“Acesso à Justiça

CAETANO LAGRASTA NETO - Desembargador

 
Como dizia Drummond, dedicando a Manuel Bandeira o seu Política literária: O poeta municipal/discute com o poeta estadual/qual deles é capaz de bater o poeta federal./ Enquanto isso o poeta federal/tira ouro do nariz. Talvez seja essa a situação da atual Política judiciária. (Depoimento à Subcomissão da Reforma do Judiciário, a convite do presidente, deputado José Eduardo Martins Cardozo, da Câmara dos Deputados, sobre ‘Acesso à Justiça’, em 13 de novembro de 2003)


I – A realidade

1. Está-se a depender ainda de imediata mudança de mentalidade dos lidadores do Direito, de uma cultura da sentença, para uma cultura da mediação, que não apenas julgue, mas que pacifique o conflito.

2. É necessário compilar e analisar dados estatísticos, que sejam confiáveis e permitam diagnosticar a crise da Justiça e propor mudanças legislativas, promovendo efetivo acesso a uma ordem jurídica justa.

3. Sem nova forma de eleição de seus órgãos dirigentes, que concretize a independência administrativa e financeira do Poder Judiciário, dificilmente se conseguirá sair da crise que o sufoca e desprestigia.

4. São necessários urgentes estudos para avaliar o impacto de planos econômicos (15 Planos, em 30 anos) no desempenho da prestação jurisdicional. Igualmente, há que examinar o papel desempenhado pelos entes públicos e autarquias como usuários (dos 11 milhões de feitos em andamento no Estado de SP, quase 6 milhões referem-se a executivos fiscais municipais, que, apesar de irrisórios, padecem de lei que autorize o acordo).

II – O acesso disponível

Hoje o acesso à Justiça é assegurado, basicamente, pelos Juizados Especiais, a depender de racionalização da infra-estrutura humana e material, bem como de pesquisas objetivas sobre eventual criação de Varas especializadas e obrigatoriedade da competência, e desde que aparelhada a itinerância.

Atualmente, no Sistema (Capital e no Interior), existem (janeiro a setembro) 643.596 feitos em andamento, sendo que, em 1999, eram 270.972; em 2003, foram homologados, aproximadamente, 100.000 acordos (Capital, 5.471 e Interior, 94.703) nada obstante a proibição de Advogados na condição de Conciliadores. Por outro lado, as audiências iniciais, em alguns fóruns da Capital, estão sendo agendadas para um prazo de 6 meses a 1 ano.

Anote-se, finalmente, que os juízes do Estado de São Paulo, especialmente os do Interior, além do exercício nas respectivas Varas, participam cumulativamente dos 269 Juizados Especiais Cíveis, após o expediente normal e sem contar a atividade no âmbito da própria Vara, na matéria criminal, nos Colégios Recursais, e, eventualmente, na itinerância. Acresce que, no exercício dessa função extra, não percebem indenização (não há verba) e as horas trabalhadas sequer podem ser gozadas como compensação (não há juízes), o que encaminha o Sistema a um caos e desestímulo crescentes.

A situação atual do Judiciário Paulista demonstra a dificuldade, quase intransponível, de acesso a uma ordem jurídica justa, diante da existência de 460.000 recursos aguardando distribuição, em seus quatro Tribunais, sendo que, em 2002, foram interpostos 88.000 Agravos; com distribuição diária, até o mês de setembro, de 4.300 agravos, de um total aproximado de 70.000 distribuições mensais. Apesar disso, não se sabe com certeza se o agravo é necessário ou não, por absoluta ausência de dados estatísticos confiáveis.

Ademais, existem, atualmente, 11.000 vagas para funcionários; 100 vagas para juízes e 148 Varas na Capital, e 427 no Interior, criadas, mas não instaladas. Nos últimos 10 anos, os tribunais de São Paulo tiveram um aumento de distribuição de feitos da ordem de 340%, com a mesma estrutura material e humana. Acrescente-se que o número de juízes, em 1999, era 1.481 e, em 2003, aproxima-se de 1.560.

Neste contexto, afirma Dalmo Dallari que a Lei de Responsabilidade Fiscal impede a modernização do Poder Judiciário, tratando as funções deste como gasto supérfluo, sendo que, progressiva e gradualmente, o Poder Executivo de São Paulo vem reduzindo o orçamento de custeio (material permanente, limpeza, energia elétrica, água, aluguel de prédios etc) atribuindo-o ao ‘fundo de modernização’, instituído, à evidência, para modernizar o Poder Judiciário. Por fim, a população, em sua grande maioria, não dispõe sequer de meios próprios para chegar aos fóruns.

III – O acesso efetivo –

Experiências

O Plano Piloto de Conciliação em 2º. Grau (TJSP) reveste-se de êxito, pois conseguiu, nas audiências realizadas de março a outubro deste ano, ultrapassar 40% de acordos. Só no mês de outubro, atingiu mais de 50% de conciliações, nada obstante tratar-se de recursos que aguardavam distribuição há aproximados 2 anos e meio. A experiência vem sendo expandida para as Comarcas do Interior, deslocando-se apenas o Conciliador, além do que diariamente são protocolados pedidos de mediação pelos próprios interessados.

A experiência de mediação em primeiro grau, através da conscientização e esforço dos magistrados na aplicação do art. 331 do CPC, torna obrigatória a proposta de acordo em audiência preliminar, por conciliador do juízo, e que será reputada como de relevante valor social e considerada para efeito de promoção por merecimento (art. 24 do Projeto de Lei da Mediação).

IV – Dificuldades do acesso

à Justiça e questionamento

institucional

1. Problemas constantes:

a. Precariedade da infra-estrutura material e humana; b. Número de recursos: agravos como obstáculo ao julgamento de apelações; c. Reiterados conflitos de competência entre justiças, estadual e federal e entre os tribunais estaduais; d. Nos Juizados Especiais: alargamento desmedido da competência – microempresa e execução dos próprios julgados; competência obrigatória e Varas especializadas.

2. Questões institucionais: a. Não será possível um diagnóstico do Poder Judiciário brasileiro sem que haja coleta rigorosa de dados e capacidade analítica de seus operadores, capaz de oferecer um retrato confiável da crise da Justiça; b. Descrédito na Justiça: a quem interessa? Ao crime organizado. Às instituições de crédito globalizado e aos jogadores do cassino financeiro, com certeza; c. O controle externo – nas atuais propostas – dirige-se a questões disciplinares e de supervisão. Não deveria, pelo contrário, estar preocupado com mecanismos que possam desenvolver soluções integradas, contando com a participação de outros Poderes e instituições?; d. Ausência de Ouvidorias e extensão das funções correcionais; e. Como justificar a ausência de Defensoria Pública em SP?; f. Os atuais sistemas de concurso de ingresso, promoção e eleição para órgãos de direção dos juízes mais antigos estão ultrapassados; g. Quais devem ser os parâmetros para a redefinição do papel das Escolas de Profissionais?; h. Pode a automação prestar-se a motivo de sobrecarga e morosidade. Acelerar não quer dizer simplificar os processos: a economia de tempo servirá antes para os funcionários burocráticos do que ao juiz e também não será suficiente para afastar o formalismo, a multiplicidade de recursos, o reexame pelos tribunais, ou os obstáculos à execução. A simplificação dos procedimentos não pode ser apresentada como solução, isoladamente, e sem que haja contrapartida na formação dos magistrados.

V – Propostas

Acesso não quer dizer abrir as portas dos fóruns: é necessário que o juiz caminhe em direção ao povo; acesso não quer dizer que o governo possa usar o Judiciário indevidamente, postergando o pagamento e a execução dos julgados, vinculando-os a pretensões ideológicas ou partidárias inconfessáveis.

a. O Poder Judiciário tem que fazer prevalecer a garantia, constitucionalmente prevista, de independência administrativa e financeira (art. 99, CF/88).

b. A situação dramática e de quase indigência a que submetido o Poder Judiciário de alguns Estados faz pensar numa hipotética federalização, talvez como medida extrema e de resultados imprevisíveis.

c. O interesse de potências hegemônicas ou de núcleos financeiros globalizados precipitam a reforma do Judiciário, com base numa exclusiva retomada do procedimento executório, para simplificá-lo e torná-lo imediatamente eficaz aos interesses das instituições bancárias.

d. Impõe-se atualizar a Lei Orgânica da Magistratura Nacional: com previsão mínima de carreira, investidura, promoção e eleição; deveres e garantias dos juízes e a efetiva retribuição pelo trabalho desenvolvido em horas extras. Ademais, há que se reativar o Conselho Nacional da Magistratura, extinto sem motivação expressa, e cujo funcionamento, sob a égide da atual LOMAN, não foi sequer objeto de estudo ou pesquisa, capaz de aquilatar de sua efetividade ou necessidade de reforma.

e. Educação para a Justiça Informal e para outros meios alternativos de solução de litígios. O ensino deficiente vicia os Concursos Públicos, adequando-os mais aos desejos de uma mercantilização do Ensino (‘cursinhos’; proliferação de Faculdades de Direito), o que dificulta a modificação de mentalidade dos lidadores do Direito e a expansão de uma cultura de pacificação do litígio, contraposta àquela da sentença. Cada vez mais, torna-se obrigatória à formação econômica dos lidadores do Direito, diante de uma política econômica mundial globalizada.

f. Itinerância (as experiências da Comarca de São José do Rio Preto, do Pará e do Vale do Jequitinhonha): respectivamente, caminhão da Justiça, justiça fluvial e caravana promovida por juíza, com promotor, delegado, escrivão, oficial de justiça e defensor público – audiências no prédio da Câmara, inclusive de Júri. Em SP, estão instalados 44 juizados itinerantes, com características reduzidas, mas com percentual maior de acordos homologados do que nos próprios Juizados, sempre a padecer de meios e de infraestrutura material e humana.

g. Fortalecimento das decisões dos juízes de primeiro grau, impedindo a reiteração de recursos; treinamento dos juízes para o gerenciamento dos processos, ao invés do cumprimento formal dos ritos processuais e adequar a informalidade aos mecanismos de execução.

h. Soluções criativas que tornem a atividade judiciária adequada aos princípios da responsabilidade fiscal, a partir da modernização das eleições para os órgãos de cúpula do Judiciário, a partir da verificação de recursos desertos ou em situação de conflito de competência, casos de indeferimento de inicial, aplicação automática da lei processual do idoso etc, para só então poder afirmar-se o número exato do represamento. Mas, com quais funcionários e juízes?

i. Instalação de programas de mediação, em primeiro grau, treinando advogados experientes e juízes aposentados como conciliadores, remunerados, além de funcionários, através de cursos oficiais e criação, pelos Poderes Judiciário e Executivo, em parceria, de Centros de Integração da Cidadania, sob fiscalização daquele.

j. Os Juizados Especiais foram criados para atender à população carente e desassistida, não para se transformar em balcão de cobrança, ante a admissão da microempresa, ou juízo de execução dos próprios julgados. Deve-se retomar o estudo sobre a participação dos Advogados no Sistema, além do que não se deve ampliar a competência ou torná-la obrigatória, antes de estudos e pesquisas confiáveis sobre a movimentação processual e adequação estrutural e humana.

k. Submeter a reestudo a criação e instalação de Varas, Foros e Tribunais e juízos itinerantes, além de propostas de mudanças legislativas, ao crivo de pesquisas e dados estatísticos confiáveis, verificando-se, através, especialmente, do movimento forense, a necessidade de Tribunais regionais, cujo orçamento para instalação deve ser endereçado ao aparelhamento material e humano, com remuneração condigna dos Juizados Especiais.

l. Sob o aspecto educacional, elaborar para o povo manuais, além da divulgação radiofônica e televisiva, criar sistemas integrados em tempo real, num portal eletrônico de acesso universal etc.”

Caetano Lagrasta Neto é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Secretário-Executivo do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

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