“Os novos direitos do empregado doméstico
Xerxes Gusmão: Mestre e Doutor
pela Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, Juiz Federal do Trabalho da 8ª
Região
O empregado doméstico sempre foi
uma categoria especial no Brasil, categoria à qual tradicionalmente se negaram
os direitos garantidos aos demais tipos de empregados.
Foi gradativamente que o
doméstico foi adquirindo os direitos que hoje possui, o que ainda não lhe
assegurou, entretanto, igualdade de tratamento com o empregado comum.
Diversos são os argumentos
utilizados para justificar tal diferença, dentre os quais o que conta com maior
adesão da doutrina e jurisprudência trabalhistas é o que sublinha a relação de
confiança essencial ao emprego doméstico, relação que garantiria um tratamento
diferenciado ao doméstico, “quase um membro da família”, mas que exigiria, em
contrapartida, um tratamento diferenciado também por parte do legislador, que
deveria ser mais “econômico” nos direitos a serem outorgados a este
trabalhador.
Apesar da sua força, este
argumento não tem impedido a concessão de novos direitos aos domésticos nos
últimos anos, tendência que se reforçou pela recente promulgação da Lei n°
11324, de 19 julho de 2006.
1. Definição do doméstico
O doméstico, como bem se sabe,
não é um empregado como qualquer outro. Ele tem não só direitos próprios. Ele
tem, também, uma definição própria, que diferencia esta categoria dos demais
tipos de empregados.
Nesse sentido, doméstico é o
empregado que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não
lucrativa à pessoa física ou à família, no âmbito residencial destas[1].
Desse modo, além de prestar os
seus serviços, de natureza não lucrativa[2], a pessoa física ou a família, em
âmbito residencial[3] - o que exclui a possibilidade do trabalho doméstico numa
empresa -, o doméstico deve, para ver configurado o seu vínculo empregatício,
prestar serviços contínuos.
Esse requisito da continuidade é
um importante elemento de distinção com relação ao empregado comum, cujo
vínculo empregatício depende somente da não-eventualidade dos seus serviços,
requisito interpretado de maneira menos restritiva do que a continuidade,
sinônimo de trabalho prestado várias vezes por semana[4].
Para ser um doméstico, portanto,
aquele que presta serviços, na casa de pessoa física ou de família, deve
fazê-lo várias vezes por semana, diferente dos outros empregados, que podem
prestar serviços só uma vez por semana e já serem considerados como
empregados[5].
Mas, se a definição já denota uma
diferença clara, são os direitos do doméstico que o distinguem nitidamente dos
demais empregados.
2. Direitos tradicionais do
doméstico
O doméstico representa uma
categoria que só conseguiu conquistar os seus direitos aos poucos.
Um primeiro marco nesse sentido
foi a promulgação da lei regulando a categoria, a Lei n° 5859, de 11 de
dezembro de 1972. Ela passou a garantir à categoria doméstica direitos como a
carteira de trabalho (art. 2°, I) e as férias anuais remuneradas (art. 3°),
então fixadas em 20 dias úteis.
Aos poucos, no entanto, outros
direitos foram sendo garantidos aos domésticos, como o vale-transporte,
previsto pela Lei 7418/85 como direito dos empregados comuns e dos domésticos.
Essa tendência foi acelerada com
a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, no parágrafo único do seu
artigo 7°, estendeu diversos dos direitos garantidos aos empregados urbanos e
rurais, e previstos no corpo deste artigo, aos empregados domésticos.
Foram, assim, estendidos ao
doméstico direitos relativos à sua remuneração, como o salário mínimo (art. 7,
IV), a irredutibilidade salarial (art. 7, VI) e o décimo terceiro salário (art.
7, VIII). O empregador doméstico deve, destarte, pagar treze vezes ao ano um
salário no mínimo equivalente ao salário mínimo nacional, salário que não pode
ser reduzido por ele.
Como ninguém vive somente de
trabalho, o legislador constitucional garantiu, também, o direito ao repouso
semanal remunerado, preferencialmente aos domingos (art. 7, XV) e às férias
anuais remuneradas[6] (art. 7, XVII) ao doméstico.
Outros direitos assegurados ao
doméstico pela Constituição Federal de 1988 foram a licença-maternidade, de 120
dias (art. 7, XVIII), e a licença-paternidade, de 5 dias (art. 7, XIX).
Por fim, o legislador
constitucional previu proteção ao fim do contrato de trabalho do doméstico,
garantindo-lhe o direito ao aviso prévio, de 30 dias (art. 7, XXI) e à
aposentadoria (art. 7, XXIV), nos mesmos moldes do empregado comum[7].
Esse rol de direitos do doméstico
foi aumentado recentemente, pela promulgação da Lei 11324/06.
3. Novos direitos do doméstico
A origem dessa Lei 11324 é
bastante curiosa, no entanto. O governo Lula, preocupado em estimular a
formalização do mercado de trabalho doméstico[8], editou uma Medida
Provisória[9] prevendo, simplesmente, a possibilidade de o empregador doméstico
deduzir, da sua declaração de imposto de renda, a contribuição paga ao INSS em
favor do seu empregado doméstico.
Levada a votação no Congresso
Nacional, essa MP acabou recebendo tantas emendas dos parlamentares que o
governo Lula se deparou com situação inusitada : ter de aprovar ou vetar uma
lei que previra uma série de novos direitos ao doméstico.
Direitos dos quais o mais
polêmico era a transformação do FGTS do doméstico em obrigatório, já que, até
então, o empregador doméstico podia escolher se inscrevia ou não o seu
empregado no FGTS.
A solução encontrada pelo
governo, desse modo, foi a de aprovar alguns e vetar outros direitos contidos
na lei, chegando-se à redação final da Lei 11324, aprovada em 19 de julho de
2006.
3.1. Direitos garantidos
Poucos sabiam, mas o empregador
doméstico podia, até a aprovação desta lei, descontar do seu empregado os
valores despendidos com a sua alimentação e moradia, no caso de ele morar e se
alimentar na casa do patrão. A Lei 11324 proibiu esse desconto, inserindo novo
artigo na Lei 5859/72 : “Artigo 2º-A. É vedado ao empregador doméstico efetuar
descontos no salário do empregado por fornecimento de alimentação, vestuário,
higiene ou moradia”.
Outro fato desconhecido de muitos
: antes da promulgação desta lei, o empregador doméstico podia exigir do seu
empregado o trabalho nos feriados, pois este direito tinha sido expressamente
excluído do doméstico pela lei específica dos feriados, a Lei 605/49. Ocorre
que tal exclusão foi expressamente revogada pela nova lei : “Art. 9º Fica
revogada a alínea a do art. 5º da Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949”. Em
outras palavras, o doméstico passou a ter direito ao repouso nos feriados
oficiais.
A Lei 11324 teve, ainda, uma
importante função : ela dissipou intrincada controvérsia relativa ao número de
dias de férias do doméstico[10]. A partir de julho de 2006, não resta dúvida :
o doméstico tem direito a férias anuais remuneradas de 30 dias corridos, como
os demais empregados[11].
Outro direito estendido à
doméstica, pela Lei 11324/06, foi a estabilidade da gestante. Alvo das mais
severas críticas da doutrina, o fato de a doméstica poder ser dispensada quando
grávida era permitido pela legislação anterior, mas não mais pelo novo artigo
4°-A da Lei 5859/72, cuja redação é clara : "Artigo 4º-A. É vedada a
dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada doméstica gestante desde a
confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto.” A doméstica que fica
grávida, portanto, somente poderá ser dispensada, a partir de agora, se cometer
falta grave, essa estabilidade indo do momento em que confirma a gravidez até 5
meses após o parto.
Trata-se, destarte, de alguns
direitos suplementares assegurados ao doméstico, direitos bastante relevantes,
sublinhe-se de passagem. Mas nem todos os direitos previstos no texto original
da Lei 11324 foram aprovados pelo governo Lula.
3.2. Direitos não garantidos
O centro da discórdia, durante os
dias que antecederam a decisão do governo federal, foi o FGTS, que passaria,
pela redação original da Lei 11324, a ser obrigatório.
Após ter consultado
representantes dos domésticos e da classe média, o governo decidiu vetar essa
parte da lei, afirmando ter apenas adiado a medida, a ser tomada em momento
posterior, por meio de novo dispositivo legal.
O fato é que o FGTS do doméstico
continuou, em razão disso, a ser uma mera faculdade do empregador, que decide
se inscreve ou não o seu empregado. Essa decisão do patrão é bastante
importante, aliás, pois, além de ser irretratável[12], ela implica em duas conseqüências
básicas : a obrigação de o empregador depositar, todo mês, 8% do salário do seu
empregado na conta vinculada deste[13]; e a de pagar, em caso de dispensa sem
justa causa do doméstico, uma multa equivalente a 40% do valor dos depósitos do
FGTS realizados durante aquele contrato de trabalho[14].
Mantido como facultativo foi
também o seguro-desemprego do doméstico, que continua tendo este direito
garantido somente quando inscrito no FGTS, uma faculdade do empregador, como
vimos. Desse modo, pela redação mantida do artigo 6-A da Lei 5859/72, o
doméstico poderá receber até 3 parcelas do seguro-desemprego, no valor de um
salário mínimo, se tiver sido incluído no FGTS pelo seu empregador.
Se é inegável o fato de que a
regulação do trabalho doméstico sofreu uma evolução, ainda há parte do caminho
a ser percorrido para chegarmos à justa igualdade de direitos com o empregado
comum.
Como justificar, por exemplo, a
ausência do direito a uma jornada de 8 horas de trabalho ao doméstico? Ou do
conseqüente adicional de horas extras quando tal jornada é ultrapassada? Ou,
ainda, como aceitar que o doméstico não tenha direito ao adicional noturno
quando exerce suas funções à noite[15]?
Se novos direitos foram
garantidos ao doméstico, ainda há outros a serem assegurados em futuras
reformas da legislação regulando o trabalho doméstico. Esperemos que este
futuro não se perca de vista”.
Notas:
[1] Definição contida no artigo
1° da Lei 5859/72, a lei que regula o trabalho doméstico no Brasil.
[2] Nesse sentido, o patrão não
pode exigir do seu empregado doméstico, por exemplo, que ele cozinhe para
festas nas quais se cobre um preço de entrada, pois isso configuraria uma
atividade lucrativa, impossibilitando a figura do empregado doméstico.
[3] O que não é sinônimo de
residência principal, a casa de veraneio ou de campo também se enquadrando
nesta definição.
[4] Não existe definição nas leis
de um número determinado de dias por semana suficientes para configurar essa
continuidade, mas a jurisprudência majoritária tem entendido que três vezes por
semana já são suficientes.
[5] Caso os outros elementos que
configuram o vínculo empregatício – pessoalidade, subordinação e onerosidade,
segundo o artigo 3º da CLT – estiverem presentes.
[6] Essas sem fixação da sua
duração exata, o que gerou enorme polêmica relativa ao número de dias de férias
do doméstico, pois a sua lei específica, a Lei 5859/72, fixou, como vimos, em
20 dias úteis as suas férias, mas o decreto regulamentador desta lei, o Decreto
71885/73, estipulou (art. 2°) a aplicação da CLT no que toca às férias do
doméstico, e a CLT passou a fixar, a partir de 1977, em 30 dias corridos o
prazo normal de férias do empregado, o que deveria, pelo texto do decreto
citado, ser estendido aos domésticos. Tal
polêmica só veio a ser dirimida recentemente, com a promulgação da Lei
11324/06, como veremos mais adiante.
[7] Hoje, portanto, o doméstico
pode se aposentar após 35 anos de contribuição, se homem, ou 30, se mulher, no
caso da aposentadoria por tempo de contribuição, ou 65 anos de idade, para o
homem, ou 60, para a mulher, no caso da aposentadoria por idade (segundo o
artigo 201, §7° da CF).
[8] Estimativas do IBGE indicam
que, de 6,5 milhões de empregados domésticos no Brasil, apenas 1,8 milhão
teriam, atualmente, suas carteiras de trabalho assinadas.
[9] Trata-se da Medida Provisória
de n° 284, de 15.2.06
[10] De que já tratamos em nota
anterior.
[11] Segundo a nova redação dada
ao artigo 3° da Lei 5859/72.
[12] Segundo a redação mantida do
artigo 2° do Decreto 3361/00, que regulamentou essa inclusão do doméstico no
FGTS.
[13] Que deve ser aberta em uma
agência da Caixa Econômica Federal, banco que funciona como agente operador do
FGTS.
[14] Essa multa, garantida a
todos os empregados comuns, em caso de dispensa sem justa causa, só é garantida
ao doméstico quando ele é inscrito pelo seu empregador no FGTS.
[15] Pela legislação atual,
trabalho noturno, nas cidades, é aquele executado entre as 22 horas de um dia e
as 5 da manhã do dia seguinte (segundo o artigo 73, §2º da CLT).
Acesso: 04/06/2015
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