REFORMA TRABALHISTA. ACESSO À JUSTIÇA AO POBRE. ADI 5766.


Valdete Souto Severo:Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
Jorge Luiz Souto Maior: Juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.
                                                                                        
Nossa intenção com esse texto é debater, academicamente, o voto já expresso pelo Ministro Luís Roberto Barroso, na ADI 5766, por meio da qual se questiona a constitucionalidade dos artigos 790-B (caput e § 4º), 791-A, § 4º e 844, § 2º da CLT, com a redação que lhes fora dada pela Lei n. 13.467/17 (a lei da “reforma” trabalhista).

​É importantíssimo estabelecer esse debate público porque o Ministro fez várias considerações valorativas que transbordaram a interpretação dos textos legais e que podem influenciar o posicionamento do STF nas diversas matérias afetas à “reforma” trabalhista. 
As considerações tiveram a relevante preocupação de advertir para a importância de se trazer, para o processo mental de atribuição de sentido jurídico à lei, a realidade atual das relações de trabalho, assim como de se avaliar as implicações econômicas das novas regras.

No entanto, tudo leva a crer que algumas questões não foram avaliadas da melhor forma pelo Ministro e tantas outras acabaram sendo desconsideradas. Por isso, é necessário e urgente instar o debate.

1. Interpretando ou legislando?

A ementa do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, na ADI 5766, foi assim redigida, conforme leitura feita na sessão de julgamento:

“As normas processuais podem e devem criar uma estrutura de incentivos e desincentivos que seja compatível com os limites de litigiosidade que a sociedade comporta. O descasamento entre o custo individual de postular em juízo e o custo social da litigância faz com que o volume de ações siga uma lógica contrária ao interesse público. A sobreutilização do Judiciário congestiona o serviço, compromete a celeridade e a qualidade da prestação jurisdicional, incentiva demandas oportunistas e prejudica a efetividade e a credibilidade das instituições judiciais, vale dizer afeta, em última análise, o próprio direito constitucional de acesso à justiça. Dessa forma, é constitucional a cobrança de honorários sucumbenciais dos beneficiários da gratuidade de justiça, como mecanismo legítimo de desincentivo ao ajuizamento de demandas ou de pedidos aventureiros. A gratuidade continua a ser assegurada pela não cobrança antecipada de qualquer importância como condição para litigar. O pleito de parcelas indevidas ensejará, contudo, o custeio de honorários ao final, com utilização de créditos havidos no próprio feito ou em outros processos. Razoabilidade e Proporcionalidade da exigência. Todavia, em resguardo de valores alimentares e do mínimo existencial, a utilização de créditos havidos em outros processos observará os seguintes critérios: 1) Não exceder a 30% do valor líquido recebido por aplicação analógica das normas que dispõem sobre o desconto em verbas alimentares; 2) Não incidir sobre valores inferiores ao teto do Regime Geral da Previdência Social, atualmente R$ 5. 645,80.
Também é constitucional a cobrança de custas judiciais dos beneficiários da justiça gratuita que derem ensejo ao arquivamento do feito em razão do não comparecimento injustificado à audiência. Respeito e consideração à justiça e à sociedade que a subsidia, ônus que pode ser evitado pela apresentação de justificativa para a ausência. Por fim, e igualmente constitucional o condicionamento da propositura de novação ao pagamento das custas judiciais decorrentes do arquivamento. Medida adequada a promover o objetivo de acesso responsável à justiça.
Dispositivo: Interpretação conforme a Constituição dos dispositivos impugnados para assentar como teses de julgamento: 1) O direito à gratuidade de justiça pode ser regulado de forma a desincentivar a litigância abusiva, inclusive por meio da cobrança de custas e de honorários aos seus beneficiários. 2) A cobrança de honorários sucumbenciais poderá incidir: 1. Sobre verbas não alimentares, a exemplo de indenizações por danos morais em sua integralidade. 2. Sobre o percentual de até 30% do valor que exceder ao teto do Regime Geral de Previdência Social, quando pertinentes a verbas remuneratórias. 3) É legítima a cobrança de custas judiciais em razão da ausência do reclamante à audiência, mediante sua prévia intimação pessoal para que tenha a oportunidade de justificar o não comparecimento.”

Da leitura da ementa extrai-se, de plano, a conclusão de que o Ministro, embora não tenha dito que os artigos postos em discussão são inconstitucionais, acabou fazendo-o por via transversa, já que, concretamente, para atender aos preceitos constitucionais, do modo como os vê, conferiu nova redação aos textos legislativos.

Restou claro que na visão do Ministro Barroso os artigos não podem ser aplicados em sua literalidade. Aliás, sob o angulo de visão dos defensores da “reforma”, o Ministro teria se recusado a aplicar a “reforma”.

Para que essa percepção não fosse ao ponto da explicitação de uma inconstitucionalidade, que seria um baque ainda maior para os objetivos da “reforma”, encontrou-se a saída de reescrever os textos legais.

Não nos parece, no entanto, que seja legítimo ao Poder Judiciário, sob o pretexto de salvar a obra legislativa, se colocar na posição do Legislativo e reescrever o texto legal.

Além disso, a ementa é contraditória. Ao mesmo tempo em que admite que os créditos obtidos no processo em que haja o “pleito de parcelas indevidas”, sem qualquer limitação, sejam utilizados para pagamento dos custos do processo, fixando restrição apenas para os “créditos havidos em outros processos”, com relação aos quais se deve observar os critérios de: “não exceder a 30% do valor líquido recebido por aplicação analógica das normas que dispõem sobre o desconto em verbas alimentares” e de “não incidir sobre valores inferiores ao teto do Regime Geral da Previdência Social, atualmente R$ 5. 645,80”; mais abaixo, no dispositivo, mistura tudo e estabelece novos critérios, chegando até mesmo a abandonar a diferenciação em torno das “verbas alimentares”, que passam a ser tratadas como “verbas remuneratórias”.

No dispositivo da ementa consta o seguinte:

“A cobrança de honorários sucumbenciais poderá incidir: 1. Sobre verbas não alimentares, a exemplo de indenizações por danos morais em sua integralidade. 2. Sobre o percentual de até 30% do valor que exceder ao teto do Regime Geral de Previdência Social, quando pertinentes a verbas remuneratórias. 3) É legítima a cobrança de custas judiciais em razão da ausência do reclamante à audiência, mediante sua prévia intimação pessoal para que tenha a oportunidade de justificar o não comparecimento.”

Ou seja, para consertar a lei, o Ministro criou, arbitrariamente, uma normatização mais confusa que a da própria lei. Como se diz, popularmente, “a emenda ficou pior que o soneto”, ou, no caso concreto, “a ementa ficou pior que a lei”.

2. Redução de custos não amplia o mercado de trabalho

Os pressupostos de todo o raciocínio expresso no voto do Ministro relator Luís Roberto Barroso estão lançados, expressamente, no início de sua fala, quando, após dizer que “em uma sociedade desigual, um dos principais papéis do Estado é contribuir para a redução da desigualdade e para o enfrentamento da pobreza” e que isso depende do “crescimento econômico e da distribuição justa de recursos”, afirma textualmente:

“as diretrizes que pautam o raciocínio que a seguir vou desenvolver são as seguintes: Qual dentre as interpretações possíveis facilita o crescimento com a expansão do mercado de trabalho? Qual dentre as interpretações possíveis produz a melhor alocação de recursos sociais, porque isso é imprescindível para a distribuição de justiça e de riqueza?”

Vê-se, claramente, que o Ministro fez uma escolha axiológica, para determinar quais deveriam ser os objetivos da lei: ampliar o mercado de trabalho e distribuir justiça e riqueza.

​Há, no entanto, arbitrariedade na escolha e ilusão quanto aos efeitos.

Ora, como disse o próprio Ministro, o crescimento econômico é o determinante na produção de empregos e, portanto, não é a lei que amplia o mercado de trabalho. A lei, primeiro, regula o mercado de trabalho, visando a preservação de valores humanos sem os quais a sociedade se desfaz e que nenhum sucesso econômico é, por si, capaz de reverter, e contribui para uma melhor distribuição da riqueza produzida.

Não se pode imaginar que o Direito possa gerar crescimento econômico e muito menos que a isso se chegue com a mera redução dos custos representados pelas normas jurídicas que estipulam valores humanos mínimos aos trabalhadores.

Como consagrado desde o Tratado de Versalhes, quando se criou a Organização Internacional do Trabalho, 1919, “o trabalho humano não é simplesmente mercadoria de comércio” e este compromisso foi internacionalmente assumido pelos diversos países exatamente para que não se buscasse nunca mais a solução de problemas econômicos por meio da eliminação da condição humana dos trabalhadores.

Então, as garantias jurídicas trabalhistas não são equações matemáticas das quais se pode abrir mão. São isto sim os valores que se entendem necessários respeitar para que se possa construir uma sociedade que se rege pelo império da paz social. Os custos desses direitos, portanto, constituem um “problema” que a economia deve obrigatoriamente observar.

O “mercado de trabalho” não é um ente com vida própria, mas sim o resultado da circulação de riquezas. Em um país capitalista, não há produção, nem circulação de riquezas, sem emprego, com salário adequado e tempo para o consumo. Trata-se de dois fatores que já eram apontados desde o início da regulação especial das relações de trabalho pelos estados capitalistas e, portanto, desde o Século XVIII.

Não é possível, pois, considerar que se possa, pela via da interpretação da lei, ampliar o mercado de trabalho.

3. Crença sem história

Na sequência, o Ministro Barroso promete que vai introduzir uma análise empírica, fazendo-o nos seguintes termos:

"Depois de ter estabelecido que essas são as premissas interpretativas que irei adotar, eu gostaria de compartilhar três experiências, três precedentes que marcam o modo como eu interpreto esta matéria que está sob julgamento."

A abordagem é, na verdade, autorreferencial. O Ministro não faz uma investigação empírica para encontrar as respostas das perguntas que formulou inicialmente. De fato, já possuía um posicionamento, deslocado de qualquer análise fática, e é esse seu modo pessoal de compreender alguns institutos jurídicos que chama de “experiência”.

Ao trazer essa “experiência”, ou como chama o Ministro, compartilhar “essa primeira crença”, ele afirma que “proteção fora da justa medida desprotege além de infantilizar indivíduos, que precisam ser autônomos e precisam ser responsáveis pelas decisões que tomam”. Menciona o “efeito sistêmico negativo que o excesso de protecionismo, muitas vezes, acarreta”.

Essas considerações, no entanto, não possuem qualquer base científica. Aliás, são baseadas, como o próprio Ministro pontua, em uma “crença” e nos parece pouco adequado que se firmem posicionamentos judiciais, ainda mais na Corte Suprema do país, com base em “crenças”.

Essa “crença” de que “proteção fora da justa medida desprotege além de infantilizar indivíduos, que precisam ser autônomos e precisam ser responsáveis pelas decisões que tomam” era a que imperava no século XVIII e que, mantida prevalecente no século XIX, gerou todo o desajuste social e econômico que conduziu a humanidade a duas guerras mundiais.

A “crença” do Ministro remete aos postulados básicos de um Direito na ordem liberal[i]quando se considerava que: a) a preocupação com o próximo decorre de um dever moral: tornar esse dever uma obrigação jurídica elimina a moral que deve existir como essência da coesão social; b) todo direito obrigacional emana de um contrato: a sociedade não deve obrigação a seus membros; só se reclama um direito em face de outro com quem se vincule pela via de um contrato; c) a desigualdade social é consequência da economia (e a igualdade, também): quando o Direito procura diminuir a desigualdade, acaba acirrando a guerra entre ricos e pobres (ricos, obrigados à benevolência, buscam eliminar o peso do custo de tal obrigação; pobres, com direitos, tornam-se violentos); d) a fraternidade é um conceito vago que não pode ser definido em termos obrigacionais; e) o Direito só tem sentido para constituir a liberdade nas relações intersubjetivas, pressupondo a igualdade (a ordem jurídica tem a função de impedir os obstáculos à liberdade); f) o Direito não pode obrigar alguém a fazer o bem a outra pessoa; g) “em uma sociedade constituída segundo o princípio da liberdade, a pobreza não fornece direitos, ela confere deveres”[ii].

Como consequência lógica, dizia-se que os riscos a que se sujeitam os trabalhadores em um ambiente do trabalho não podem ser imputados a quem os subordina e muito menos à sociedade[iii].

Queria se crer que as incertezas da vida e os seus riscos atingiam a todos igualmente; não se tratava, pois, de atributo de uma certa classe social. Assim, caberia a cada um ganhar sua segurança no exercício pleno da liberdade. A previdência, de natureza individual, apresentar-se-ia, pois, como a virtude liberal por excelência. “Riqueza e liberdade têm a mesma origem, a liberdade. O pobre poderia ser rico pela mesma virtude que fez a riqueza do rico. Assim, assegurar seria apenas uma atribuição de cada um. Querer descarregar sobre outro a sua responsabilidade, é abdicar de sua liberdade, renunciar a sua qualidade de homem, desejar a escravidão”[iv].

Neste sentido, haveria, sobretudo, uma responsabilidade de cada um por atingir os meios de sua sobrevivência, inclusive quanto aos aspectos dos riscos presentes e futuros. “Em outras palavras, no modelo liberal não há vítimas. Neste sentido, inicialmente, apenas o fato de sofrer um mal não vos confere nenhum direito sobre nada. Neste sentido, ainda, somente à própria vítima, qualquer que sejam os sentimentos de piedade e de compaixão que ela possa inspirar, é supostamente sempre o autor de seu destino”[v].

Pela noção jurídica de responsabilidade civil no modelo liberal, portanto, “não há nenhum desejo de uma ação corretiva da sociedade sobre a natureza. A responsabilidade jurídica apenas remete as coisas ao seu estado: ela não corrige, ela restabelece, repara”[vi].

Na nova racionalidade jurídica, que conduziu à formação do Direito Social, para superar as causas que conduziram a humanidade às duas guerras mundiais, toda essa lógica matemática, economicista, foi abandonada, colocando-se os valores humanos em primeiro plano.

Fundamentalmente, difere o novo modelo jurídico do que lhe é antecedente e contrário no aspecto da solidariedade, que deixa o campo da ordem moral para se integrar o campo da coerção jurídica, reconhecendo-se que do vínculo social advém a responsabilidade de uns para com os outros.

Chegar-se a esta proposição jurídica é mesmo uma necessidade no pós-guerra, pois a quantidade de pessoas vitimadas pela guerra é extremamente grande e essas por serem mutiladas ou órfãs não teriam a mínima condição de sobrevivência, sem um aparato de natureza social. Não haveria como dizer que essas pessoas possuem direitos, identificando um ente obrigado a seu cumprimento, se mantidos os pressupostos teóricos do direito liberal.

A nova concepção de Direito, portanto, transcende as relações individuais, alcançando o ser humano pelo simples fato de ser integrado à “família humana”.

Todos possuem responsabilidade com relação a todos, reconhecendo-se uma relação jurídica básica preexistente a qualquer relação jurídica de natureza específica. Somente, assim, o Estado, que é a configuração jurídica, institucionalizada, da sociedade, pode ser visto como ente responsável pelo cumprimento de direitos aos cidadãos, pelo simples fato de estarem vivos, integrando-se a esses direitos o mais evidente de todos que é o de se manterem vivos e com dignidade. É somente assim também que todas as pessoas são integradas ao mesmo contexto não apenas como titulares de direitos, mas como detentores de obrigações, sobretudo no que se refere a cumprir as obrigações necessárias à satisfação do projeto coletivo para a garantia, pelo Estado, de tais direitos, atingindo, principalmente, as entidades econômicas que, na realidade capitalista, buscam impor modos de vida que satisfaçam aos seus propósitos.

Na ordem social que se busca conferir ao capitalismo, cumpre ao Estado a promoção de todos os valores que preservem a dignidade humana, na sua inteireza, independente da condição econômica ou da sorte de cada um. Dentro desse contexto, concebe-se que na produção capitalista, que permite a utilização do trabalho humano de outrem para geração de riquezas próprias, decorrem obrigações que vão muito além daquelas estabelecidas em “cláusulas contratuais”.

O Direito que resulta da busca de uma nova racionalidade para os problemas do mundo é o Direito Social, que está no topo do conjunto normativo como um conceito fundamental, tendo como objetivos buscar a justiça social, a efetivação da democracia, e a internacionalização das normas, objetivos estes vistos como condições para a paz mundial. No novo Direito impera a concepção de um regramento que tem por consequência a melhoria da posição econômica e social de todos e a preservação da dignidade do sentido da elevação da condição humana. Esse é o Direito que se denomina Direito Social também por contraposição daquilo que lhe é historicamente antecedente, o Direito Liberal, no qual a liberdade, a igualdade, o individualismo conduzem apenas a uma proposição de que as pessoas estão livres para a busca de sua satisfação pessoal fora de qualquer contexto coletivo (como se a felicidade, sem relacionamentos pessoais, fosse de fato possível).

É importante deixar claro, como visto acima, que a expressão Direito Social, na época de sua formulação, atinge os debates jurídicos, não como forma de catalogar alguns direitos específicos, mas como designação da transformação da própria racionalidade do Direito.

O Direito, concebido a partir da razão liberal, era concebido como Direito Liberal, ainda que não se o dissesse claramente. A nova racionalidade transforma o Direito em Direito Social. Trata-se de entidades contrapostas, representando o Direito Social a superação do Direito Liberal. Em outras palavras, traduz a superação da racionalidade liberal, que impera no direito durante o século XIX, pela racionalidade social, que se produz como avesso da razão anterior, da mesma forma como se deu na passagem do absolutismo para o liberalismo. São preceitos que não convivem, contemporaneamente, portanto.

O próprio nome é indicativo do que se está falando. A expressão Direito Social só tem sentido posta em contraposição ao Direito Liberal. Sem essa referência, que, de fato, é histórica, pode-se chegar à conclusão equivocada de que a expressão Direito Social é despropositada, pois todo direito se volta à sociedade e assim social todo direito é[vii].

A denominação utilizada, Direito Social, advém, naturalmente, da contraposição que se estabelece ao interesse econômico. Não se trata, por óbvio, de uma objeção ideológica eis que se integra ao contexto do capitalismo, mas por se inspirar em muitos propósitos socialistas, abarcados pelos movimentos dos trabalhadores, fornece a possibilidade de uma contradição sistêmica, favorecendo o antagonismo, que conduz as relações sociais a um processo evolutivo.

O Direito assume, assim, um relevante papel de reforma da realidade, partindo-se da constatação, conforme esclarecido por Ascareli, que o “direito espontâneo, que se forma, ou se acredita formar-se, diretamente pelo livre jogo das forças em luta, é sempre o direito do mais forte”[viii]

Na visão proposta por Orlando Gomes e demais autores acima citados, o Direito Social seria a expressão para designar a mudança na raiz do direito como um todo, sendo que esta mudança foi proposta pelo advento do Direito do Trabalho.

Esse Direito, aliás, é o instrumento que fornece a possibilidade concreta da existência do capitalismo enquanto modelo de sociedade. Organizando o capitalismo, o direito social, por evidente, preserva interesses econômicos. Mas, ao fixar a prevalência da solução dos problemas postos pela questão social, que é abertamente reconhecida como tal, o postulado da justiça social aparece como condição de sustentabilidade do sistema. São, portanto, sustentáculos do direito, no século XX, a construção da justiça social, a efetivação da democracia e a consagração da paz mundial.

Para atingir esses propósitos, parte-se do exame histórico, que é essencial ao direito, e busca-se não eliminar, por certo, os valores incorporados à consciência humana por toda obra humanista, científica e iluminista dos séculos XV a XVIII, mas inseri-la em outro contexto, o contexto das razões do Direito Social.

Desse modo, a liberdade e a igualdade são compreendidas no contexto de um projeto coletivo, social, que não desprezando o modelo capitalista de produção, que se mantém, faz com que o individualismo e o empreendedorismo, que são decorrências daqueles valores na acepção capitalista, não se prestem, unicamente, a um sentimento egoísta e sim à construção de uma vida melhor para todos. Não se podendo mais acreditar na ideia liberal de que a soma das vontades egoístas, livremente expressadas, possam conduzir a este resultado, entende-se necessário fixar parâmetros, no sentido de limites, para o exercício real desses preceitos, até porque no livre jogo do mercado há a formação de grandes conglomerados econômicos que engolem não apenas os trabalhadores, mas todos os demais cidadãos, além do meio ambiente, como mais tarde vai se compreender.

O Direito Social, portanto, não é o direto que limita a liberdade, mas que a promove em sentido real, advindo daí o seu caráter promocional, conforme revela Norberto Bobbio:

“Em poucas palavras, é possível distinguir, de modo útil, um ordenamento protetivo-repressivo de um promocional com a afirmação de que, ao primeiro, interessam, sobretudo, os comportamentos socialmente não desejados, sendo seu fim precípuo impedir o máximo possível a sua prática; ao segundo, interessam, principalmente, os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim levar a realização destes até mesmo aos recalcitrantes.” [ix]

A figura típica do Direito Liberal, o contrato, perde sentido enquanto instrumento de preservação do interesse do mais forte frente ao mais fraco e de legitimador da aquisição de propriedades. A propriedade, por sua vez, deixa de ser, por óbvio, um direito sagrado, até porque não há nada mais irracional do que em nome da razão buscar um fundamento sacro para justificar a propriedade. A propriedade, assim, deixa de ser vista como uma condição inata do ser, até porque a realidade do período de formação do capitalismo, desde o século XV, demonstrou que poucos eram os homens que detinham algum tipo de propriedade do ponto de vista dos considerados bens imóveis (terras, casas e indústrias) e mesmo assim não deixavam de existir, embora muitos, como visto, tenham sobrevivido em condições subumanas. O desejo de adquirir uma propriedade e de preservá-la para si foi uma das grandes causas dos desajustes sociais, já destacada mesmo na obra de Locke, um dos principais teóricos do modelo liberal.

A propriedade, portanto, no contexto do Direito Social é extraída de sua acepção liberal e seu valor é condicionado à sua função social, isto é, ao efeito concreto que possa gerar em favor de toda a sociedade e não penas para o seu proprietário, sobretudo, quando sua quantidade for além do que se entenda o necessário para a sobrevivência.

Esse preceito, por óbvio, vai repercutir no próprio sentido da riqueza produzida pelo modelo capitalista, que não pode ser vista como pertencente apenas ao proprietário, àquele que detém os meios de produção. Se os seus bens servem a toda a sociedade, é evidente que a riqueza que deles se extrai, até porque para ser extraída depende, necessariamente, do trabalho alheio, deve ser distribuída em favor da sociedade, preservando-se, por óbvio, a justa parte do empreendedor, sendo que essa sua justa parte não pode significar que o empreendedor fique cada vez mais rico e o trabalhador cada vez mais pobre.

As riquezas adicionais produzidas devem ser direcionadas ao bem público, para a construção de escolas, hospitais, habitação, previdência, e também lazer, com parques, praças e conjuntos esportivos, por exemplo...

A função do Direito Social é distribuir a riqueza, para fins não apenas de eliminar, por benevolência, a pobreza, mas integrar todos ao projeto de uma sociedade na qual todos possam, efetivamente, adquirir em sua acepção máxima o sentido da cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos maiores sentimentos que agridem o ser é a injustiça.

A humanidade foi obrigada a procurar outra racionalidade para os arranjos sociais, vez que os preceitos da liberdade, do individualismo, e da igualdade formal pressuposta não foram eficazes para a construção da nova ordem mundial.

Conforme assinala Arno Dal Ri Júnior “após o insucesso da aventura liberal manifestou-se viva a crença de que as atividades concernentes à economia e ao comércio internacional deveriam ser regidas por precisas normas multilaterais, que possibilitassem uma integração entre os Estados. Esta última deveria obrigatoriamente se fundamentar sobre uma política de estabilidade e confiança recíproca. Esta crença pode ser observada já no artigo 23 do 'Pacto' que levou à criação da Liga das Nações. Deve ser salientado, porém, que esta organização internacional, no seu curto período de vida, promoveu diversas conferências e encontros na tentativa de incentivar um amplo debate sobre a necessidade de tais normas multilaterais”[x].

Importante deixar claro, também, que o Direito Social, mesmo com seu propósito de ordem coletiva, não despreza o ser humano, ou a sua individualidade, da qual decorrem conceitos que, podemos admitir, são fundamentais, tais como a intimidade, a privacidade, a liberdade de expressão e de crença religiosa, o raciocínio etc. Muito ao contrário. A defesa da dignidade humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores humanos sejam concretizados, sendo de se destacar que a maior relevância do direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição vulnerável na sociedade dos pontos de vistas político, cultural, social e econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social permite visualizar as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, e assumir uma postura para efetivar uma defesa concreta dos valores humanos.

Desse modo, o Direito Social, que tem por base a visualização do outro, buscando pelo espírito de solidariedade, a elevação da condição humana, integrando o homem, sem distinções, ao todo social, está mais afeito aos dilemas postos pela efetivação dos denominados direitos fundamentais (vida, saúde, trabalho, lazer, intimidade, privacidade, liberdade de expressão, de crença religiosa etc.), que o Direito Liberal, voltado para a individualidade egoísta desvinculada de qualquer interesse social.

Os denominados direitos civis e políticos ganham no Direito Social uma nova dimensão, que lhes confere maior significação, um sentido verdadeiro. Lembre-se, por exemplo, que embora a Declaração de 1789 tenha falado em liberdade e igualdade, fazendo apelo ao conceito de cidadania, em verdade, tais valores atingiram apenas uma pequena parcela da sociedade.

O advento de um Direito Social, baseado em nova racionalidade, como elemento de superação do Direito Liberal é inquestionável, sobretudo por conta da consagração do constitucionalismo social, que alterou a até mesmo a natureza do Estado. Como reflexo da importância da questão social para a humanidade, as normas que lhe dizem respeito passaram a integrar o corpo de diversas Constituições. Esta inserção de normas de natureza social na Constituição se justifica porque a concretização de seus preceitos não depende meramente do cumprimento de obrigações na esfera individual, mas da conjugação de diversos fatores sócio-econômicos de todo um corpo social e, em especial, da atuação do próprio Estado, que neste contexto não mais aparece como mero ente coercitivo da ordem jurídica, mas como estimulador, financiador e promotor dos direitos constitucionalmente assegurados. A fixação na Constituição de interesses sociais representa, por assim dizer, um compromisso do Estado e da sociedade com o implemento e satisfação de tais interesses, sendo o Estado até mesmo um sujeito passivo obrigado a efetivá-los. Juridicamente, o Estado deixa de ser um mero legitimador dos interesses dos dominantes e transfigura-se em autêntico Estado social (pelo menos no prisma do direito).

De um ponto de vista classificatório pode-se resumir o que acima foi dito da seguinte forma: historicamente, o Direito avança de sua tradição liberal para a concepção social. Como veremos adiante, as separações criadas pelo advento das Declarações do pós-segunda guerra, não desprezam essa ruptura e ao mesmo tempo não eliminam as conquistas da razão humana, desenvolvidas desde o século XV. Os denominados direitos civis e políticos, tipicamente liberais, são preservados mas fora de um projeto exclusivamente capitalista. Sua aplicação, que é até mais abrangente pois serve, de fato, a todos os membros da sociedade e não apenas a alguns como se dava no projeto liberal, está vinculada ao respeito dos preceitos fixados na nova raiz do direito, o Direito Social.

Além disso, os denominados “Direitos Sociais”, notadamente o Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social são preservados para fins de identificação com maior acuidade dos problemas vivenciados pelos trabalhadores em sua correlação com o capital, sendo este o foco principal do direito para impor ao capitalismo os limites necessários à própria sobrevivência da humanidade. Somente no contexto de uma raiz de Direito Social é que os direitos sociais podem ser, efetivamente, aplicados.

Parece-nos, portanto, um enorme retrocesso, em termos de concepção teórica, voltada à compreensão dos arranjos sociais, políticos e econômicos que se desenvolvem na sociedade capitalista, dizer que “proteção fora da justa medida desprotege além de infantilizar indivíduos, que precisam ser autônomos e precisam ser responsáveis pelas decisões que tomam”.

As necessidades humanas e a ausência de alternativas de sobrevivência a que são submetidas as pessoas é que determinam os seus atos. Reconhecer isso não é “infantilizar” ninguém. Trata-se, isto sim, de respeitar a sua condição humana e, ainda, de não desprezar a realidade.

Considerar que pessoas em estado de necessidade são livres e autônomas, inclusive para renunciar Direitos sociais, que se conceberam como preceitos de ordem pública para a reconstrução da humanidade, é, isto sim, uma afronta ao real.

O que o Ministro chama de “excesso de protecionismo” não passa de uma expressão retórica para destruir o pressuposto básico de toda a ordem do Direito Social que é o reconhecimento das desigualdades.

4. Autonomia que aprisiona

A primeira “experiência” concreta mencionada é o julgamento de um recurso acerca da possibilidade de PDV fixar cláusula de quitação geral do contrato.

Aqui é preciso pontuar, em primeiro lugar, que Plano de Demissão Voluntária é incentivo à perda do emprego em um país cujos índices oficiais apontam mais de 14 milhões de desempregados, número que tem aumentado em razão da precarização e da perda na circulação de dinheiro que a “reforma" trabalhista promove.

A questão, no caso trazido pelo Ministro, não é porém a possibilidade de instituir tal plano, mas o efeito de, pela adesão, o trabalhador ou trabalhadora concordarem com a vedação do acesso à justiça. Nesse aspecto, é feliz a lembrança do Ministro, pois se trata mesmo de casos similares. Em ambos, tanto na ADI 5766, quanto no RE 590415, a questão de fundo é a vedação do acesso à justiça, negando, portanto, efetividade tanto ao artigo 5o, quanto ao art. 7o, XXIX, ambos da Constituição.

E mesmo naquele caso, o STF fez questão de ressaltar que se tratava de situação excepcional e o Ministro Barroso, em seu voto, salientou:

“O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador. Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais.”

Portanto, o STF tem precedente, da lavra do próprio Ministro Barroso, reconhecendo a importância fundamental da proteção na regulação estatal das relações de trabalho.
É certo que isso não se restringe ao âmbito material, pois do contrário não faria sequer sentido a existência de regras processuais trabalhistas, diversas daquelas que regulam o processo civil.

A proteção que informa o âmbito processual da regulação das relações entre capital e trabalho assume relevância especial quando nos damos conta de que o Brasil é um dos únicos países do mundo ocidental capitalista que ainda insiste em permitir despedidas sem qualquer motivação. A Constituição impediu a chamada despedida “ad nutum” no inciso I do art. 7o, até hoje não regulamentado pelo Parlamento. E a prática, apesar da literalidade desse dispositivo, e da definição de dispensa arbitrária que estabelece tanto o art. 165 quanto o 510-D (introduzido pela Lei 13.467/2017), é a da aceitação de que despedidas ocorram sem motivo algum.

Em uma tal realidade, na qual o trabalhador sabe que existem mais de 14 milhões de desempregados e que pode ser despedido, sem que o tomador do seu trabalho sequer motive o ato, como é possível afirmar que há proteção em demasia?

Como falar em autonomia de trabalhadores que dependem do trabalho para sobreviver e que sequer podem exigir respeito aos seus direitos sem o receio razoável de perda do posto de trabalho?

Note-se que o Ministro está tratando de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que ataca três dispositivos inseridos/alterados na CLT, que tratam da possibilidade de acesso à justiça para trabalhadores e trabalhadoras para os quais reconhecida a necessidade de gratuidade da justiça.

Não está, portanto, a tratar do exercício de direitos trabalhistas durante o vínculo, nem da capacidade de efetiva “negociação”, seja individual, seja por intermédio do Sindicato.
Não está a tratar de possibilidade ou extensão do instituto da quitação.

A ADI 5766 refere-se a artigos que oneram cidadãos e cidadãs que buscam o Poder Judiciário trabalhista e tem reconhecida a incapacidade econômica para atuar em juízo, porque tais artigos determinam que esses sujeitos paguem os custos do processo com o resultado das pretensões procedentes.

Ou seja, o que está em, jogo, na ADI 5766 é a possibilidade de que os valores decorrentes de atos ilícitos (descumprimento de direitos fundamentais trabalhistas) sejam utilizados para pagamento de honorários de advogado, perito ou pagamento de custas. Por isso, significa devolver ao agressor da ordem jurídica os valores que ele ilicitamente havia subtraído do trabalhador ou da trabalhadora.

A ADI 5766 trata, portanto, da possibilidade de se verem lesões a direitos fundamentais reconhecidas pelo Estado e de se chegar ao resultado concreto de que os valores que daí decorrem serem sumariamente retidos e devolvidos ao agressor da ordem jurídica.

Logo, mesmo que estivéssemos diante de partes em situação de igualdade, mesmo que pudéssemos falar de autonomia, estaríamos diante de regras que subvertem a própria razão pela qual outorgamos ao Estado o monopólio da jurisdição, qual seja, a possibilidade e o dever de recompor agressões a direitos.

5. Paralelo inaplicável

A segunda “experiência” que o Ministro Barroso compartilha, trata da Lei de Locações. Para o Ministro, embaraços à desocupação de imóveis locados impediam as locações. A nova lei, facilitando o despejo, “aumentou exponencialmente a oferta de imóveis para a locação e caiu significativamente o preço dos aluguéis”.

Sem ingressar no tema delicado do despejo, que implica concretamente, muitas vezes,  deixar famílias sem moradia, cabe aqui uma reflexão. O aumento exponencial da oferta de imóveis ou a queda no preço dos aluguéis é um objetivo razoável, a ser perseguido com a desproteção de direitos fundamentais, como o de moradia (art. 6o da CF)? Teriam sido revogados, sem que ninguém soubesse, os primeiros artigos de nossa Constituição e o seu preâmbulo?

Até mesmo quando trata da ordem econômica, no art. 170, a Constituição de 1988 fixa que essa deverá obedecer os ditames da justiça social.

É a solidariedade, portanto, o parâmetro constitucional para a aplicação das normas jurídicas.
O exemplo do Ministro, além de não guardar qualquer relação com o caso em discussão, no qual, repita-se, discute-se o direito de acesso à justiça para quem o Estado reconhece como incapaz de suportar as despesas de um processo, já indica uma possível subversão da ordem de valores contidos na Constituição, colocando a ordem econômica (preço de aluguéis/ oferta de imóveis) em sobreposição ao direito à moradia.

6. Nem “esquerda”, nem “direita”: dados da realidade

A terceira “e última experiência” que Barroso compartilha, segundo ele, "é mais pessoal” e vale a transcrição:

“Em algum momento da década de 90, eu participei de uma comissão que foi apurar a situação do BANERJ (Banco do Estado do Rio de Janeiro). Em poucos dias no BANERJ, nós todos da comissão verificamos que o BANERJ era, infelizmente, um antro de perversão, de dinheiro público mal versado, de empréstimos irresponsáveis, de favorecimento aos amigos e de corrupção pura e simples, e portanto era um caso típico brasileiro, que aliás se repete historicamente, de apropriação privada do espaço público, apropriação privada de uma empresa estatal. E portanto, não tive ali nenhuma dúvida de qual era a melhor coisa a fazer com o BANERJ, que era vendê-lo, tirá-lo das mãos de um Poder Público que o pervertia em proveito de uma elite extrativista. A despeito disso, a posição dos partidos de esquerda naquele debate era manter o BANERJ estatizado. E portanto, o dogma da estatização se colocava acima do fato real que era a apropriação privada do Banco, e ali, e considero isso importante de dizer porque pauta o meu raciocínio, eu aprendi a separar o que é ser de esquerda do que é ser progressista. Progressista é defender aquilo que produz o melhor resultado para as pessoas, para a sociedade e para o país, sem dogmas, sem superstições ou sem indiferença à realidade. E portanto presidente, este não é um debate entre esquerda e direita e sim sobre o que é melhor para os trabalhadores, para a sociedade e para o país, e quero deixar claro, e acho que falo por todos, mas certamente falo por mim, ninguém aqui está do lado dos mais ricos ou do lado da injustiça, todo mundo aqui está querendo produzir a solução que seja capaz de melhor distribuir a justiça e de trazer melhores resultados para a sociedade e para o país.”

Depois dessa afirmação, o Ministro ainda pontua que "estamos tratando de uma lei que foi a Lei da Reforma Trabalhista e um capítulo específico com tópicos processuais, na verdade, discutindo quem paga a conta em determinadas situações”.

A partir daí o Ministro, “data maxima venia”, desvirtua o debate.

Antes de demonstrar isso, é preciso, porém, chamar a atenção para o não dito do discurso. O Ministro faz questão de afastar a ideia de um “debate entre esquerda e direita”, e diz querer "deixar claro, e acho que falo por todos, mas certamente falo por mim, ninguém aqui está do lado dos mais ricos ou do lado da injustiça”.

Ora, a Ação Direta de Inconstitucionalidade tem fundamento jurídico, com o qual se discute alteração legal que desafia a literalidade do artigo 5o  da Constituição. Embora evidentemente seja impossível esconder a perversidade social e moral do conteúdo das regras ali discutidas ou mesmo a ideologia que perpassa os atos dos “reformadores" e que está clara nos relatórios tanto do Deputado Rogério Marinho quanto do Senador Ricardo Ferraço, sequer seria razoável cogitar estivéssemos diante de um debate entre esquerda e direita, o que quer que isso signifique. Menos ainda seria de cogitar que um Ministro, ao examinar alterações em regras processuais, estivesse do “lado da injustiça” ou “dos mais ricos”, pois sua função é precisamente fazer valer a ordem constitucional vigente.

O conteúdo da fala do Ministro Barroso, entretanto, tem extrema relevância, pois ao enunciar o que não está fazendo, evidencia que ao menos em seu raciocínio, essa possibilidade, de que a decisão seja tomada a partir de uma identidade moral com esquerda ou direita, justiça ou injustiça, ricos e pobres, é presente.

A gravidade disso vem sendo amplamente discutida sob a expressão “judicialização da política”  ou “politização da justiça”. É mais ou menos como passar quase 40 páginas de uma sentença dizendo que não é suspeito e nada tem contra o réu, para depois condená-lo sem provas. Não é preciso que juiz de instância alguma informe o que não está fazendo, a não ser que o faça justamente para, de modo um tanto inconsciente, deixar que suas verdadeiras motivações se revelem ao leitor/ouvinte.

O argumento, além disso, pode ter o objetivo, também impróprio, de acusar aqueles que discordem de sua posição de estarem sendo ideológicos, de estarem do lado dos ricos ou se serem “esquerdistas”, reduzindo o debate jurídico no âmbito do Supremo Tribunal Federal a uma “conversa de botequim”[xi].

Segundo o Ministro, a “inequívoca intenção do legislador, foi a de enfrentar um problema que é a sobreutilização do Judiciário de uma maneira geral, da litigiosidade excessiva de uma maneira geral e particularmente na Justiça do Trabalho, que de acordo com a Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, em volume já assinado pela presidente Cármen Lúcia, concluiu que a Justiça do Trabalho em 2015 finalizou o exercício com 5 milhões de processos em tramitação, tendo sido ajuizado somente em 2015 4 milhões de ações trabalhistas”.

Vejamos esses números, no entanto, mais de perto.

No relatório do CNJ, Justiça em Números, de 2016, relativo aos dados do ano de 2015 consta que a Justiça Estadual recebeu, em 2015, 18,9 milhões de processos[xii].

Enquanto isso, a Justiça do Trabalho, recebeu, no mesmo ano, “um total de aproximadamente 4 milhões de processos”.

Segundo o relatório, na Justiça do Trabalho, “o número de casos novos vem crescendo historicamente, muito embora a elevação, especialmente nos três últimos anos, tenha sido discreta se comparada com o número de processos baixados”, o que desmente a suposição de que haja uma busca maior pelo Poder Judiciário Trabalhista, em face da simples vontade dos trabalhadores de tirar dinheiro de seus empregadores, como se fosse fácil para um cidadão que depende do trabalho para sobreviver, perder seu tempo e dinheiro, deslocando-se para buscar um advogado que o represente e comparecendo à Justiça do Trabalho para tentar demonstrar as lesões que sofreu.

O mesmo estudo do CNJ revela que os assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho são férias, remuneração, verbas resilitórias e horas extras, que perfazem cerca de 49% das demandas.

No Rio Grande do Sul, esse número é ainda maior. Estudo realizado pela Justiça do Trabalho do RS, observa que do “total de pedidos que chegam à Justiça do Trabalho gaúcha, 54% referem-se a verbas resilitórias (saldo de salários não pagos, 13º salário e férias proporcionais, 40% dos depósitos do FGTS, etc)”[xiii].     

Portanto, a maior parte das demandas é ajuizada apenas para que o trabalhador consiga receber verbas de sua rescisão.

A judicialização, portanto, é sintoma da extrema fragilidade jurídica e dependência econômica a que são submetidos os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, pois podem perder o emprego sem que o empregador tenha que apresentar justificativa para tanto. O impedimento mínimo para que isso ocorra, que é o estabelecimento de custos para se conduzir alguém ao desemprego, representados pelas denominadas “verbas rescisórias”, sequer é respeitado. No Brasil, de forma recorrente, cessam-se vínculos de emprego por denúncia vazia e sequer se pagam os custos que são fixados como pressupostos de legalidade desse ato.

A consequência é que os trabalhadores no Brasil, há muito vêm sendo alvo de quatro atos de violência: perdem o emprego; não recebem as verbas rescisórias; se veem constrangidos a “buscar os seus direitos na Justiça”; e, no âmbito do processo, acabam aceitando acordos para prejudiciais aos seus interesses, que não representam a totalidade de seus direitos, para que possam receber com maior rapidez as verbas das quais depende para sobreviver.

O não pagamento de verbas rescisórias, que é uma grave ilegalidade, acaba sendo genericamente admitida e passa até a ser vista como estratégia administrativa de muitas empresas que fragilizam a eficácia de todos os demais direitos trabalhistas.

E, agora, presentemente, no bojo da discussão da “reforma” trabalhista, foram alvo de mais uma violência: a da consideração de que vão à Justiça de forma abusiva para extorquir seus ex-empregadores, mesmo que sequer tenham sido registrados, que sua jornada de trabalho não fosse anotada em cartões de ponto fidedignos, que recebessem salário “por fora” ou que suas verbas rescisórias não tivessem sido pagas.

E essa violência tem sido repetida por vários meios de comunicação e chegou até mesmo a ecoar em decisão do Supremo Tribunal Federal.

Na pesquisa feita pelo CNJ, outro dado é interessante de ser reproduzido: a terceirização é fator significativo no aumento do número de demandas ajuizadas na Justiça do Trabalho. A terceirização gera demanda em razão do fato objetivo de que na maioria absoluta dos casos em que há atravessamento de um terceiro na relação de trabalho, ocorre o inadimplemento de verbas salariais ao trabalhador. A grande maioria dos processos envolvendo terceirização diz com empresas prestadoras de serviços que “somem no ar” sem pagar sequer o salário do trabalhador.

Há, ainda, mais um dado que a pesquisa revela: o alto índice de conciliação, próximo aos 25%, e que atinge 40% dos processos na fase de conhecimento.

De acordo com o TRT da Quarta Região, a maior parte dos processos, 42% ou 77,2 mil ações em 2015, foi resolvida por meio de acordo[xiv].

Não é algo de que devemos nos orgulhar, porque sabemos que a conciliação muitas vezes esconde o desrespeito contumaz a direitos fundamentais, impedindo uma atuação mais eficiente, tanto por parte do MPT quanto do Poder Judiciário Trabalhista.

Fato é que esses números oficiais desmentem a cantilena recorrente de que o direito material e processual do trabalho, e a Justiça que o aplica, são condescendentes com os trabalhadores.

Aliás, tal afirmação não resiste à análise de outros números trazidos pela pesquisa publicada pelo TRT da Quarta Região: 25% das demandas ajuizadas na Justiça do Trabalho são julgadas improcedentes. Em 2015, os juízes do trabalho do RS apreciaram 184.043 ações. “Em mais de 46 mil desses processos, nenhum dos pedidos do autor foi atendido”. Os processos julgados “procedentes em parte”, em que o reclamante ganha alguns pedidos e outros não, chegaram a 57,3 mil, ou seja, 31% do total das ações solucionadas. “Em menos de 2% das ações (3,2 mil), a decisão atendeu a todos os pedidos feitos pelo autor”. De novo, nada de que possamos nos orgulhar. Sabemos bem que as improcedências decorrem, muitas vezes, da impossibilidade concreta de produção de provas, em uma realidade na qual apenas o empregador tem acesso aos documentos do contrato.

No relatório de 2016, o CNJ faz constar que a Justiça do Trabalho apresenta, historicamente, “taxas de congestionamento baixas e índices de atendimento à demanda elevados se comparados aos verificados nos demais ramos de justiça”, sendo por isso mesmo “reconhecida como um aparato ágil e eficiente”.

Acrescenta que “o reflexo de um rito processual historicamente voltado para as soluções consensuais dos conflitos, já sentido no índice de conciliação, faz-se presente novamente na apuração do tempo do processo na Justiça do Trabalho”.

O mesmo relatório do CNJ revela que na Justiça do Trabalho a execução leva em média 3,5 anos, enquanto os processos na fase de execução na Justiça Estadual duram em média 4,3 anos.

Na fase de conhecimento, na Justiça Estadual, o processo permanece, em média por 1,9 anos. Na Justiça do Trabalho, o processo tem a fase de conhecimento encerrada no prazo médio de 6 meses. É muita diferença!

Além disso, enquanto na Justiça Estadual, a “cada 100 processos que tramitaram” em 2015, “apenas 25 foram baixados”; na Justiça do Trabalho, “de cada 100 processos que tramitaram” durante o ano de 2015, cerca de “46 foram baixados”.

Essa efetividade revelada em números, se tem alguma serventia, é exatamente a de desmascarar o discurso de que a legislação trabalhista é ultrapassada ou de que a Justiça do Trabalho é excessivamente protecionista.

O estudo mostra, ainda, que na Justiça Estadual, “levando em conta todos os casos pendentes de solução em 31/12/2015, verifica-se que estes processos estão pendentes, em média, há 6 anos e 10 meses”.

Na Justiça do Trabalho, “diferentemente do que ocorre na Justiça Estadual, o tempo médio do processo pendente não difere significativamente do tempo médio de sentença ou de baixa no processo de conhecimento, o que indica a alta rotatividade dos feitos.

Em outras palavras, o processo de conhecimento na Justiça do Trabalho fica pendente somente durante o tempo necessário para que seja sentenciado e baixado, não havendo margem para a formação de grandes acervos”.

Os processos de execução são resolvidos com grande agilidade e as pendências se referem “a um acervo de processos antigos onde não se conseguiu efetivar a execução, por motivos diversos”. Dentre os motivos, sabemos bem, está a dificuldade na cobrança em razão dos artifícios utilizados para a movimentação do capital (criação de novas pessoas jurídicas, transferência de patrimônio para “laranjas”, etc), fraudes que alterações produzidas pela Lei 13.467/2017 buscam facilitar.

Esses números sequer refletem a complexidade do trabalho realizado por juízes e servidores, nem tem a capacidade de desvelar o drama existencial que mal se esconde por trás da grande maioria das demandas trabalhistas. Ainda assim, tem o condão de demonstrar a falácia do discurso que milita em favor da “reforma” trabalhista.

Demonstram, sem possibilidade de refutação, que a Justiça do Trabalho funciona.

Os números revelam que o processo do trabalho é eficiente exatamente porque é simples, ágil e rápido.

Alterações como a que estabelece a sucumbência recíproca,  e que é objeto da ADI 5766, retiram exatamente as peculiaridades que fazem da Justiça do Trabalho um instrumento eficaz de realização dos direitos fundamentais trabalhistas.

Essa constatação está longe de significar que a Justiça do Trabalho seja o produto pronto e acabado da jurisdição. Há muito o que melhorar, mas as melhoras estão relacionadas, isto sim, à ausência de uma atuação efetivamente punitiva do ilícito trabalhista, que, tantas vezes, faz do processo do trabalho um efeito desejável pelo empregador.

Já faz tempo, inclusive, que se denuncia o fato de que não cumprir direitos dos trabalhadores é um bom negócio no Brasil. Os índices que acima reproduzimos provam isso, pois mais da metade das demandas trabalhistas são resolvidas por meio de acordo. E as conciliações, como sabemos, não consideram a integralidade dos direitos pleiteados pelo trabalhador. No mais das vezes não consideram sequer o valor total dos direitos já comprovados no processo, até o momento em que o acordo é formulado.

Não se corrige esse problema, no entanto, limitando o acesso à justiça.

Se for dificultado o acesso à Justiça, se forem reduzidos e criados novos prazos de prescrição e forem retirados direitos que hoje são assegurados aos trabalhadores, só se conseguirá agravar ainda mais esse efeito nocivo de tornar a desobediência à Constituição um “bom negócio”.

7. O verdadeiro ilícito trabalhista

Em seguida, o Ministro Barroso se reporta ao relatório elaborado pelo deputado Rogério Marinho, segundo o qual "a judicialização excessivamente ampla das relações de trabalho no Brasil trouxeram (SIC) como consequência a circunstância de que o custo do trabalho somente é conhecido depois do término do contrato de trabalho. Na verdade, só é conhecido depois do término da reclamação trabalhista que invariavelmente se segue ao contrato de trabalho. Portanto, não é como em toda a parte do mundo que você avalia o custo e risco no momento em que você contrata. Aqui você só consegue saber o custo da relação de trabalho depois que ela acaba, alguns anos depois que ela acaba, quando se dá o desfecho da reclamação trabalhista".

Os números apresentados anteriormente revelam que a minoria dos trabalhadores e trabalhadoras ajuízam demanda trabalhista. E se o fazem, antes de afirmar que isso onera de algum modo o tomador do trabalho, precisamos descobrir porque isso ocorre.

Evidentemente, não há dúvida de que a partir da Constituição de 1988 há um aumento no número de processos judiciais no Brasil, em todas as esferas. Segundo relatório Justiça em Números 2017, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, o Poder Judiciário finalizou o ano de 2016 com 79,7 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva ( Justiça em Números 2017: ano-base 2016/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2017, p. 65). Trata-se de um fenômeno social que decorre da abertura democrática e, portanto, da maior consciência de cidadania.

No caso da Justiça do Trabalho, se a maioria absoluta das demandas são julgadas parcialmente procedentes é porque tem havido, conforme judicialmente reconhecido, a prática de lesões reiteradas aos direitos fundamentais trabalhistas.

O Ministro chega a admitir, mais para o final da sua explanação, que as regras em discussão na ADI 5766 tem objetivo de “criar ônus que vão até o hipossuficiente” e revelando a confusão entre litigância de má fé e improcedência, propõe a criação de "ônus para os litigantes contumazes da Justiça do Trabalho”. Refere que “segundo o Conselho Nacional de Justiça entre os 100 maiores litigantes, 82% são concentrados no setor público federal e estadual, nos bancos, no setor de telefonia e na indústria. Portanto, é muito provável que esses litigantes contumazes, do lado do reclamado, estejam também se beneficiando da litigiosidade excessiva e da judicialização e que portanto acabam preferindo pagar, algum tempo depois, quem sabe alguns anos depois, em juízo, do que cumprir desde de o momento devido a obrigação que tem em relação aos seus empregados. Portanto, se 82% dos 100 maiores litigantes são sempre os mesmos, é porque há algum ganho, também nesse litígio”

Ou seja, é a consagração da ideia de processo um bom negócio, estimulando – em vez de coibir – a prática de agressões no ambiente de trabalho. Nas palavras do juiz do trabalho Gustavo Fontoura Vieira:

“...95 milhões de processos tramitam no Poder Judiciário em todo o país. Embora vivamos numa sociedade marcada pela competição, pelo litígio, esse dado estatístico, aberto e estudado, revela informações muito preocupantes. Impacta constatar que o Judiciário está instrumentalizado por habituais sonegadores de direitos: grandes empresas, grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros e por órgãos e empresas públicos. Está cooptado para processar milhões de demandas que atendem, por discutíveis motivos e pela demora na tramitação, aos interesses desses entes públicos e privados. Segundo dados estatísticos recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça os maiores litigantes são operadoras de telefonia, bancos públicos e privados, a União, a Previdência Social, dentre outros (www.cnj.jus.br). Na Justiça do Trabalho não é diferente: são instituições bancárias e financeiras, empresas de petróleo e telefonia, frigoríficos, municípios e empresas estatais (www.csjt.jus.br). Destacam-se, também, empresas de serviços terceirizados, comprovando as consequências nefastas da terceirização. Os cidadãos e as empresas têm assegurada na Constituição Federal a reparação dos direitos lesados e podem buscar essa reparação em ação judicial. O problema surge quando se identifica que os habituais litigantes criaram estratégia ilícita para transformar Tribunais em departamentos de atendimento a clientes, Varas do Trabalho em setores de recursos humanos. Assim, eliminam ou reduzem custos com estrutura extrajudicial de solução de conflitos.  Por sua vez, o Estado sonegador de direitos descumpre obrigações legais, protela soluções de nível administrativo e entulha o Judiciário. Essa grave distorção prejudica o funcionamento do Poder Judiciário: torna a prestação de justiça mais demorada, dificulta e desestimula o acesso à justiça pelo cidadão comum. Para os grandes sonegadores de direitos descumprir a lei tornou-se regra de conduta e vantagem competitiva. “Vá procurar seus direitos!” é expressão emblemática que traduz o desprezo pela ordem jurídica no Brasil.”[xv]

O problema do pressuposto estabelecido no voto é que enquanto o descumprimento de direitos trabalhistas ou postergar a solução de uma demanda judicial representa a prática de atos ilícitos, discutir em juízo direitos dos quais se acredita titular não se trata de ato ilícito algum. Mesmo que o pleito seja julgado improcedente não se estará diante de um ato ilícito.

Precisamos admitir que, sobretudo no Brasil, ajuizar uma demanda trabalhista não é mera diversão e já implica, no mínimo, assumir um desgaste com colegas de trabalho, pois, na maior parte das vezes, decorrente do modo como se tem entendido o instituto das provas no processo do trabalho, do depoimento destes, na condição de testemunhas, dependerá o sucesso da demanda. Implica, também, a perda de um dia ou turno em que poderia estar trabalhando ou procurando por um novo posto de trabalho. Implica, ainda, a possibilidade concreta de prejuízos futuros, em razão da comunicação entre o empregador demandado e os possíveis futuros tomadores do seu trabalho, prática tão comum que tem até apelido: “lista suja”.

Com todos os empecilhos, no Brasil, mover uma reclamação trabalhista está bem mais para um ato de coragem do que de “esperteza” e se, apesar de todas as dificuldades, o número de reclamações só aumentou, é sintoma de que a Justiça do Trabalho soube conferir efetividade aos preceitos de acessibilidade, ganhando a confiança do jurisdicionado.

No entanto, o que deveria ser comemorado e considerado como uma grande conquista, qual seja, o fato de se ter conseguido conceber uma instituição que confere sentido real à cidadania e que não se submete ao poder econômico, atribuindo efetividade à ordem jurídica e aos preceitos democráticos, tem sido objeto de inúmeras críticas, o que só revela ao caráter tendencioso e parcial dos argumentos apresentados.

Cumpre verificar que a Justiça do Trabalho atendeu, historicamente, a milhões de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros e não se vê nenhum movimento desse segmento social buscando extinguir a Justiça do Trabalho e os críticos, inequivocamente vinculados aos interesses empresariais, falam de uma parcialidade da Justiça do Trabalho, mas não apontam, com estatísticas, a suposta atuação baseada em “erros judiciais” para favorecimento indevido dos trabalhadores.

Valendo lembrar que as decisões da Justiça do Trabalho são, igualmente, submetidas a duplo grau de jurisdição e que podem, ainda, ser conduzidas a uma Corte Superior, o TST, podendo, inclusive, chegar ao STF, a possibilidade da existência de uma atuação generalizada baseada em erros judiciais é completamente cerebrina e desprovida de qualquer embasamento fático.

O maior número de procedências, total ou parcial, com relação ao número de improcedências está longe de significar uma atuação indevida dos juízes trabalhistas, pois o mesmo fenômeno é verificado na Justiça Federal e na Justiça Comum, incluindo os Juízes Especiais Cíveis[xvi], pois é a ação só existe por iniciativa do autor e este, claro, como regra, só se submete ao desgaste da atuação judicial (ainda que beneficiário da justiça gratuita) quando considera que efetivamente um direito seu foi resistido por ato do réu.

Reitere-se: o processo é um ato de coragem para o trabalhador brasileiro, que muitas vezes não tem sequer o dinheiro para a passagem de ônibus que o conduzirá até a audiência trabalhista. É um ato de coragem em uma realidade na qual insistimos em não reconhecer eficácia ao inciso I do art. 7º da Constituição, quando garante o dever de motivação da despedida. O fato de que o trabalhador pode ser despedido, sem saber a razão, a qualquer momento, faz com que a maioria absoluta dos reclamantes na Justiça do Trabalho seja de desempregados. E se o cidadão brasileiro ainda assim busca seus direitos, é porque no mais das vezes perde o emprego sem sequer receber saldo de salário.

Não é possível, portanto, afirmar que há litigiosidade demais no Brasil, no âmbito da Justiça do Trabalho, seja porque isso é desmentido pelos números do CNJ, seja porque se litigiosidade houver, não há razão lógica para atribuir sua responsabilidade ao trabalhador, e não ao tomador de trabalho que sonega direitos fundamentais.

8.  Não há “Litigiosidade excessiva” e sim proporcional às práticas ilícitas

O Ministro Luís Roberto Barroso na sequência afirma que a lógica “equivocada e perversa da litigiosidade excessiva e da judicialização compulsiva traz uma consequência ainda pior”, qual seja:

“É que muitas vezes como o litígio é inexorável, o empregador já não cumpre mesmo sua obrigação, ele fica esperando a reclamação trabalhista e aí então ele resolve em juízo. As vezes anos depois ou as vezes por acordo, em que ele fica com uma fatia a mais aquilo que deveria ter honrado desde a primeira hora. Portanto, essa judicialização exacerbada, essa litigiosidade excessiva das relações de trabalho prejudica o mercado de trabalho, prejudica os trabalhadores e prejudica os empreendedores corretos e honestos...”

Essa talvez seja a mais grave afirmação de todo o voto. A naturalização do descumprimento de direitos fundamentais, como se fosse dado ao tomador do trabalho optar por não honrar direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e simplesmente “esperar pela ação trabalhista”.

É bastante sério que uma manifestação do Supremo Tribunal Federal trate o ato ilícito com tanta condescendência e ainda vise responsabilizar a vitima, como e a culpa pelo desrespeito aos seus direitos fosse do próprio trabalhador.

Pela afirmação textual do Ministro, os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil não têm seus direitos respeitados porque ajuízam demandas para exigi-los por intermédio do Estado.

O que se depreende dessa afirmação é que o ato ilícito foi tratado como mera inadimplência do empregador e que o ato do empregador é culpa do trabalhador, gerando a consequência de que o trabalhador deve ser punido por exercer o direito à tutela jurisdicional.

Seria plenamente impróprio, mas diante da inversão de valores jurídicos, acaba sendo necessário lembrar que a procedência do pedido não equivale, juridicamente, à improcedência. Quando se declara a procedência reconhece-se o cometimento de um ato ilícito por parte do reclamado, ou uma sucessão de atos ilícitos (como se dá, em geral, no Direito do Trabalho, por ser uma relação de trato sucessivo – não pagar horas extras, por exemplo). Já a improcedência não reflete a prática de nenhuma ilegalidade, vez que o direito de ação é abstrato e o seu exercício regular não está vinculado à procedência da pretensão.

Ao admitir que para remunerar o advogado da reclamada, seja retido parte do valor reconhecido como devido ao trabalhador, o que a Lei 13.467 institui é a devolução dos valores indevidamente subtraídos àquele que os subtraiu, ao autor do ato reconhecido como ilícito.

Como consequência, tal determinação premia o infrator do ato ilícito e gera dano a quem nada fez de errado.

A litigância de má-fé tem efeito próprio e está prevista tanto no CPC quanto na atual redação da CLT. Não se pode confundir litigância de má-fé com improcedência de alguma pretensão.

A certeza do direito é a antítese do processo. Se há certeza, não há razão para discussão judicial. O trabalhador ajuíza demanda porque, obviamente, não tem a certeza do resultado de sua pretensão ou mesmo que a tenha não possui outro instrumento legítimo do qual possa se servir. Em alguns casos, sequer tem a possibilidade de aferir a priori o seu direito, pois depende da produção de prova pericial (insalubridade/ periculosidade). A função do perito é justamente examinar o ambiente de trabalho e saber se há ou não condição insalubre/perigosa de trabalho. Pelo texto em discussão na ADI 5766, uma perícia que não reconhece situação insalubre de trabalho gerará para o trabalhador alcançado pelo benefício da gratuidade da justiça dever de pagamento dos honorários do profissional que auxiliou o juízo, como se fosse dele, do reclamante, a responsabilidade pela análise técnica realizada.

A lógica fixada na lei, acolhida pelo voto, se descola totalmente da realidade e, meramente, busca punir o reclamante que ousa submeter a controvérsia sobre a salubridade do ambiente do trabalho ao Estado.

Condenar o beneficiário da gratuidade da justiça a pagar honorários de advogado, de perito, ou custas, apenas porque não conseguiu convencer o juízo da veracidade de suas alegações ou porque a inspeção demonstrou que não há risco ou dano em seu ambiente de trabalho, serve meramente para punir economicamente o reclamante e, com isso, criar um obstáculo generalizado ao acesso à Justiça, reduzindo, de maneira artificial e estimulante do desrespeito aos direitos trabalhistas, a quantidade de processos distribuídos na Justiça do Trabalho.

Importante lembrar, também, que as vultosas condenações em honorários têm tomado como parâmetro os pedidos de indenização por dano moral por agressão a direito de personalidade ou pela ocorrência de acidentes de trabalho (incluindo doenças profissionais), o que torna as condenações em questão ainda mais desprovidas de fundamento jurídico.

No que se refere aos pleitos de indenização, os valores do pedido são apenas indicativos. Concretamente, o valor eventualmente devido é livremente fixado pelo juiz, tendo à vista as peculiaridades do caso e quase sempre é totalmente desvinculado do valor expresso na inicial, até porque a configuração do dano e seus efeitos, no que se refere aos acidentes do trabalho, depende de perícia médica, realizada no curso do processo por profissional habilitado e de confiança do juízo. A pretensão do reclamante a respeito, portanto, é sempre uma suspeita, já que não sendo médico ou jurista não possui o conhecimento necessário para fazer, tecnicamente, essa avaliação, o que se dá também com relação às pretensões pertinentes à insalubridade e periculosidade.

Com relação aos acidentes de trabalho, a regra básica é a de que esse tipo de ação, mesmo em outras esferas do Judiciário, deve ser isenta de qualquer custo, para que não se impeça que as discussões a respeito do tema, dada a sua gravidade social, com imensa repercussão no potencial econômico do país, não deixem de chegar aos órgãos públicos. Há, por assim dizer, um interesse público em não criar obstáculos para que a temática seja levada ao Judiciário.

9. Reduzir o sentido e o alcance da cidadania não é solução

Proferindo seu voto, o Ministro Barroso ainda fez a leitura do artigo 5º, XXXV da Constituição (“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) e do inciso LXXIV (“O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”), para concluir que: “Portanto a Constituição assegurou o acesso à justiça e assegura assistência jurídica integral aos hipossuficientes”. E acrescentou: o “acesso à justiça inclui também o direito a um processo justo, efetivo e a uma justiça que funcione, que funcione em tempo razoável e de maneira eficiente".

É preciso repetir aqui a conclusão do relatório do CNJ, no Justiça em Números, de 2016: a Justiça do Trabalho apresenta, historicamente, “taxas de congestionamento baixas e índices de atendimento à demanda elevados se comparados aos verificados nos demais ramos de justiça”, sendo por isso mesmo “reconhecida como um aparato ágil e eficiente”; “o reflexo de um rito processual historicamente voltado para as soluções consensuais dos conflitos, já sentido no índice de conciliação, faz-se presente novamente na apuração do tempo do processo na Justiça do Trabalho”.

No Direito do Trabalho, o pressuposto teórico é o do reconhecimento da desigualdade material entre o capital e o trabalho, de modo que aos trabalhadores são garantidos preceitos jurídicos mínimos, como forma de consagração de sua cidadania. Nesse contexto, qualquer forma de impedimento aos trabalhadores, sobretudo àqueles a quem não se possa negar a condição de hipossuficiência econômica, de terem acesso ao Judiciário representa uma ofensa ao projeto constitucional e aos direitos fundamentais que a Constituição reservou aos trabalhadores.

Ora, se a Justiça do Trabalho é reconhecidamente mais eficiente, como é possível tratar de vedação do acesso à justiça como uma necessidade decorrente do “alto grau de litigiosidade”, sabendo que no direito comum, onde essa mesma eficiência não existe, não se põem as restrições contidas na Lei 13.467 e que são objeto da ADI 5766.

No art. 98 do Código de Processo Civil se conferiu à “pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios” o direito “à gratuidade da justiça”.

Segundo esse mesmo artigo, a gratuidade da justiça compreende: “I - as taxas ou as custas judiciais; II - os selos postais; III - as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; IV - a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; V - as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais; VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; VII - o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; VIII - os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.”

No âmbito do direito comum, onde sequer se reconhece a assimetria presente na relação entre capital e trabalho, a gratuidade foi estabelecida no sentido próprio da palavra, ou seja, para a eliminação de todo o custo do processo que impeça ou dificulte o acesso à justiça, o que não afastou a possibilidade da aplicação de multas processuais ao beneficiário, evidentemente apenas no caso em que este exerça o direito processual de forma abusiva (§ 4º do mesmo artigo).

A única exceção que o artigo 98 admite e que, de fato, não constitui uma exceção, diz respeito à obrigação de pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios que decorram da sucumbência (§ 2º), mas que somente poderão ser cobradas pelo credor se, no prazo de 05 anos, o beneficiário superar a situação econômica que lhe conferiu o direito à gratuidade, cabendo, inclusive, ao credor fazer prova a respeito (§ 3º), até porque “presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural” (§ 3º do art. 99).

As normas inseridas na CLT pela Lei n. 13.467/17, no entanto, sugerem que o próprio proveito econômico obtido pelo trabalhador no processo seja utilizado para o pagamento das despesas do processo, incluindo os honorários da parte contrária, estabelecendo, desse modo, objetivamente, um rebaixamento da cidadania dos trabalhadores na comparação com os demais cidadãos em outras relações jurídicas, contrariando a própria essência do Direito do Trabalho.

Neste sentido, os dispositivos em questão não merecem sequer o atributo de normas trabalhistas, vez que sua preocupação fundamental foi a de negar a garantia constitucional de amplo acesso à Justiça aos trabalhadores.

Essa “estratégia legislativa”, inclusive, já vem repercutindo gravemente no número de reclamações trabalhistas.

No entanto, a redução de litigiosidade, apoiada no artificialismo jurídico que submeteu os trabalhadores à ameaça de custos processuais, quebrando a eficácia do princípio do acesso à justiça e, portanto, o que Barroso chama de “processo justo, efetivo e a uma justiça que funcione, que funcione em tempo razoável e de maneira eficiente”, representa exclusivamente maior incentivo ao descumprimento da legislação do trabalho, gerando aumento do sofrimento nas relações de trabalho, intensificação do processo de acumulação da riqueza, quebra do sistema previdenciário, diminuição do consumo e agravamento da crise econômica, com efeito inevitável na insegurança pública.

Vale reparar que dias após ter sido divulgada a queda do número de reclamações trabalhistas, apontada por alguns, inclusive, como efeito benéfico da nova lei, já se anunciava o aumento da concentração da renda e do desemprego, além da abertura de vagas de trabalho apenas para uma remuneração de até dois salários mínimos, a queda do número de trabalhadores com carteira assinada e o aumento do trabalho informal, evidenciando o caráter precarizante da nova lei[xvii].

Acompanha a constatação da diminuição do número de reclamações até mesmo o argumento de que se pode pensar na extinção da Justiça do Trabalho, desprezando-se a importância dessa instituição na efetivação dos direitos de milhões de brasileiros e brasileiras.

Os dispositivos que estão sendo alvo de discussão na ADI 5766 põem em questão a própria viabilidade do modelo de sociedade preconizado no pacto firmado por ocasião da elaboração da Constituição de 1988, que sequer, até hoje, foi completamente cumprido, sendo certo que todas as experiências tomadas para negar validade ao projeto de Estado Social Democrático de Direito, mantidas as bases econômicas do capitalismo, sobretudo em um país de economia dependente como a do Brasil, já se mostraram desastrosas, tendo servido apenas para aumentar os problemas econômicos e sociais que atingem, no nível do desespero, milhões de brasileiros e brasileiras.

Há uma grande responsabilidade, portanto, na definição jurídica sobre a questão do acesso à Justiça do Trabalho, exigindo-se, antes de tudo, avaliação profunda de todas as matérias que com ela se interligam.

Mesmo o raciocínio mais simplista, extraído da lógica formal, conduz à inviabilidade jurídica das leis que criam obstáculos específicos de acesso do pobre à Justiça do Trabalho.

Ora, se, por uma questão de cidadania, a todos, sem distinção, é dado o direito de acesso ao Judiciário e se é entendido que com relação ao pobre existe um obstáculo que precisa ser superado pela assistência judiciária gratuita, para que o princípio isonômico seja concretizado, não se pode fixar o pagamento de honorários prévios e honorários advocatícios a quem é alvo de assistência judiciária gratuita porque isso é o mesmo que negar a essas pessoas o acesso à justiça, diminuindo-lhe a cidadania.

10. Presunção de má-fé sem correspondência fática

O Ministro Barroso insiste em afirmar: há “excesso de litigiosidade, e acho que não só na Justiça do Trabalho, mas em múltiplas áreas, a judicialização da vida e o excesso de litigiosidade são marcas bem visíveis do Brasil contemporâneo e o fenômeno é particularmente perceptível na Justiça do Trabalho com aquelas 4 milhões de ações novas em 2015 e os números provisórios de 2016 são próximos a esse também”. E define as causas para isso:

“A primeira é grave. Há muitos empregadores que descumprem as suas obrigações. A segunda, há muito ajuizamento de ações temerárias. E a terceira, a legislação é complexa e é muito difícil mesmo adimplir com tudo que ela prevê.”

É preciso repisar o que antes já dissemos: das 3,9 milhões de demandas trabalhistas ajuizadas no Brasil em 2016, apenas 7% foram julgadas totalmente improcedentes. É evidente, portanto, que o alto número de reclamações está ligado ao elevado estágio de descumprimento da legislação e da própria ordem constitucional.

Por isso mesmo, a negação do acesso à justiça só serve para incentivar ainda mais essa prática, que, como dito, não é perniciosa apenas para os trabalhadores individualmente considerados.

O Ministro Barroso admite que a maior parte das reclamações resulta do inadimplemento de obrigações pelo empregador, mas sugere que esses empregadores são, de certo modo, incentivados a não cumprirem a legislação do trabalho, seja por conta da complexidade da lei, seja porque, segundo lhe foi dito, os trabalhadores que perdem o emprego sempre entram com uma reclamação trabalhista mesmo e, então, o empregador prefere não “adimplir” as obrigações trabalhistas e fazer acordo na Justiça.

A lógica argumentativa acatada, no entanto, gera um perdão para a prática ilícita, que sequer é vista enquanto tal, e culpa aquele que, sendo vítima do ato ilícito, vai à Justiça pedir o resgate da autoridade da ordem jurídica.

Para justificar sua conclusão, o Ministro relata um caso que lhe foi relatado por alguém:

“Eu estive recentemente em um evento internacional, em que estava um importante dirigente de uma importante empresa brasileira, de boa reputação, e que me disse, aliás, disse publicamente, depois me disse reservadamente que ele investe no seu compliance trabalhista, que a existência de reclamações trabalhistas contra a sua empresa traz um custo institucional alto, que ele gostaria de evitar e que não obstante gastar muito dinheiro com o compliance trabalhista e se empenhar por cumprir tudo o que a legislação exige, ainda assim tem milhares de reclamações trabalhistas. Portanto há alguma coisa errada em um sistema em que mesmo aquele que faz o máximo para cumprir a norma, não consegue.”

Acontece que a situação verificada na jurisdição trabalhista contraria o pressuposto adotado, isto porque exemplos não faltam de empregadores que, ao contrário daqueles que levaram seus “pareceres” ao Ministro Barroso, induzindo-o a uma percepção equivocada da realidade das relações de trabalho no Brasil, cumprem regularmente, como deve ser, a legislação do trabalho, tendo como consequência o fato de que apenas raramente aparecem como acionados em reclamações trabalhistas.

É o caso, por exemplo, da empresa Lupo, em Araraquara, que, possuindo, na sede fabril naquela cidade cerca de 4.500 empregados, foi parte reclamada em 30 (trinta) reclamações trabalhistas no ano de 2016, sendo que, considerando os dados específicos da 3ª. Vara do Trabalho de Araraquara, foram, nos últimos 10 (dez) anos, 54 reclamações. Ordinariamente, essas ações, inclusive, dizem respeito a discussões sobre eventual ocorrência de acidente do trabalho e não ao “inadimplemento” de obrigações trabalhistas. E o grupo ao qual se integra referida empresa teve, desde a década de 90, considerando toda a jurisdição abrangida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, 399 reclamações.

Em Jundiaí, a empresa Maccaferri, com 369 empregados, teve 48 reclamações trabalhistas nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018. A empresa Weir, com 335 empregados, e a empresa Prensa Jundiaí, com 120 empregados, tiveram, respectivamente, no mesmo período, 53 e 27 reclamações; para ficar em alguns poucos exemplos.

Os números, portanto, não autorizam a dizer que todo trabalhador é um delinquente em potencial, no sentido de possuir uma propensão a utilizar o processo de forma abusiva para extrair benefício indevido de seu ex-empregador; ou que todas as empresas não cumprem deliberadamente os direitos de seus trabalhadores porque sabem que serão alvo de reclamações trabalhistas.

Aliás, não se chegaria a essa situação completamente deturpada do exercício do direito de ação sem o necessário “conluio” generalizado de advogados e advogadas (de empregados e também de empregadores, vez que a atuação deliberada de descumprir a lei supostamente se basearia em aconselhamento jurídico), daí porque o argumento atinge a própria dignidade da advocacia trabalhista e, por conta disso, foi alvo de uma carta de repúdio assinada por 150 advogados e advogadas trabalhistas[xviii].

Fato é que essa presunção de má-fé, que foi utilizada para negar vigência à garantia constitucional da justiça gratuita, não se apoia em dados reais.

De todo modo, para as ações temerárias, existe a previsão de condenação por litigância de má-fé. Trata-se de exceção, e como tal deve ser enfrentada. Os dispositivos em análise na ADI 5766, repita-se, não se referem à coibição do ajuizamento de demandas temerárias. E nem conseguem atingir tal objetivo.

O mais estranho é perceber que mesmo sob a ótica distorcida e perversa de que demandas temerárias devem ser coibidas com vedação de acesso à justiça o resultado será inócuo.

Ora, se a demanda for totalmente improcedente, o reclamante reconhecidamente pobre e sem condições de litigar em juízo de modo oneroso, certamente não terá condições de pagar honorários de advogado ou perito. Logo, quando estivermos realmente diante de lide temerária, a decisão de total improcedência, mesmo condenando ao pagamento de honorários, será fadada a entrar para o rol de execuções trabalhistas não resolvidas, pois de acordo com a previsão legal, não havendo créditos para serem compensados, após dois anos de “suspensão da exigibilidade”, o processo poderá ser definitivamente arquivado.

Nada demonstra de modo mais claro que o objetivo desses dispositivos não é, nem nunca foi, coibir demandas temerárias. Não se trata de evitar demandas que a parte autora sabe destituídas de fundamento. Trata-se, isto sim, de estabelecer a lógica da penalização pelo exercício do direito de acesso à justiça, beneficiando claramente o agressor da ordem jurídica, com a previsão de que o trabalhador ou a trabalhadora em relação aos quais houve lesão reconhecida pelo Estado sejam compelidos a devolver os valores que lhe forem deferidos a quem efetivamente cometeu ato ilícito. O recado não poderia ser mais claro. Evitar que trabalhadores e trabalhadoras, para os quais exercer o direito de ação já é um ato de coragem, não ajuízem mais demandas trabalhistas.

Ora, se trabalhadores e trabalhadoras não tiverem coragem de ajuizar demanda trabalhista em relação aos atos ilícitos contra eles praticados no ambiente de trabalho, haverá redução do número de ações trabalhistas, mas será, como já afirmamos, uma redução artificial. E, em pouco tempo, veremos questionada a própria existência de uma estrutura destinada a cuidar desse conflito de interesses. Se os litígios não são judicializados, não há necessidade de uma estrutura de Poder Judiciário para deles cuidar.

A perversidade desse objetivo vai muito além do simples desmonte do sistema de proteção estatal para a relação capital e trabalho e de todas as implicações dessa opção legislativa, para a própria manutenção da ordem capital.

11. A culpa não pode ser atribuída à vítima

O Ministro segue afirmando que:

“A Reforma Trabalhista, e esta lei que nós estamos discutindo aqui, só enfrentou um problema, que é o excesso de judicialização por parte dos empregados, não enfrentou nem a complexidade da legislação nem os descumprimentos contumazes da legislação trabalhista, e sobre isso eu vou falar brevemente ao final do meu voto. Seja como for, é disso que a lei trata, é esta lei que nós estamos aqui apreciando e é sobre isso que eu estou expondo ao longo do meu voto. Nós temos um sistema, anterior a esta lei, cuja estrutura dava excessivos à litigância. As pessoas na vida, como regra, elas fazem escolhas racionais e se movem por incentivos e riscos. A mesma lógica se aplica aos litígios judiciais. Se existe chance de algum proveito e nenhum risco de perder, o que se faz é dar-se um incentivo estatal à litigância fútil. Agora, se no caso de uma litigância que gere insucesso houver algum tipo de ônus, algum tipo de perda, pequena que seja, o indivíduo fará uma avaliação mais séria e responsável antes de ajuizar uma demanda.  Portanto, nós tínhamos um sistema em que havia um incentivo para demandar e nenhum ônus para conter esse demandismo. Portanto, criar algum tipo de ônus, modesto como seja, para desincentivar a litigiosidade fútil me parece ser uma providência legítima para o legislador”.

Dessa afirmação se extrai que a ideia do legislador, da fixação de despesas aos beneficiários da justiça gratuita, estaria justificada pela necessidade de conter a “litigiosidade fútil”.

O fundamento da legislação, no entanto, teria invertido toda a lógica jurídica constitucional, destruindo de vez a já tão abalada “presunção de inocência” e pondo em seu lugar, ao menos com relação os pobres (assim como tais considerados pela própria lei), uma “presunção de culpa”, ou uma “presunção da utilização abusiva do processo por parte do beneficiário da justiça gratuita”.

Essa presunção, que não decorre explicitamente do texto da Lei n. 13.467/17 ou de qualquer outra e que não se sustenta em máximas de experiência estatisticamente verificáveis, não é fundamento legítimo, portanto, para negar vigência à garantia fundamental, fixada expressamente na Constituição Federal, da assistência judiciária integral e gratuita aos que não tenham condições econômicas de suportar os custos do processo.

Haveria, ainda, nessa presunção, uma insuperável contradição, pois os mesmos custos não são impostos a litigantes em outras esferas do Judiciário.

Por consequência, apenas com relação aos trabalhadores que estão reconhecidamente na condição de beneficiários da justiça gratuita, tal presunção derrubaria a pecha de delinquentes em potencial que precisariam ser “desincentivados” de praticarem o ato abusivo, pois com relação a outros litigantes o mesmo pressuposto não existiria.

O uso abusivo do direito de ação tem regramento específico e deve ser declarado em decisão judicial devidamente fundamentada que vincule o fato ao tipo legal expressamente previsto. A presunção de exercício abusivo do direito, fixada, sem base fática, como fundamento de uma interpretação legislativa, adquire a feição de uma presunção “iuri et de iure”, vez que não torna impossível àqueles a quem a presunção atinge negativamente exercerem o seu direito de defesa e produzirem prova em sentido contrário.

É imprópria, pois, a criação de uma “presunção da utilização abusiva do processo por parte do beneficiário da justiça gratuita”, que não decorre de texto de lei e que não se sustenta em máximas de experiência estatisticamente verificáveis, pois aniquila a presunção de inocência e até impede o legítimo direito de defesa, não sendo, pois, fundamento legítimo para negar vigência à garantia fundamental, fixada expressamente na Constituição Federal, da assistência judiciária integral e gratuita aos que não tenham condições econômicas de suportar os custos do processo.

Tal presunção, aliás, não tem respaldo constitucional e, por consequência, não pode servir como fundamento para negar vigência a uma garantia fundamental, até porque estimula preconceitos e, como preconiza Paulo Bonavides, “Uma Constituição aberta não deve abrigar preconceitos”.

E vale reforçar: apenas 7% das reclamações trabalhistas são julgadas totalmente improcedentes, o que afasta, estatisticamente, a presunção de exercício abusivo, do direito de ação de forma generalizada na Justiça do Trabalho.

Em um aspecto o fundamento oralmente apresentado, que guiou o voto, tem razão de ser e se refere ao fato de que os empregadores que cometem ilícitos trabalhistas têm sido beneficiados nas lides processuais com a realização de acordos vantajosos. Essa prática processual de estímulo ao acordo a qualquer custo, não punindo o ilícito trabalhista e até conferindo ao empregador o benefício da “quitação ampla geral e irrestrita de todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho”, efetivamente constituiu, ao longo de anos, um enorme incentivo ao descumprimento da legislação trabalhista, sendo, em certa medida, uma das grandes causas do elevado número de reclamações trabalhistas.

O Ministro Barroso refere os "custos da máquina judiciária” e afirma que “apenas 11% do custeio da justiça é recuperado por meio de taxa judiciária, custas e emolumentos. Isso significa que cerca de 90% da atuação do Poder Judiciário são 90% subsidiados pela sociedade, isto é, quem paga a fatia mais larga deste custo não são os litigantes, é a sociedade como um todo. Em última análise, é o povo brasileiro e portanto dinheiro que vai para o custeio do Judiciário, importante como seja o papel do Judiciário, é dinheiro que não vai para a educação, é dinheiro que não vai para a saúde, é dinheiro que não vai para o saneamento, é dinheiro que não vai para melhorar estradas”.

Esquece-se de considerar a relevância dos valores arrecadados pela Justiça do Trabalho para a Previdência Social. Em 2016, a Justiça do Trabalho arrecadou R$ 2.385.672.884,90 para a Previdência Social. Em 2017, já sob o assombro da nova lei, esse número foi reduzido para R$ 1.356.057.399,35[xix].

O Relatório Geral da Justiça do Trabalho revela que, em 2015 (portanto, antes do corte orçamentário que tirou 29% da verba de custeio e 90% da verba de investimentos), os custos totais para a estrutura de 24 TRTs, 1.587 varas do trabalho em todo o país, quase 4 mil juízes e cerca de 45,5 mil servidores na ativa, além do TST e CSJT, eram de R$ 17,1 bilhões; o total distribuído nos processos trabalhistas chegou a R$ 17,4 bilhões, fora a arrecadação de outros R$ 2,8 bilhões em tributos, custas e emolumentos aos cofres públicos.

Portanto, a Justiça do Trabalho devolve, diretamente, cerca de 18% a mais do que custa. Isso sem considerar a receita indireta: emprego de milhares de advogados, peritos judiciais, prestadores de serviço, e todos os demais repasses que entram na economia, como os gastos com manutenção, aluguéis, obras, materiais, insumos e muitos outros[xx].

No Relatório relativo ao ano de 2016, consta que a Justiça do Trabalho “contava com 47.545 magistrados e servidores, quantitativo 0,4% inferior ao do ano anterior”. Ainda assim, sua produtividade foi 4,3% superior à alcançada em 2015.

A despesa da Justiça do Trabalho para cada habitante foi de R$ 85,16, 5,2% inferior à de 2015. Em contrapartida, a Justiça do Trabalho arrecadou para a União o montante de R$ 3.276.651.454,37 em IR, INSS, Custas, Emolumentos e multas aplicadas pelo Órgão de Fiscalização, valor correspondente a 18,7% da sua despesa orçamentária e 9,2% superior ao arrecadado em 2015.

Foram pagos aos reclamantes R$ 24.358.563.331,43, 30,5% a mais que em 2015. Os valores pagos decorrentes de acordos judiciais representaram 37,1% do total e aumentaram 18,0%; os decorrentes da execução da sentença representaram 52,8% e aumentaram 33,0%. A demanda processual, em comparação com o ano anterior, aumentou 5,9%, somando ao final de 2016, 3.700.642 casos novos. A cada 100.000 habitantes do País, 1.796 pessoasingressaram com pelo menos uma ação ou recurso na Justiça do Trabalho[xxi].

No ano de 2017, também como efeito do assédio da “reforma”, esse número foi reduzido para R$ 13.246.602.442,95, o que, inegavelmente, repercute, negativamente, na produção, no consumo e na geração de empregos[xxii].

O orçamento destinado à Justiça do Trabalho em 2017 representa uma conquista frente às dificuldades enfrentadas pelo grave corte orçamentário e da luta do presidente do CSJT, ministro Ives Gandra Martins Filho, para reestabelecer o orçamento e não prejudicar a sociedade que precisa da prestação jurisprudencial num cenário onde o desemprego no Brasil afeta mais de 13 milhões de pessoas.

É de salientar que o próprio Ministro, quase ao final da leitura do voto, reconhece que “a Justiça do Trabalho tem um bom desempenho comparada a outros ramos do judiciário”. Reconhece que “a taxa de congestionamento bruto da Justiça do Trabalho é inferior às da Justiça Federal e da Justiça Estadual”; “o índice de atendimento à demanda e superior na média aos índices da Justiça Federal e da Justiça Estadual”; “o custo médio por habitante é substancialmente inferior ao da Justiça Estadual” e “a Justiça do Trabalho tem um percentual bem acima do das outras Justiças de solução de litígio por via de transação, por via de conciliação, o que é igualmente uma virtude que deve ser salientada”.

12. Não se melhora o acesso à justiça eliminando o acesso à justiça

O Ministro Barroso ainda afirma que "quando se permite que cada pessoa individualmente utilize o espaço público para maximizar o seu interesse, o interesse privado prevalece sobre o interesse público e em algum momento o espaço público é consumido e destruído pelo interesse privado”.

O argumento do Ministro Barroso, de que “sem conter a sobrecarga gerada para o Judiciário o próprio acesso à justiça começa a ficar comprometido e portanto o acesso à justiça é comprometido pela negativa da possibilidade de ingresso, mas é também comprometido pela inexistência de filtros mínimos e de desincentivos mínimos para este ingresso porque a demanda excessiva também impede um acesso à justiça, pelo menos a uma justiça que funcione com o mínimo grau de eficiência. E os números da judicialização no Brasil são muito impressionantes, os números do Judiciário e da judicialização no Brasil de uma maneira geral”, talvez sirva para a justiça comum, mas não para a trabalhista.

Tanto isso é verdade que o Ministro se reporta, para fundamentar sua conclusão, em tese de doutoramento do juiz federal Erik Navarro Wolkart, chamada “Análise econômica e comportamental do processo civil”.

Todos os dados antes referidos demonstram que a Justiça do Trabalho é eficiente e tem um número muito pequena de demandas integralmente improcedentes.

A impressão que se tem é de que todo mundo entra com ação trabalhista, algo aliás, que o Ministro afirma em trecho anterior do seu voto, chegando a dizer que os empregadores não respeitam os direitos fundamentais trabalhistas porque aguardam a ação para fazer o pagamento.

Ora, o Relatório da Justiça do Trabalho, antes já referido, assinado pelo então presidente Ives Gandra Martins Filho, refere que a cada 100.000 habitantes do País, apenas 1.796 pessoas ingressaram uma ação ou recurso na Justiça do Trabalho.

O Relatório ainda dá conta de que a indústria e os serviços diversos lideraram o ranking de atividades econômicas com maiores quantitativos de casos novos, reafirmando a relação direta entre precarização/terceirização e inadimplemento dos direitos fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras.

Novamente, aponta-se - nesse mesmo Relatório - que os assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho são: aviso prévio; multa do artigo 477 da CLT; multa do artigo 467 da CLT; e multa de 40% do FGTS. Ou seja, assuntos que refletem a prática de despedir sem efetuar o pagamento das verbas resilitórias.

Em 2016, pelo Relatório, as execuções iniciadas somadas às execuções pendentes de anos anteriores totalizaram 2.981.156 processos. Desse total, foram encerradas 661.850, 22,2%. Portanto, se existem tantas ações tramitando na Justiça do Trabalho, é pela renitência de empregadores que insistem não apenas em descumprir direitos como também em procrastinar a solução dos processos, escondendo patrimônio[xxiii].

Quanto aos gastos, convém insistir que a Justiça do Trabalho arrecadou para a União o montante de R$ 3.276.651.454,37 em IR, INSS, Custas, Emolumentos e multas aplicadas pelo Órgão de Fiscalização, valor correspondente a 18,7% da sua despesa orçamentária e 9,2% superior ao arrecadado em 2015. E que recompôs danos da ordem de R$ 24.358.563.331,43 (valores pagos em declamatórias trabalhistas e, portanto, decorrentes de direitos desrespeitados).

De qualquer modo, precisamos também salientar que esses números, que desconstroem a retórica de que a Justiça do Trabalho é cara para o cidadão, sequer deviam estar sendo discutidos. É que a função judicial é indispensável para um Estado Democrático de Direito, revela-se de interesse público, sobretudo na defesa das maiorias oprimidas. Logo, não pode ser pautada pela lógica da eficiência. Não estamos tratando de questão relacionada a uma empresa que visa o lucro. Estamos tratando de acesso à justiça, direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

13. Improcedência do pedido não é ato ilícito e não pode gerar aniquilamento de uma garantia constitucional

Ao examinar concretamente o art. 790-B da CLT (“A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita” e §4º, “somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo”), Barroso afirma que “não há desembolso, ninguém tem que tirar do que já tem, pode ter que vir a tirar daquilo que venha a eventualmente receber se tiver formulado uma pretensão e esta pretensão tiver sido reconhecida pela justiça como indevida, sendo que houve a atuação de um perito que na crença geral seria pago pela União, mas que em última análise, como a União vive do que arrecada, seria pago pela sociedade brasileira, seria pago, pelo menos em 90%, pelo subsídio que todas as pessoas, inclusive as muito pobres, dão à litigiosidade perante o Poder Judiciário”.

Quanto ao §4º do artigo 791-A (“vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário”), afirma ser “bastante razoável, deixou de ser hipossuficiente, passou a ter recursos, acho que deve pagar efetivamente o que deve. Se permanecer hipossuficiente não precisa pagar absolutamente nada, a menos que tenha ganho naquele ou em outro processo créditos suficientes para arcar com esse ônus. Portanto, de novo aqui, não há necessidade de qualquer desembolso, só vai pagar se tiver obtido algum ganho parcial naquela causa ou ganho em alguma outra causa, ou seja, na prática ou o sujeito vai ter deixado de ser pobre ou ele não vai ter que pagar porque a menos que seja um litigante contumaz, o sujeito não tem 3, 4, 5 litígios correndo ao mesmo tempo”. E acrescenta:

“Eu penso, com as observações que vou fazer logo a seguir, que não há desproporcionalidade nesta previsão legal, aqui proporcionalidade utilizada em sentido técnico, saber se a medida é adequada, saber se ela é excessiva e saber se o que se ganha com ela é mais vantajoso do que aquilo que se perde. Por que que ela é adequada? Porque evidentemente se o seu objetivo; a adequação significa uma relação racional entre o meio utilizado e o fim visado. Qual é o fim visado aqui? Diminuir a litigiosidade fútil. Qual é o meio empregado? Cria-se algum ônus para quem litiga e perde, portanto o meio é claramente adequado. Quando você cria um ônus você desincentiva um determinado comportamento.
A medida claramente não é excessiva porque não interfere com o acesso à justiça, o sujeito continua podendo ingressar em juízo com a sua reclamação trabalhista sem pagar nada e se ele continuar pobre e não ganhar nada ele continua sem ter que pagar nada. Portanto acho que claramente não é uma medida excessiva e acho que ela tem proporcionalidade em sentido estrito porque concilia de um lado o interesse no acesso à justiça e de outro lado o interesse legítimo da sociedade no uso equilibrado do Poder Judiciário.
Portanto, considero que a norma é proporcional, fazendo apenas as observações que se seguem, presidente, e já me encontro no terço final do meu voto, que é o seguinte...”

A Lei n. 13.467/17, ao fixar o custo dos honorários advocatícios ao reclamante em razão da sucumbência recíproca mesmo ao beneficiário da justiça gratuita, potencializa as possibilidades de descumprimento de direitos pelos empregadores. Além, evidentemente, de incorrer em grave impropriedade jurídica.

É justamente essa grave impropriedade que o Ministro vê como proporcional e razoável.

Ora, se a Constituição garante a assistência integral, não é devido à lei reduzir o alcance da garantia constitucional, não se podendo adotar a improcedência do pedido como parâmetro para isso, pois o direito de ação é abstrato. Dito de outro modo, o regular exercício do direito constitucional de ação não está vinculado à procedência do pedido.

A improcedência do pedido, por consequência lógica, não representa a prática de um ato ilícito, estando, igualmente, na esfera do exercício regular de um direito.

Não pode o legislador infranconstitucional, portanto, atribuir à improcedência, vista como exercício regular de um direito, o efeito de negar vigência a uma garantia constitucional.

Expresso de modo mais direto: o exercício regular do direito de ação não pode gerar perda da eficácia da garantia constitucional da assistência judiciária gratuita.

O que a Lei 13.467 faz, para reduzir o número de reclamações trabalhistas, sem alterar quaisquer das suas causas, é simplesmente punir a vítima, dificultando o seu acesso ao Judiciário, o que, de forma reversa, representa maior incentivo às práticas ilícitas, provocando, igualmente, punição aos empregadores que cumprem a legislação.

Pensando a questão do ponto de vista da efetividade do direito, a solução seguiria caminho bastante diverso e se voltaria, como ocorre nos países costumeiramente citados como exemplos de poucas ações judiciais, aos aspectos punitivos da prática ilícita, para que o processo deixasse de ser, como tem sido, “um bom negócio” para o empregador que descumpre deliberadamente a legislação trabalhista, como já advertira há muito Orlando Teixeira da Costa, à coletivização das ações, ao desenvolvimento de técnicas processuais voltadas a conferir maior celeridade ao processo, como a tutela antecipada, a redução de recursos etc.

Aliás, diante da ausência de efeito punitivo pela prática do ilícito trabalhista, e sem uma prestação jurisdicional mais efetiva e que incentiva acordos com supressão de direitos e “quitação do extinto contrato de trabalho”, quando uma empresa se vê com alguma dificuldade econômica, o primeiro “custo” que vislumbra cortar é o que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, sendo que, como se está dizendo, nem mesmo é a crise que justifica o ilícito trabalhista. O ilícito se insere na própria estratégia administrativa-financeira de muitas empresas, que, por esse meio, procuram, inclusive, obter vantagem sobre a concorrência.

Alheio a todo o desenvolvimento da teoria processual voltada à efetividade da prestação jurisdicional, como fator de acesso à ordem jurídica justa, o que o legislador da “reforma” trabalhista pretendeu – com acolhimento no voto oralmente prolatado pelo Ministro Barroso – foi meramente ameaçar os trabalhadores com custos processuais.

E o efeito dessa ameaça já se verifica com a drástica diminuição do número de reclamações trabalhistas, sem qualquer demonstração de que isso tenha representado melhora na efetividade dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

A questão, de todo modo, não é sociológica e sim jurídica e desse ponto de vista a tentativa do legislador de obstruir o acesso à justiça ao pobre encontra óbice insuperável, como já manifestado.

Note-se que nem mesmo fora do âmbito da assistência judiciária gratuita é possível estabelecer custos processuais que anulem o benefício econômico obtido no processo, pois, de fato, o processo não cria direitos ou valores econômicos, servindo, meramente, como regra, para declarar direitos pré-existente e definir os efeitos econômicos da agressão a esses direitos, sendo que no Direito do Trabalho, inclusive, esses efeitos já estão fixados no próprio corpo normativo. Então, se o beneficiário da justiça gratuita aufere algum valor no processo isso diz respeito a uma situação pretérita que, inclusive, já foi avaliada para fins da concessão da assistência judiciária gratuita e que apenas reflete o dano jurídico experimentado decorrente do ato de ilegalidade cometido pela parte contrária, que, inclusive, provocou a propositura da ação.

Considerar, como propõem os artigos postos à discussão, indo além, inclusive, do que dispõem a respeito os artigos do CPC, que o ganho obtido no processo pelo beneficiário da justiça gratuita possa ser utilizado para pagar despesas do processo e até os honorários advocatícios da parte contrária é o mesmo que negar a gratuidade integral ao beneficiário que formulou pretensões procedentes, ou seja, àquele que, ao menos em parte, tem razão, e manter a gratuidade integral unicamente para o beneficiário que não tem razão alguma, invertendo a própria utilidade de todo o aparato jurisdicional.

Além disso, gera a situação inconcebível de que o efeito da ilegalidade praticada pelo reclamado, cometida durante meses ou anos, considerando-se a característica da relação de emprego, de ser uma relação jurídica de trato sucessivo, seja parcialmente anulado pela própria via institucional voltada ao resgate da autoridade da ordem jurídica, beneficiando a quem cometeu a ilicitude, isto porque o reclamante, beneficiário da assistência gratuita, que adquire algum valor no processo, mas sucumbe em outros, teria que pagar o advogado da reclamada (empresa) com o que houve por direito em função da ilegalidade cometida pela reclamada. Assim, parte da ilegalidade é revertida em proveito de quem cometeu o ato ilícito.

Bem diferente é a regra do processo civil – que sequer seria aplicável ao processo do trabalho, dada a maior proteção jurídica que se deve conferir aos trabalhadores em sua relação com o capital, que, ademais, é produzido pela força de trabalho dos trabalhadores – que permite a cobrança posterior dessa dívida constituída no processo (em decorrência da sucumbência) caso se demonstre a mudança completa de patamar da condição econômica daquele que havia sido beneficiário da assistência gratuita, mas isso, claramente, considerando a situação futura e não a pretérita que diz respeito ao processo no qual o benefício foi concedido. O proveito econômico obtido no processo pelo beneficiário da justiça gratuita não serve ao pagamento desses custos do processo pela simples e lógica razão de que fora concedido ao beneficiário tal direito para que não receasse entrar com a ação.

14. Interpretação sistemática não é o mero pinçar de normas

Ao final do seu voto, o Ministro refere ser "necessária a preservação das verbas alimentares e do mínimo existencial do trabalhador e portanto as cobranças sucumbenciais não podem incidir sobre valores imprescindíveis à subsistência do reclamante para impedir que isso aconteça, eu estou interpretando esses dispositivos que li anteriormente conforme a Constituição para estabelecer dois critérios limitadores: o primeiro, o valor destinado ao pagamento de honorários de advogado e periciais não pode exceder 30% do valor líquido dos créditos recebidos. Dois, segundo critério, somente será possível utilizar para tal fim os créditos que excedam o teto dos benefícios pagos pelo Regime Geral da Previdência Social, que atualmente é de R$ 5.645,89”.

Trata-se de critérios arbitrários, propostos sem qualquer fundamento legal, que mitigam a condição de crédito alimentar, abrindo passagem para que essa condição (reconhecida expressamente no art. 100 da CF) seja negada. A proposta de voto não é, pois, conforme a Constituição, pois nega não apenas o direito de acesso à justiça, premiando o autor de ato ilícito, mas também o direito à natureza alimentar desse crédito, com todas as suas decorrências legais, previstas inclusive no âmbito do direito comum (art. 1.707 do Código Civil).

Cabe ressaltar que sequer é possível, no conflito de normas estabelecido, entre a previsão da Lei n. 13.467/17 e o Código de Processo Civil, invocar a aplicação da nova “lei trabalhista”, por ser mais específica, porque, em se tratando de garantias fundamentais, a regra específica não pode reduzir o patamar já alcançado por norma mais ampla, vez que isso representaria a consagração de um estrato social determinado ao qual se imporia uma condição de subcidadania.

Quando o tema é a preservação de garantias fundamentais, o conflito de normas se resolve pela aplicação da regra de maior proteção, ou, como fixado na base teórica do Direito do Trabalho, pela aplicação da norma mais favorável à condição humana. Sendo assim, em termos de direitos fundamentais, o geral, quando mais benéfico, pretere o específico.

No caso do voto do Ministro Barroso, não se trata de aplicar norma menos favorável, mas de criar novas regras, que não foram discutidas nem redigidas por quem detém a função de produzir leis.

15. O acesso à justiça como questão de ordem pública

Com relação ao artigo 844, cujo parágrafo 2º (“Na hipótese de ausência do reclamante este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do artigo tal da CLT, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar no prazo de 15 dias que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável”. E seu parágrafo 3º: “O pagamento das custas a que se refere o parágrafo 2º é condição para a propositura de nova demanda”), Barroso afirma que “de acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no ano de 2015, 22,6% das ações trabalhistas ajuizadas foram arquivadas. Um, ou pelo não comparecimento do reclamante ou pela inépcia da inicial no caso de procedimento sumaríssimo. Logo, para coibir esse mecanismo que mobiliza a máquina judiciária à toa, em vão, e sempre lembrando que nada é de graça e que alguém paga esse custo, parece perfeitamente legítimo fazer o que faz a lei, exigir que quem faltou apresente uma justificativa e se não tiver justificativa e quiser demandar de novo tem que recolher as custas do processo a cujo arquivamento deu causa”.

Novamente há presunção de má-fé e tentativa de punição do trabalhador. A regra refere-se à "motivo legalmente justificável”, mas não diz qual seria a hipótese a ser considerada justificada na forma da lei, pois não há lei especificando razões pelas quais o trabalhador pode não conseguir comparecer à audiência. As principais, que ocorrem no dia a dia dos foros trabalhistas, “até quem não é da área sabe” quais são: o trabalhador falta quando arranjou novo emprego e tem medo que o patrão descubra a reclamação ou falta quando não tem dinheiro para pagar o deslocamento. Seriam esses motivos legalmente justificados?

E ainda que fossem, como justificar uma regra que condiciona o acesso à justiça a pagamento de custas de outro processo, já arquivado, e isso de quem é detentor do benefício da gratuidade?

Apenas o Reino Unido inseriu, em sua “reforma”, regras sobre pagamento de custas que dificultavam o acesso à justiça para os pobres. Lá, a Corte Constitucional, em decisão recente, julgou inconstitucionais tais artigos, exatamente porque implicam o impedimento do ajuizamento de demanda e, portanto, do exercício do direito à tutela jurisdicional. A decisão foi proferida em julho de 2017, em razão de recurso apresentado pelo UNISON – Sindicato dos Servidores Públicos do Reino Unido -, o segundo maior sindicato britânico. De acordo com reportagem sobre a matéria: “Por meio da Employment Tribunals and the Employment Appeal Tribunal Fees Order 2013, o governo britânico fixou taxas para o acesso de trabalhadores aos tribunais trabalhistas. Alegadamente buscava, com a exigência de tais taxas, transferir parte dos custos dos tribunais trabalhistas para os trabalhadores, dissuadir demandas improcedentes e estimular acordos prévios.(…) O valor de tais taxas dependia do tipo da demanda ajuizada. Para o ajuizamento de demandas mais simples, passou-se a cobrar dos trabalhadores taxa no valor de 390 libras esterlinas (custo equivalente a mais de 1.500 reais), e para demandas mais complexas – envolvendo, por exemplo, questionamentos acerca de demissões injustas, equiparação salarial e discriminação de trabalhadores -, passou-se a cobrar o montante de 1.200 libras esterlinas (valor equivalente a quase 5.000 reais)”[xxiv].

A declaração de inconstitucionalidade retirou esses dispositivos do ordenamento jurídico inglês.

A manutenção da nova redação do art. 844 da CLT, ao contrário do que expressa o Ministro Barroso ao referir que "seja bastante mais singelo e imaginaria que nem haja maior discussão sobre a sua constitucionalidade, mas como nós todos sabemos aqui no Plenário a gente nunca é capaz de prever com rigor o que vai gerar discussão” é de extrema gravidade, pois implica que uma condição de cidadania já alcançada possa ser reduzida.

Essa disposição, como de resto todo o texto da Lei 13.467, fere a cláusula geral de proteção dos direitos fundamentais do não retrocesso, traduzida no Direito do Trabalho pelo princípio da condição mais benéfica, que, inclusive, tem sede constitucional, conforme previsão do “caput” do art. 7º, o qual estabeleceu que os direitos trabalhistas são aqueles que ali se relacionou e quaisquer outros que “visem à melhoria” da condição social dos trabalhadores.

Há um interesse público em não dificultar o acesso à justiça para que a autoridade da ordem jurídica, de direito material, seja preservada e isso é ainda mais relevante quando se refere aos direitos sociais, essencialmente ligados a questões de ordem pública.

É essencial, portanto, que se obste, por meio da declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos em questão, a ocorrência de todos os problemas jurídicos, econômicos, sociais e humanos acima mencionados e que decorrem da negação do acesso à Justiça do Trabalho. A garantia do acesso à justiça não pode ser anulada pela própria via processual porque, com isso, se corre o grave risco de destruir a eficácia de todo o aparato protetivo da condição humana dos trabalhadores.

Em um caso, que ganhou grande repercussão midiática, a reclamante foi condenada a pagar R$67.500,00 a um empregador. Ocorre que, na mesma sentença, foi reconhecido que o empregador feriu, diariamente, durante toda vigência da relação de emprego, vários direitos trabalhistas da reclamante, pelo que se chegou inclusive, a uma condenação no montante de R$50.000,00. No entanto, como alguns pedidos da reclamante foram julgados improcedente, notadamente um que dizia respeito ao recebimento de indenização por dano moral, gerando a condenação da trabalhadora ao pagamento de honorários do advogado do empregador, o que restou como mensagem foi que a ilegalidade reiterada cometida pela empresa, que atingiu preceitos de direitos fundamentais, inclusive, foi menos grave do que uma afirmação feita pela reclamante na petição inicial.

Todo o ilícito cometido, durante anos, pelo empregador foi perdoado porque a reclamante, na avaliação judicial feita, expressou, na petição inicial, uma pretensão improcedente. Assim, por obra da abstração processual, com aparência de moralização, chegou-se ao resultado de que o infrator contumaz da ordem jurídica cometeu uma infração de muito menor potencial ofensivo do que a reclamante que (mesmo sem ser considerada litigante de má-fé) deduziu uma pretensão improcedente. No caso, o empregador, declaradamente agressor da ordem jurídica trabalhista, não só foi perdoado como também se viu premiado, saindo do processo credor da reclamante, a quem nenhum ato de ilegalidade foi imputado.

16. Conclusão

Conclui-se, por todos esses argumentos, que não se pode assistir em silêncio a construção de um revisionismo histórico, que tenta desconsiderar a realidade das relações de trabalho, da ineficácia dos direitos trabalhistas e da atuação diligente e eficiente (com todas as limitações aqui mesmo reconhecidas) da Justiça do Trabalho, para emplacar um dispositivo legal que representa mais uma violência contra os trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, fazendo letra morta de uma garantia constitucional duramente conquistada do acesso à justiça ao pobre, conforme consagrado em diversos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Em hipótese alguma é possível admitir esse retrocesso!

Porto Alegre/São Paulo, 21 de maio de 2018".

Fonte: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/contra-o-revisionismo-historico-e-a-supressao-do-acesso-a-justica-do-trabalho-o-caso-da-adi-5766. Acesso: 06/08/2018.


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