Realmente, conforme frisa o julgado do STF, meras
irregularidades ou descumprimentos de normas trabalhistas, por si sós, não
servem para a configuração criminal, devendo tais situações ser dirimidas no
campo respectivo, qual seja, o Direito do Trabalho. Afinal, como já disse
alguém, para abater pombos deve-se utilizar um estilingue e não um canhão.
Doutra banda, também destaca o terceiro julgado do STF a
necessidade de descrição das condutas dos supostos infratores da lei penal sob
seus aspectos objetivo e subjetivo. Isso é realmente imprescindível (vide
artigo 41 c/c 395, I, CPP), sob pena de violação da “responsabilidade
subjetiva” e admissão da vetusta e hodiernamente inaceitável “responsabilidade
penal objetiva”. Além disso, uma denúncia sem descrição adequada das condutas
dos imputados viola do Devido Processo Legal porque não é possível ao acusado
defender-se adequadamente das imputações, as quais sequer sabe bem quais sejam
(Ampla Defesa e Contraditório). Não basta, portanto, aduzir que os acusados
sejam administradores ou proprietários de uma fazenda, empresa ou qualquer
empreendimento no qual supostamente ocorra trabalho escravo. Mister se faz a
descrição das condutas perpetradas por tais pessoas que configurem a subsunção
formal e material ao tipo penal descrito no artigo 149, CP.
De acordo com o exposto, as decisões do Supremo Tribunal
Federal sob análise apresentam-se consentâneas com a melhor interpretação e
aplicação da legislação referente ao crime de redução à condição análoga à de
escravo, propiciando uma postura que promove o equilíbrio entre eficácia e
garantias penais e processuais penais, totalmente desejável em um Estado
Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS:
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial
artigos 121 a 212. Coleção Saberes do Direito. Volume 6. São Paulo: Saraiva,
2012.
AUTOR DOS COMENTÁRIOS: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado
de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em
Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal,
Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na
pós – graduação da Unisal”.
Acesso: 08/02/2015
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