Calamidade pública.Estado de defesa.Estado de sítio. Pandemia.

Formas de manutenção da ordem pública em tempos de pandemia.




I. Introdução
A pandemia da Covid-19 tem desafiado, de forma inédita nos tempos recentes, autoridades públicas de diversos países a conter o seu avanço e, consequentemente, evitar a numerosa perda de vidas, o esgotamento do sistema de saúde pública e a degradação da atividade econômica. Em comparação que bem resume a dimensão do que estamos vivendo, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, afirmou que a luta contra o vírus é o maior desafio enfrentado pelo país desde a Segunda Guerra Mundial.[1]
Fronteiras fechadas, determinações de isolamento, suspensão das mais diversas atividades, exames médicos compulsórios, dentre outras medidas de rara verificação. A lógica é a do confinamento, exceto para o sistema carcerário, que por decisões humanitárias há de ser desinchado, quando possível, em nome da contenção do novo coronavírus.[2]
Diante da pandemia, mostra-se salutar uma análise rápida sobre o sistema brasileiro de contenção de crises e as formas anômalas, mas legais, pelas quais o Estado brasileiro pode agir na mantença da ordem pública e da tranquilidade social.
Para tanto, falaremos sobre (i) o reconhecimento do estado de calamidade pública[3] e as hipóteses de (ii) estado de defesa e (iii) estado de sítio.
II. Calamidade pública
O estado de calamidade pública é definido pelo Decreto 7.257/2010 e consiste em “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”.[4]
Na prática, o estado de calamidade pública é uma medida legal cuja consequência prática mais relevante é permitir o descumprimento da meta fiscal e, com isso, permitir que se gaste mais recursos no combate à situação anômala em que o país se encontra. No presente momento, o objetivo é ter a possibilidade de gastar mais dinheiro no combate ao novo coronavírus e dar suporte à economia.
O reconhecimento do estado de calamidade pública se dá por meio de projeto de decreto legislativo (PDL) e exige, no caso da União, aval do Congresso Nacional. Quando solicitado por estados ou municípios, é necessário o referendo de suas respectivas assembleias legislativas.
A tramitação do projeto, enviado pelo presidente da República e aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 18 de março de 2020, ocorreu de forma facilitada, diante da urgência do caso. Quando recebida a proposta pelo parlamento, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), designou relator, que apresentou parecer pela Comissão de Constituição e Justiça diretamente em Plenário. No Senado Federal, a tramitação ocorreu da mesma maneira e a votação se deu por votação remota, em meio virtual. No dia 20 de março de 2020, o Senado Federal avaliou e aprovou o decreto enviado pelo governo, permitindo que o Poder Executivo ultrapasse os limites estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nesse primeiro momento, a medida de reconhecimento do estado de calamidade pública parece ser menos drástica. Diversamente do que ocorre nos casos de estado de defesa ou de sítio, não há previsão constitucional para a decretação da calamidade pública, que encontra respaldo legal no Decreto 7.257/2010.
O objetivo principal, como referido, é fazer incidir a regra prevista no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) [5], marco legal das contas públicas para União, estados e municípios, que permite a suspensão de metas fiscais na ocorrência de calamidade pública.
A hipótese, já confirmada pelo parlamento, acarretará na suspensão dos prazos estabelecidos para o cumprimento de metas fiscais, dispensando a União de cumprir a meta fiscal prevista para 2020, que admite o déficit máximo de R$ 124,1 bilhões. Caso contrário, isto é, se não for reconhecida a situação de calamidade pública, calcula-se que o contingenciamento necessário, por parte do governo, deveria girar, por conta da meta atualmente estabelecida, em torno de R$ 30 bilhões.
III. Estado de defesa
Os mecanismos constitucionais, por um lado, preveem medidas de maior potência. Por outro lado, importam em uma restrição significativa de direitos fundamentais. Daí porque só podem ser aplicados em hipóteses mais restritas e com a observância de um procedimento mais detalhado.
O estado de defesa é o primeiro e menos agressivo mecanismo elencado pela Constituição da República (artigo 136 da Constituição)[6] como pertencente ao sistema constitucional de crises.[7] Trata-se de um conjunto de medidas que objetivam debelar ameaças à ordem pública ou à paz social.[8] Diante de tal situação, ao Estado é permitido atuar com maior poder repressivo para o restabelecimento da normalidade institucional.
O Estado fica autorizado a adotar medidas coercitivas nos limites da lei, que, em situação de normalidade, violariam os direitos do cidadão. Essas medidas estão expressamente previstas no artigo 136, parágrafo 1º, incisos I e II, da Constituição Federal. São elas: restrições aos direitos (i) de reunião, ainda que exercido em associações, (ii) de sigilo de correspondência e (iii) de sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, além da possibilidade de ocupação e uso temporário pelo Estado de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.
O estado de defesa é hipótese mais branda se comparada ao estado de sítio e, por essa razão, o Presidente da República, competente para decretar o estado de defesa, não precisa contar com prévia autorização do parlamento.
Como visto, o pressuposto para a decretação do estado de defesa é a necessidade de preservação ou restabelecimento, em determinados locais, da ordem pública ou da paz social. Para tanto, deve haver ameaça grave e iminente de instabilidade institucional ou calamidade de grande proporção.
Veja-se, portanto, que riscos à saúde pública, por si só, não se incluem dentre as hipóteses de estado de defesa. A rigor, se medidas sanitárias funcionarem a contento, sem que haja ameaça à ordem pública, não é cabível o estado de defesa. O estado de defesa só pode ser decretado no caso de uma ameaça à ordem pública, devido à instabilidade institucional ou grandes calamidades.
Com efeito, o termo “ordem pública”[9] consiste em conceito jurídico indeterminado[10], tendo em vista tratar-se de termo semanticamente vago. Assim, confere ao intérprete a possibilidade de valorá-lo a partir de parâmetros temporalmente atualizados, não quedando-se engessado pelo passar do tempo. Essa discricionariedade é legitimada em face do controle político e judicial exercido sobre a medida.
Para melhor entendimento, vale anotar a lição do professor Uadi Lammêgo Bulos ao asseverar que a “ordem pública” é ofendida por ações comprometedoras da paz e da legalidade, em que os cidadãos desobedecem, sem constrangimento, o poder exercido pelas autoridades.[11]
Sobre a conceituação de “ordem pública”, confira também as palavras do ministro Ayres Brito no julgamento do HC 101.300, em 2010:
(...) Segundo ressaltei em julgamentos anteriores, tenho buscado, a partir da Constituição Federal, um conceito seguro de ordem pública. Minha âncora, de longa data, tem sido o artigo 144 da Constituição, e nem assim consigo sentir-me absolutamente tranquilo quanto a uma tentativa de formulação conceitual da matéria. [...] Avanço no raciocínio para dizer que a expressão ‘ordem publica’, justamente, é a que me parece de mais difícil formulação conceitual. Como a Constituição fala de ‘preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio’, fico a pensar que ordem pública é algo diferente da incolumidade do patrimônio, como é algo diferente da incolumidade das pessoas. É um tertium genus. Mas o máximo que consegui até agora foi este conceito negativo: ‘ordem pública’ é bem jurídico distinto da incolumidade das pessoas e do patrimônio (trecho do voto no HC 101.300, relator ministro Ayres Britto, 2ª Turma, DJe 18/11/2010).
O decreto presidencial de estado de defesa deve conter a duração da medida (no máximo 30 dias), as áreas afetadas, as medidas a serem adotadas para restringir, por exemplo, o direito de reunião. Por óbvio, a restrição dos direitos deve estar finalisticamente atrelada aos resultados que se pretende buscar com a medida. O estado de defesa não é um cheque em branco para a restrição dos direitos fundamentais.
Acaso ao final da medida a ordem pública não tenha sido restabelecida, é possível sua prorrogação, uma única vez, por igual período. Se ao final da prorrogação o cenário de instabilidade ainda persistir, o estado de sítio é a saída a ser adotada.
Ainda que não haja o controle prévio do poder legislativo sobre a decretação do estado de defesa, é possível o controle posterior. O parágrafo 4º do artigo 136 da Constituição Federal[12] prevê que o presidente da República, após decretar ou prorrogar o estado de defesa, dentro de 24 horas, deve submeter o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta pela sua manutenção ou rejeição.
Com efeito, igualmente é possível o controle judicial sobre a formalidade do ato, notadamente em se verificando violações ao parágrafo 3º do artigo 136 da Constituição da República.[13]
IV. Estado de sítio
O estado de sítio é o segundo mecanismo elencado pela Constituição da República (artigo 137, incisos I e II, da Constituição)[14] como pertencente ao sistema constitucional de crises. Trata-se de suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais.[15]
A hipótese é mais drástica se comparada ao estado de defesa e, por essa razão, o presidente da República deve, obrigatoriamente, solicitar autorização da maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para decretá-lo.[16]
Os pressupostos materiais para a decretação do estado de sítio são (i) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa ou (ii) declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
O artigo 139 da Constituição Federal prevê as sete medidas taxativas que podem ser adotadas contra a população durante o estado de sítio. São elas: (i) a obrigação de permanência em localidade determinada; (ii) a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; (iii) restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; (iv) a suspensão da liberdade de reunião; (v) a busca e apreensão em domicílio; (vi) a intervenção nas empresas de serviços públicos; e (vii) a requisição de bens. [17]
Ainda, subsiste o controle político e judicial. Com efeito, o Congresso Nacional exerce o controle político prévio ao aprovar ou não a medida, além de poder fiscalizar a respectiva execução. Por sua vez, o controle judicial é amplo, e pode ser exercido, por exemplo, nas vias do habeas corpus e do mandado de segurança.[18]
Note-se que há um crescendo entre o estado de sítio e o estado de defesa. Aquele só é cabível quando esse não for suficiente. Por conseguinte, deve-se entender por comoção algo muito mais impactante à ordem pública.
Considerações finais
O enfrentamento à Covid-19 no Brasil é relativamente recente e as medidas mais drásticas foram tomadas nas últimas duas semanas.
Ressalte-se que, em 6 de fevereiro de 2020, foi publicada a Lei 13.979, que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas pelo governo federal para enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do novo coronavírus, causador da doença Covid-19.
Essa lei prevê diversas medidas que podem ser adotadas pelo governo. São elas: (i) isolamento e quarenta; (ii) realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e tratamentos médicos específicos; (iii) restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país; (iv) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas – com pagamento posterior de indenização justa; (v) exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; e (vi) autorização excepcional e temporária para importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa.
Essa norma prevê hipóteses específicas de medidas bastante restritivas das liberdades do cidadão. Nessa perspectiva, a simples necessidade de restrição de liberdade nas hipóteses ali descritas não seria motivo suficiente para a decretação de medidas constitucionais. Estas só seriam cabíveis na hipótese de as graves medidas sanitárias importarem em uma inversão grave da ordem pública, nas hipóteses acima especificadas.
Principalmente, o estado de defesa e o estado de sítio são medidas que, historicamente, são utilizadas como um primeiro passo para a desestabilização da democracia. Não se cuidam, portanto, de medidas vãs. Não por outra razão, nunca foram decretadas na história constitucional recente brasileira. Nessa condição, afigura-se de fundamental importância que haja um rigoroso controle político e jurisdicional do seu cabimento.


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