"O consumidor tratado como produto e que pode ser
desprezado
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
No ano passado, meu amigo Outrem Ego, bastante nervoso, disse-me o seguinte: “Sou
cliente de uma operadora de tevê a cabo há mais de dez anos. Nunca atrasei uma
só prestação. Nenhum mês. Há dias e semanas em que nem assisto nada. Muitas
vezes o sinal foi cortado nesses anos todos e jamais me deram um desconto. Pois
bem, sabe-se lá porque o conta desse mês de agosto ficou enroscada em outras –
tenho muitas contas pra pagar. Vencia dia 10 de agosto e eu só vi dia 15.
Paguei, então, no dia 15. Mas, não é que recebi uma carta grosseira, expedida
no dia 16, dizendo que se eu não regularizasse meu débito em dois dias o sinal
iria ser cortado. Empresários grossos e mal educados. Será que não viram que
foi um engano? Será que não distinguem bons clientes de maus clientes? Esses
milhares de reais que eu entreguei para eles esses anos todos não valem nada?
Fico pensando: se eu fosse cliente de um
restaurante por igual tempo e fosse lá uma vez por mês comer e pagasse a conta
direitinho. Será que, depois de dez anos, se eu tivesse esquecido a carteira, o
dono do restaurante me faria lavar os pratos?
Diante do desrespeito, eu até pensei em trocar de
operadora, mas deve ser tudo igual. Nós consumidores não temos saída.
É assim que eu me sinto: ultrajado. Os
administradores desse capitalismo moderno são todos uns estúpidos!”
Infelizmente, sou obrigado a concordar com ele. O
desprezo ao consumidor grassa na sociedade capitalista atual. Veja esse
exemplo: nos anos oitenta, os bancos de primeira linha tinham uma técnica de
cobrança que sempre levava em consideração o histórico dos
clientes. “Uma coisa”, diziam seus executivos, “é um novo cliente que
logo no primeiro empréstimo deixa de pagar alguma prestação; outra, bem
diferente, é um cliente antigo que sempre pagou em dia e que, de repente,
atrasa”.
Isso era não só elegante, como inteligente e
técnico mesmo: se um cliente nunca deu problema, a probabilidade de que ela
venha a dar é menor que daquele que começou na contramão. Ademais, o
cliente antigo já rendeu muitos benefícios ao fornecedor e, por isso, merece
uma maior consideração.
Um outro exemplo muito particular, que nos últimos
tempos tem ocorrido na área do ensino, pode permitir uma explicação para esse
tratamento que, atualmente, recebem os consumidores. Não é de agora que os
consumeristas mostram que a educação tornou-se um produto de consumo e que ela
vem sendo produzida em algumas escolas inspiradas nos modelos de linhas de
produção. E é um mercado em expansão.
Recentemente, li uma matéria no Jornal Valor
Econômico que tratava da aquisição da Universidade Norte do Paraná – Unipor
pela Kroton Educacional pelo preço nada desprezível de R$1,3 bilhão. A primeira
parcela do acerto foi paga com o aumento de capital de R$ 650 milhões com
subscrição feita a R$ 17,50 por ação em março deste ano. Outros R$ 390 milhões
serão pagos em parcelas. E, até o fim do semestre, novas ações serão emitidas e
entregues à família fundadora da Unopar, completando a incorporação. A
aquisição da Unopar foi a maior já realizada no setor.
O que me chamou a atenção foi que, segundo dizia a
matéria, a primeira impressão do mercado foi a de que a transação teria sido
fechada a preço elevado. Cada aluno custou à Kroton cerca de R$ 8 mil. Um mês
antes, a Anhanguera pagara R$ 6,9 mil por estudante da Uniban. Cada estudante,
isto é, cada consumidor tinha um preço, como se faz com um produto.
E mais: um consumidor vale aquilo que é capaz de
render à vista ou à prazo, pois segundo disse o representante da compradora “O
preço foi relevante, mas não caro. O valor pago é uma projeção para o ganho
futuro”.
É verdade que o consumidor (isto é, o cliente) sempre
foi considerado um ativo do fundo de comércio dos negócios em geral. Até aí,
não parece haver novidade. O problema é que, nesta sociedade capitalista
hiperdesenvolvida e administrada no mundo das ações e finanças, passou a
existir uma enorme distância entre o detentor da empresa e seus executivos e o
consumidor final. Veja-se o exemplo da Universidade fundada por uma família:
enquanto seus administradores são seus membros, ainda é possível um contato
real, um encontro ou uma conversa autêntica entre o aluno e o administrador, na
figura do Reitor, Vice-Reitor, Diretor ou mesmo Presidente da Mantenedora etc.
Mas, na medida em que os donos são investidores que adquiriram ações em bolsa
(e que podem ser investidores de qualquer lugar do mundo), a distância criada
torna-se intransponível. O consumidor é visto muito de longe.
Assim, se o consumidor não é considerado como uma
pessoa real, mas como um mero número que tem certo valor econômico, não há
mesmo necessidade de respeitá-lo e nem de enxergá-lo. A hipótese de perda de um
cliente não é vista como uma descontinuidade dos negócios nem como um
rompimento indesejado: basta que a situação esteja prevista dentro do quadro
estatístico que cuida da inadimplência e das rupturas. Se estiver dentro do
previsto, não haverá preocupação. São números. O consumidor é um número.
Isso é mais relevante nas grandes operações de
massa e em que há pouca competição ou monopólios e oligopólios. Se o consumidor
for mal atendido num restaurante, não precisa mais voltar lá porque há outros
para ir. Mas, como bem disse Outrem Ego, trocar de operadora de tevê a cabo, se
desse para mudar, não alteraria o panorama do desrespeito porque o sistema de
tratamento ao consumidor é parecido ou idêntico.
É, meu caro amigo Outrem Ego, os tempos mudaram e,
claramente, emburreceram: você, bom pagador, está em pé de igualdade com o que
não é; e não se trata de uma questão jurídica, mas apenas de uma estratégia de
desprezo geral. Já disse aqui, antes em meus artigos: como esses grandes
conglomerados agem sempre em conjunto com a mesma estratégia ultrajante e
indelicada, eles podem considerar o consumidor apenas um número, um número
desqualificado que representa uma certa receita mensal. Se for mais barato
violá-lo, nem que seja por uma carta automática mandada via computador, é assim
que será. Ele nada poderá fazer, porque, como você bem disse, nem dá para
trocar de fornecedor. Todos são muitos parecidos nas práticas danosas.
O pior é que, mesmo nesse automatismo, daria para
criar modelos de cobrança para consumidores diferenciados: bastava programar o
computador. Mas, isso é ideia de uma era que acabou: a do capitalismo que
respeitava o consumidor".
7/5/2012
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