INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

INFORMATIVO Nº 642
TÍTULO
(Transcrições)
PROCESSO

RMS - 28517

ARTIGO
(Transcrições) RMS 28.517/DF* RELATOR: Min. Celso de Mello EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (INCISOS II E III DO ART. 88 DA LEI Nº 8.666/1993). ATO DO MINISTRO DE ESTADO DO CONTROLE E DA TRANSPARÊNCIA. PROCEDIMENTO DE CARÁTER ADMINISTRATIVO INSTAURADO PERANTE A CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. SITUAÇÃO DE CONFLITUOSIDADE EXISTENTE ENTRE OS INTERESSES DO ESTADO E OS DO PARTICULAR. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELO PODER PÚBLICO, DA FÓRMULA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”. PRERROGATIVAS QUE COMPÕEM A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO. O DIREITO À PROVA COMO UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRECEDENTES. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o “due process of law”, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. - Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process of law” (CF, art. 5º, LIV) - independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV). - Abrangência da cláusula constitucional do “due process of law”, que compreende, dentre as diversas prerrogativas de ordem jurídica que a compõem, o direito à prova. - O fato de o Poder Público considerar suficientes os elementos de informação produzidos no procedimento administrativo não legitima nem autoriza a adoção, pelo órgão estatal competente, de medidas que, tomadas em detrimento daquele que sofre a persecução administrativa, culminem por frustrar a possibilidade de o próprio interessado produzir as provas que repute indispensáveis à demonstração de suas alegações e que entenda essenciais à condução de sua defesa. - Mostra-se claramente lesiva à cláusula constitucional do “due process” a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, deve ter o seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerados imprescindíveis e que sejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar a pretensão punitiva da Pública Administração. Doutrina. Jurisprudência. DECISÃO: Trata-se de recurso ordinário interposto contra acórdão, que, confirmado, em sede de embargos de declaração (fls. 1.330/1.338), pelo E. Superior Tribunal de Justiça, possui a seguinte ementa (fls. 1.311): “ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. FRAUDE CONFIGURADA. APLICAÇÃO DA PENA DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL. ATO DA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO MINISTRO DE ESTADO DO CONTROLE E DA TRANSPARÊNCIA. ALEGAÇÕES DE NULIDADES NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE CULMINOU NA APLICAÇÃO DA PENALIDADE AFASTADA. PROCEDIMENTO REGULAR. 1. Hipótese em que se pretende a concessão da segurança para que se reconheça a ocorrência de nulidades no processo administrativo disciplinar que culminou na aplicação da pena de inidoneidade para contratar com a Administração Pública Federal. 2. O Ministro de Estado do Controle e da Transparência é autoridade responsável para determinar a instauração do feito disciplinar em epígrafe, em razão do disposto no art. 84, inciso VI, alínea ‘a’, da Constituição da República combinado com os artigos 18, § 4º, da Lei n. 10.683/2003 e 2º, inciso I, e 4º, § 3º, do Decreto n. 5.480/2005. 3. A regularidade do processo administrativo disciplinar deve ser apreciada pelo Poder Judiciário sob o enfoque dos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório, sendo-lhe vedado incursionar no chamado mérito administrativo. 4. Nesse contexto, denota-se que o procedimento administrativo disciplinar não padece de nenhuma vicissitude, pois, embora não exatamente da forma como desejava, foi assegurado à impetrante o direito ao exercício da ampla defesa e do contraditório, bem como observado o devido processo legal, sendo que a aplicação da pena foi tomada com fundamento em uma série de provas trazidas aos autos, inclusive nas defesas apresentadas pelas partes, as quais, no entender da autoridade administrativa, demonstraram suficientemente que a empresa impetrante utilizou-se de artifícios ilícitos no curso do Pregão Eletrônico n. 18, de 2006, do Ministério dos Transportes, tendo mantido tratativas com a empresa ** com o objetivo de fraudar a licitude do certame. 5. Pelo confronto das provas trazidas aos autos, não se constata a inobservância dos aspectos relacionados à regularidade formal do processo disciplinar, que atendeu aos ditames legais. 6. Segurança denegada.” (MS 14.134/DF, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES - grifei) Sustentam-se, em síntese, na presente sede recursal, as seguintes razões (fls. 1.342/1.346): “Em 26 de janeiro de 2009, fora a Parte Recorrente penalizada com a DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE, nos termos da publicação do ato no Diário Oficial da União desta data (doc. 13), como ato decisório final do Processo Administrativo nº 00190.036879/2007-12 da Corregedoria-Geral da União (doc. 14). Tal ato, que atingiu o direito subjetivo da Recorrente a impedindo de contratar com a Administração Pública, de autoria do EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JORGE HAGE SOBRINHO, MINISTRO DE ESTADO DO CONTROLE E DA TRANSPARÊNCIA, constitui-se na pena máxima prevista na Lei 8.666/93. O referido processo administrativo fora motivado por Denúncia da Procuradoria da República no Distrito Federal (doc. 05), embasada totalmente, no que se refere à Recorrente, em interceptação telefônica realizada pela Divisão de Operações de Inteligência da Polícia Federal Especializada (doc. 05 - fls. 104 e seguintes), com envolvimento de um ex-empregado desta, **. ....................................................... Assim, muito embora não mereça qualquer reprimenda a intenção sempre salutar de moralização da atividade pública, não se pode admitir a validade de um processo manifestamente inquisitivo, em desacordo com os ditames processuais basilares da Carta Magna e do Estado Democrático de Direito, onde a ampla defesa da Impetrante fora cerceada, fato, inclusive, admitido pelo Ministério Público Federal, ao manifestar-se no ‘writ’ (fls. 1292-1293). Nesse contexto, arguiu a Recorrente a existência de direito líquido e certo, ao fundamento de que a CGU cometeu constantes abusividades processuais e materiais no feito administrativo, especialmente as resumidas nos seguintes vícios: Primeiramente, o expresso cerceamento de defesa, mediante o indeferimento da produção de prova testemunhal do Sr. **, não obstante seja tal depoimento imprescindível para a elucidação do caso, por ser ele o único membro da empresa envolvido nos fatos investigados, tudo isso em desacordo com o parecer emanado da própria Advocacia Geral da União, que proferiu orientação em sentido oposto (docs. 10-11), maculando, assim, também, o devido processo legal. Ainda, a desconsideração de provas documentais incontestes que atestam a inocência da diretoria da empresa impetrante, além do seu desconhecimento e da sua não participação nos atos do seu ex-empregado, em especial do relatório final da Polícia Federal, que excluiu a empresa de qualquer ilícito contra a Administração (doc. 06). Ademais, a incidência de penalidade em pessoa diversa da que cometera o fato típico delituoso e da desconsideração de decisão judicial (doc. 09), que reconhecera a não incidência do tipo penal contido no art. 90 da Lei 8.666/93, sendo o referido ato punível, portanto, na esfera de individualidade do criminoso, uma vez que nenhum prejuízo gerou para a, licitação em que ocorrera. Finalmente, desconsiderara o juízo recorrido, que os poderes da procuração (fls. 599), outorgada pela ** ao ex-empregado, **, não abrangiam a propositura de recurso judicial, agindo o mesmo em excesso de mandato e para proveito próprio. Logo, apresentando-se o ‘decisum’ recorrido manifestamente em desacordo com as provas dos autos, incoerente com as suas próprias premissas de fundamentação e, em confronto com o próprio Estado Democrático de Direito e com a Constituição, uma vez que admitiu expressamente a condução inquisitiva de um processo administrativo, impõe-se a sua reforma por este Pretório Excelso, razão qual apresenta a Impetrante o presente Recurso Ordinário Constitucional, eis que próprio e tempestivo.” (grifei) A União Federal, em contra-razões, impugnou a pretensão recursal ora deduzida pela parte recorrente (fls. 1.409/1.418). Sendo esse o contexto, passo a examinar o pleito em causa. O exame da pretensão ora deduzida nesta sede recursal suscita reflexão em torno de matéria impregnada de indiscutível relevo jurídico. É que a Controladoria-Geral da União (CGU), como qualquer outro órgão estatal, está inteiramente subordinada à autoridade da Constituição e das leis da República. Isso significa, portanto, que a CGU não pode, nos procedimentos administrativos perante ela instaurados, transgredir postulados básicos como a garantia do “due process of law”, que representa indisponível prerrogativa de índole constitucional assegurada à generalidade das pessoas. Tenho para mim, na linha de decisões que proferi nesta Suprema Corte, que se impõe reconhecer, mesmo em se tratando de procedimento administrativo, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se estabelece uma relação de polaridade conflitante entre o Estado, de um lado, e o indivíduo, de outro. Cumpre ter presente, bem por isso, na linha dessa orientação, que o Estado, por seus agentes ou órgãos (como a CGU, p. ex.), não pode, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer pessoa, exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois - cabe enfatizar - o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público, de que resultem conseqüências gravosas no plano dos direitos e garantias individuais, exige a fiel observância do princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LV), consoante adverte autorizado magistério doutrinário (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/68-69, 1990, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/176 e 180, 1989, Saraiva; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, “O Direito à Defesa na Constituição de 1988”, p. 71/73, item n. 17, 1991, Renovar; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “O Direito à Defesa na Constituição”, p. 47/49, 1994, Saraiva; CELSO  RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/268-269, 1989, Saraiva; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 401/402, 5ª ed., 1995, Atlas; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 290 e 293/294, 2ª ed., 1995, Malheiros; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 588, 17ª ed., 1992, Malheiros, v.g.). A jurisprudência dos Tribunais, notadamente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo (RDA 97/110 - RDA 114/142 - RDA 118/99 - RTJ 163/790, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 306.626/MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 253/2002 - RE 140.195/SC, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RE 191.480/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RE 199.800/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.): “RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’. - O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal - que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos - exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.” (RTJ 183/371-372, Rel. Min. Celso de Mello) Isso significa, pois, que assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process of law” (independentemente, portanto, de haver, ou não, previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado), a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inclusive o direito à prova), consoante prescreve a Constituição da República, em seu art. 5º, incisos LIV e LV. Vale referir, neste ponto, importante decisão emanada do Plenário do Supremo Tribunal Federal que bem exprime essa concepção em torno da garantia constitucional do “due process of law”: “(...) 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. (...) 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).” (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES - grifei) Vê-se, portanto, que o respeito efetivo à garantia constitucional do “due process of law”, ainda que se trate de procedimento administrativo (como o instaurado, no caso ora em exame, perante a Controladoria-Geral da União), condiciona, de modo estrito, o exercício dos poderes de que se acha investida a Pública Administração, sob pena de descaracterizar-se, com grave ofensa aos postulados que informam a própria concepção do Estado democrático de Direito, a legitimidade jurídica dos atos e resoluções emanados do Estado, especialmente quando tais deliberações, como sucede na espécie, importarem em aplicação de sanções aos administrados. Esse entendimento – que valoriza a perspectiva constitucional que deve orientar o exame do tema em causa – tem o beneplácito do autorizado magistério doutrinário expendido pela eminente Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER (“O Processo em Evolução”, p. 82/85, itens ns. 1.3, 1.4, 2.1 e 2.2, 1996, Forense Universitária), como pude assinalar em decisão por mim proferida, como Relator, no MS 26.200-MC/DF: “O coroamento do caminho evolutivo da interpretação da cláusula do ‘devido processo legal’ ocorreu, no Brasil, com a Constituição de 1988, pelo art. 5º, inc. LV, que reza: ‘Art. 5°, LV. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.’ Assim, as garantias do contraditório e da ampla defesa desdobram-se hoje em três planos: a) no plano jurisdicional, em que elas passam a ser expressamente reconhecidas, diretamente como tais, para o processo penal e para o não-penal; b) no plano das acusações em geral, em que a garantia explicitamente abrange as pessoas objeto de acusação; c) no processo administrativo sempre que haja litigantes. (...) É esta a grande inovação da Constituição de 1988. Com efeito, as garantias do contraditório e da ampla defesa, para o processo não-penal e para os acusados em geral, em processos administrativos, já eram extraídas, pela doutrina e pela jurisprudência, dos textos constitucionais anteriores, tendo a explicitação da Lei Maior em vigor natureza didática, afeiçoada à boa técnica, sem apresentar conteúdo inovador. Mas agora a Constituição também resguarda as referidas garantias aos litigantes, em processo administrativo. E isso não é casual nem aleatório, mas obedece à profunda transformação que a Constituição operou no tocante à função da administração pública. Acolhendo as tendências contemporâneas do direito administrativo, tanto em sua finalidade de limitação ao poder e garantia dos direitos individuais perante o poder, como na assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade e de abertura para o cenário sociopolítico-econômico em que se situa, a Constituição pátria de 1988 trata de parte considerável da atividade administrativa, no pressuposto de que o caráter democrático do Estado deve influir na configuração da administração, pois os princípios da democracia não podem se limitar a reger as funções legislativa e jurisdicional, mas devem também informar a função administrativa. Nessa linha, -se grande ênfase, no direito administrativo contemporâneo, à nova concepção da processualidade no âmbito da função administrativa, seja para transpor para a atuação administrativa os princípios do ‘devido processo legal’, seja para fixar imposições mínimas quanto ao modo de atuar da administração. Na concepção mais recente sobre a processualidade administrativa, firma-se o princípio de que a extensão das formas processuais ao exercício da função administrativa está de acordo com a mais alta concepção da administração: o agir a serviço da comunidade. O procedimento administrativo configura, assim, meio de atendimento a requisitos da validade do ato administrativo. Propicia o conhecimento do que ocorre antes que o ato faça repercutir seus efeitos sobre os indivíduos, e permite verificar como se realiza a tomada de decisões. Assim, o caráter processual da formação do ato administrativo contrapõe-se a operações internas e secretas, à concepção dos arcana imperii dominantes nos governos absolutos e lembrados por Bobbio ao discorrer sobre a publicidade e o poder invisível, considerando essencial à democracia um grau elevado de visibilidade do poder. ....................................................... Assim, a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos processos administrativos (punitivos) em que haja acusados, mas estende as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes. Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesses. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda, e não a lide. Pode haver litigantes – e os há – sem acusação alguma, em qualquer lide.” (grifei) Não foi por outra razão que a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal - ao examinar a questão da aplicabilidade e da extensão, aos processos de natureza administrativa, da garantia do “due process of law” - proferiu decisão, que, consubstanciada em acórdão assim ementado, reflete a orientação que ora exponho nesta decisão: “Ato administrativo – Repercussões – Presunção de legitimidade – Situação constituída – Interesses contrapostos – anulação – Contraditório. Tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. (...).” (RTJ 156/1042, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei) O exame da garantia constitucional do “due process of law” permite nela identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); e (l) direito à prova. Vê-se, daí, que o direito à prova – tal como tenho assinalado nesta Suprema Corte (MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) - qualifica-se como prerrogativa jurídica intimamente vinculada ao direito do interessado à observância, pelo Poder Público, da fórmula inerente ao “due process of law”, consoante adverte expressivo magistério doutrinário (ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “As Nulidades do Processo Penal”, p. 135/144, itens ns. 1/6, 9ª ed., 2006, RT; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal”, 1997, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 196/209, itens ns. 7.4 e 7.5, 2ª ed., 2004, RT; ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, p. 128/129, item n. 2, 2002, Atlas; ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO, “Processo Administrativo Disciplinar”, p. 312/318, item n. 7.2.2.3, 2ª ed., 2003, Max Limonad; CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, “Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos”, p. 484, item n. 2.2.3.1, 1999, Saraiva; JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES, “Tomada de Contas Especial”, p. 69/72, item n. 4.1.8, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 688, item n. 3.3.3.5, 32ª ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, 2006, Malheiros, v.g.), valendo referir, a respeito dos postulados que regem o processo administrativo em geral, a precisa lição de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (“Manual de Direito Administrativo”, p. 889, item n. 7.5, 12ª ed., 2005, Lumen Juris): “(...) O princípio do contraditório está expresso no art. 5º, LV, da CF, que tem o seguinte teor: ....................................................... O mandamento constitucional abrange processos judiciais e administrativos. É necessário, todavia, que haja litígio, ou seja, interesses conflituosos suscetíveis de apreciação e decisão. Portanto, a incidência da norma recai efetivamente sobre os processos administrativos litigiosos. Costuma-se fazer referência ao princípio do contraditório e da ampla defesa, como está mencionado na Constituição. Contudo, o contraditório é natural corolário da ampla defesa. Esta, sim, é que constitui o princípio fundamental e inarredável. Na verdade, dentro da ampla defesa já se inclui, em seu sentido, o direito ao contraditório, que é o direito de contestação, de redargüição a acusações, de impugnação de atos e atividades. Mas outros aspectos cabem na ampla defesa e também são inderrogáveis, como é caso da produção de prova, do acompanhamento dos atos processuais, da vista do processo, da interposição de recursos e, afinal, de toda a intervenção que a parte entender necessária para provar suas alegações. (...).” (grifei) Com efeito, o Plenário desta Suprema Corte, ao julgar o MS 23.550/DF, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, proferiu decisão na qual deixou claramente acentuado, a propósito do tema em análise, que a Administração Pública tem o dever de assegurar, ao interessado, o exercício pleno do direito de defesa, havendo salientado, então, em referido julgamento, que se acha incluído, nessa prerrogativa essencial, o direito de produzir ou de requerer a produção de provas: “Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas; de outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos procedimentos administrativos comuns, ‘a fortiori’, é irrecusável que a ela há de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal de Contas, de colorido quase - jurisdicional.” (grifei) É por tal razão que a própria Lei nº 9.784/99, que rege o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê, em seu art. 38, a possibilidade de o interessado, “na fase instrutória e antes da tomada de decisão (...), requerer diligências e perícias” (art. 38, “caput”), sendo que “Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias” (art. 38, § 2º). O fato de o Poder Público considerar suficientes os elementos de informação produzidos no procedimento administrativo não legitima nem autoriza a adoção, pelo órgão estatal competente, de medidas que, tomadas em detrimento daquele que sofre a persecução administrativa, culminem por frustrar a possibilidade de o próprio interessado produzir as provas que repute indispensáveis à demonstração de suas alegações e que entenda essenciais à condução de sua defesa. Analisada a questão sob tal perspectiva, mostra-se claramente lesiva à cláusula constitucional do “due process” a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, deve ter o seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerados imprescindíveis e que sejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar a pretensão punitiva da Pública Administração. Torna-se relevante observar, neste ponto, que nem mesmo o Judiciário, especialmente em procedimentos de que possa resultar a imposição de sanções penais, dispõe de poder para inviabilizar a produção de elementos probatórios pretendida pelos sujeitos da relação processual, com particular destaque para o réu, a quem sempre deve ser assegurado o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Essa orientação, por sua vez, reflete-se na jurisprudência dos Tribunais em geral, valendo referir, ante a sua relevância, julgados que reconhecem qualificar-se, como causa geradora de nulidade processual absoluta, por ofensa ao postulado constitucional do “due process of law”, a decisão judicial que, mediante “exclusão indevida de testemunhas”, compromete e impõe gravame ao direito de defesa do réu, sob a alegação de que as testemunhas, embora tempestivamente arroladas, com estrita observância do limite máximo permitido em lei, nada saberiam sobre os fatos objeto da persecução estatal ou, então, que a tomada de depoimento testemunhal constituiria  manobra meramente protelatória do acusado ou, ainda, que se mostraria desnecessária a inquirição de determinada testemunha pretendida pelo sujeito passivo da relação processual (RJDTACRIM/SP 11/68-69 - RJTJESP/LEX 117/485 - RT 542/374 – RT 676/300 - RT 723/620 – RT 787/613-614, v.g.). Em suma: por representar uma das projeções concretizadoras do direito à prova, configurando, por isso mesmo, expressão de uma inderrogável prerrogativa jurídica, não pode ser negado, ao interessado - que também não está obrigado a justificar ou a declinar, previamente, as razões da necessidade do depoimento testemunhal -, o direito de ver inquiridas as testemunhas que arrolou em tempo oportuno e dentro do limite numérico legalmente admissível, sob pena de inqualificável desrespeito ao postulado constitucional do “due process of law” (HC 96.905/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.): “Prova – Testemunha – Oitiva indeferida por não ter o juiz se convencido das razões do arrolamento – Inadmissibilidade - Direito assegurado independentemente de justificação. - Não pode o juiz indeferir a oitiva de testemunha, sob pena de transgredir o direito límpido que assiste às partes de arrolar qualquer pessoa que não se insira nas proibidas, independentemente de justificação.” (RT 639/289, Rel. Des. ARY BELFORT – grifei) “Cerceamento de Defesa – Inquirição de testemunhas por rogatória indeferida a pretexto de ter intuito procrastinatório – Inadmissibilidade – Preliminar acolhida – Processo anulado – Inteligência do art. 222, e seus §§, do CPP. - Não é permitido ao juiz, sem ofensa ao preceito constitucional que assegura aos réus ampla defesa, inadmitir inquirição de testemunhas por rogatória, a pretexto de que objetiva o acusado procrastinar o andamento do processo.” (RT 555/342-343, Rel. Des. CUNHA CAMARGO – grifei) Impende assinalar, finalmente, considerado o conteúdo da presente decisão, que assiste, ao Ministro-Relator, no exercício dos poderes processuais de que dispõe, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos a esta Corte, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que venha a praticar com fundamento no que prescreve o art. 557, “caput” e § 1º-A, do CPC, na redação que lhe deu a Lei nº 9.756/98, seja para negar seguimento a recurso manifestamente incabível, seja, ainda, para dar provimento a recurso cujos fundamentos - como sucede no caso – estejam em harmonia com a jurisprudência predominante nesta Corte (RTJ 187/576, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RMS 24.298-AgR/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RMS 25.574/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.): “(...) JULGAMENTO MONOCRÁTICO DO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. O Relator, na direção dos processos em curso perante a Suprema Corte, dispõe de competência, para, em decisão monocrática, julgar recurso ordinário em mandado de segurança, desde que - sem prejuízo das demais hipóteses previstas no ordenamento positivo (CPC, art. 557) - a pretensão deduzida em sede recursal esteja em confronto com Súmula ou em desacordo com a jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal.” (RTJ 185/581-582, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Nem se alegue que referido preceito legal implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Sendo assim, e em face das razões expostas, dou provimento ao presente recurso ordinário, para invalidar, unicamente  em relação à ora recorrente, o ato punitivo emanado do Senhor Ministro de Estado do Controle e da Transparência (declaração  de inidoneidade), proferido nos autos do Processo Administrativo nº 00190.036879/2007-12, sem prejuízo da renovação do procedimento administrativo, desde que assegurado, à autora deste “writ” mandamental, o direito à prova cuja produção havia sido por ela então requerida, contanto que ainda não consumada a prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública Federal. Publique-se. Brasília, 1º de agosto de 2011. Ministro CELSO DE MELLO Relator * decisão publicada no DJE de 4.8.2011 ** nomes suprimidos pelo Informativo INOVAÇÕES LEGISLATIVAS 26 a 30 de setembro de 2011 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) Impessoalidade - Bem Público - Nome – Atribuição Resolução n. 140/CNJ, de 26 de setembro de 2011 – Proíbe a atribuição de nomes de pessoas vivas aos bens públicos sob a administração do Poder Judiciário. Publicada no DJe/CNJ, n. 181, p. 2 em 28.9.2011. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) União Estável - Reconhecimento - Regulamentação Instrução Normativa n. 126/STF, de 17.8.2011 – Dispõe sobre os procedimentos para reconhecimento da união estável no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Publicada no Boletim de Serviço, Ed. Extraord., n. 11, p. 2-4, 14.9.2011. Secretaria de Documentação – SDO Coordenadoria de Jurisprudência Comparada e Divulgação de Julgados – CJCD CJCD@stf.jus.br 14 18

Íntegra do Informativo 642

Comentários

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