domingo, 8 de fevereiro de 2015

CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO - POSIÇÕES DO STF

“REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO - POSIÇÕES DO STF

Info. 660, STF – 26.03 a 06.04

EMENTA:Plenário–Inquéritoe redução a condição análoga à de escravo - 1

O Plenário, por maioria, recebeu denúncia oferecida contra deputado federal e outro denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 149 do CP (“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho,quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”). A inicial acusatória narra — a partir de relatório elaborado pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego — que eles teriam submetido trabalhadores de empresa agrícola a jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho, cerceando-lhes a locomoção com o objetivo de mantê-los no local onde laboravam. Reputou-se não ser exigida, para o recebimento da inicial, valoração aprofundada dos elementos trazidos, que seriam suficientes para a instauração da ação penal. O Min. Luiz Fux acrescentou que o tipo penal em questão deveria ser analisado sob o prisma do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Destacou que as condições de higiene, habitação, saúde, alimentação, transporte, trabalho e remuneração das pessoas que laboravam no local demonstrariam violação a este postulado e, ademais, configurariam o crime analisado. Aduziu que a denúncia descreveria práticas delituosas perpetradas no âmbito da estrutura organizada pelos representantes da empresa, sendo certo que, em crimes societários, os criminosos esconder-se-iam por detrás do véu da personalidade jurídica em busca da impunidade. Inq 3412/AL, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber, 29.3.2012. (Inq-3412)

Inquérito e redução a condição análoga à de escravo - 2

O Min. Ricardo Lewandowski registrou que ao menos um dos núcleos do tipo descrito no art. 149 do CP — submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva — estaria suficientemente demonstrado, sem prejuízo de outros que fossem, eventualmente, melhor explicitados. O Min. Ayres Britto, por sua vez, observou que além deste núcleo do tipo, a submissão a condições degradantes de trabalho estaria presente. Asseverou, ademais, que o art. 149 do CP não protegeria o trabalhador — tutelado pelo art. 203 do mesmo diploma —, mas o indivíduo de maneira geral. No ponto, o Min. Cezar Peluso, Presidente, divergiu, ao frisar que a origem histórica do crime de redução a condição análoga à de escravo teria incluído o tipo na defesa da liberdade. Entretanto, com a modificação advinda pela Lei 10.803/2003, o campo de proteção da norma teria sido restrito às relações de trabalho, pela vulnerabilidade imanente à condição do trabalhador. Assim, o objeto da tutela material seria a dignidade da pessoa na posição de trabalhador, e não a liberdade de qualquer pessoa. Bastaria, portanto, a demonstração do fato de trabalhador ser submetido a condições degradantes, para que fosse caracterizado, em tese, o crime. Reputou, por fim, que ambos os denunciados teriam o domínio dos fatos, ou seja, não poderiam ignorar as condições a que os trabalhadores eram submetidos e, portanto, seriam capazes de tolher a prática do crime. Inq 3412/AL, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber, 29.3.2012. (Inq-3412)

Inquérito e redução a condição análoga à de escravo - 3

Vencidos os Ministros Marco Aurélio, relator, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que rejeitavam a peça acusatória. O relator afirmava que os fatos nela narrados não consubstanciariam responsabilidade penal, mas cível-trabalhista. Anotava que o simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não configuraria trabalho escravo, o qual pressuporia cerceio à locomoção, diante de quadro opressivo imposto pelo empregador. Nesse sentido, o tipo penal versaria a submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, com sujeição a condições degradantes ou restrição da liberdade em virtude de dívidas com o contratante. Afastava, também, o dolo por parte dos denunciados. O Min. Dias Toffoli corroborava que o crime em questão tutelaria a liberdade individual, que não teria sido atingida. O Min. Gilmar Mendes reforçava que dar enfoque penal para problemas de irregularidade no plano trabalhista seria grave, embora reconhecesse a necessidade de melhoria das condições de trabalho de maneira geral. Assim, deveria haver outras iniciativas, além da punição, para buscar soluções a respeito, especialmente nos setores econômicos mais dinâmicos. O Min. Celso de Mello assentava que o fato de os denunciados ostentarem a condição de diretor-presidente e diretor-vice-presidente da empresa, por si só, não poderia justificar a acusação, sob pena de presunção de culpa em âmbito penal. Não obstante, reconhecia a possibilidade de o Ministério Público formular nova denúncia, em que as condutas fossem individualizadas. Inq 3412/AL, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Rosa Weber, 29.3.2012. (Inq-3412)

COMENTÁRIO

SÍNTESE: Trata-se de três julgados do STF, versando sobre a configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149, CP). Em dois casos iniciais consideram-se satisfeitos os elementos do tipo penal. No terceiro caso há controvérsia acerca da natureza penal e/ou trabalhista das irregularidades constatadas, prevalecendo a tese da atipicidade penal e mera infração trabalhista. Ademais, é discutida a questão da individualização das condutas e da responsabilidade subjetiva para a imputação criminal neste e em outros casos.

COMENTÁRIOS AO JULGADO (Eduardo Luiz Santos Cabette*): O artigo 149, CP tutela induvidosamente não somente a condição de trabalhador e seus direitos, mas a própria liberdade e dignidade humanas. A pessoa é reduzida a uma “condição análoga à de escravo” e não se fala em “escravidão”, uma vez que esta como instituição já foi abolida há bastante tempo dos ordenamentos jurídicos (ainda bem). Portanto, menciona-se redução à “condição análoga”, ou seja, a uma situação semelhante ou similar àquela a que eram submetidos os escravos, sofrendo exploração de sua força de trabalho, sem contraprestação e em condições degradantes.
Conforme bem indicam os dois primeiros julgados, encontrando-se tipificação do regime de trabalho e remuneração a que estavam submetidas as vítimas em qualquer das descrições constantes no artigo 149, CP, não há discussão acerca da necessidade de repressão penal. Ademais, havendo elementos suficientes a indicarem que os acusados tinham ciência das condições a que estavam submetidos os trabalhadores, a responsabilidade penal subjetiva estará satisfeita, já que o crime é doloso, inexistindo previsão de figura culposa.
Já o terceiro julgado é paradigmático para a devida aplicação do artigo 149, CP de acordo com o Princípio da Fragmentariedade e do Direito Penal como “Ultima ratio”, afora o Princípio da Responsabilidade Subjetiva, ligado ainda aos Princípios Processuais do Devido Processo Legal e seus corolários da Ampla Defesa e do Contraditório.
A fragmentariedade está a indicar que o Direito Penal é apenas um dos ramos do Direito existentes para a solução dos conflitos sociais e individuais, havendo outros instrumentos que, em certos casos, são até mais adequados. Na verdade a fragmentariedade se completa com a “Ultima ratio” na medida em que o Direito Penal na realidade não somente é uma das vias de solução de conflitos, mas é aquela que deve ser utilizada somente em último caso, quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes. No caso específico do crime de redução à condição análoga à de escravo pode-se vislumbrar que sua aplicação somente pode justificar-se em situações de suma gravidade em que o tipo penal seja suficientemente satisfeito sob seu aspecto formal e material. Realmente, conforme frisa o julgado do STF, meras irregularidades ou descumprimentos de normas trabalhistas, por si sós, não servem para a configuração criminal, devendo tais situações ser dirimidas no campo respectivo, qual seja, o Direito do Trabalho. Afinal, como já disse alguém, para abater pombos deve-se utilizar um estilingue e não um canhão.
Doutra banda, também destaca o terceiro julgado do STF a necessidade de descrição das condutas dos supostos infratores da lei penal sob seus aspectos objetivo e subjetivo. Isso é realmente imprescindível (vide artigo 41 c/c 395, I, CPP), sob pena de violação da “responsabilidade subjetiva” e admissão da vetusta e hodiernamente inaceitável “responsabilidade penal objetiva”. Além disso, uma denúncia sem descrição adequada das condutas dos imputados viola do Devido Processo Legal porque não é possível ao acusado defender-se adequadamente das imputações, as quais sequer sabe bem quais sejam (Ampla Defesa e Contraditório). Não basta, portanto, aduzir que os acusados sejam administradores ou proprietários de uma fazenda, empresa ou qualquer empreendimento no qual supostamente ocorra trabalho escravo. Mister se faz a descrição das condutas perpetradas por tais pessoas que configurem a subsunção formal e material ao tipo penal descrito no artigo 149, CP.
De acordo com o exposto, as decisões do Supremo Tribunal Federal sob análise apresentam-se consentâneas com a melhor interpretação e aplicação da legislação referente ao crime de redução à condição análoga à de escravo, propiciando uma postura que promove o equilíbrio entre eficácia e garantias penais e processuais penais, totalmente desejável em um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS:

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial artigos 121 a 212. Coleção Saberes do Direito. Volume 6. São Paulo: Saraiva, 2012.

AUTOR DOS COMENTÁRIOS: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação da Unisal”.

Acesso: 08/02/2015

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