“Lei 12.971/14 e suas alterações
na parte penal do Código de Trânsito Brasileiro: o ápice da insanidade na
legislação pátria
Publicado por Eduardo Luiz Santos
Cabette
Autor: Eduardo Luiz Santos
Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com
especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal,
Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na
graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética
e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
1-INTRODUÇÃO
Logo no dia 9 de maio de 2014,
quando foi publicada a Lei 12.971/14, tomei conhecimento de seu teor.
Estarrecido com o surrealismo do tratamento da questão penal, com as alterações
promovidas nos artigos 302, 303, 306 e 308, CTB custei a crer no que lia.
Depois de conferir que não se
tratava de um pesadelo ou de uma alucinação passei para a fase de perplexidade
e lamento pela profunda inépcia legislativa.
Meu único alento foi perceber
que, embora publicada em 9 de maio de 2014, seu artigo 2º. Estabelecia uma
“vacatio legis” para que entrasse em vigor, qual seja, o 1º. Dia útil do 6º.
Mês após a sua publicação. Assim sendo, uma esperança brotou quanto à
possibilidade remota de que o legislativo tivesse o bom senso de impedir que
esse monstrengo jurídico chegasse a entrar em vigor nesse período, inclusive
porque já se apresentavam as devidas críticas doutrinárias. [1]
Nessa vã esperança e torcida
ardente me abstive de tecer qualquer comentário ao diploma e sequer atualizei
minhas anotações de aulas ou outros escritos que envolviam o tema. Ainda
acreditava ingenuamente no bom senso!
O tempo passou, mas a iluminação
do legislador não chegou, muito embora essa dita iluminação não precisasse ser
um gigantesco farol, mas uma lanterninha daquelas de R$ 1,99 já que a
absurdidade do que vem exposto na Lei 12.971/14 infringe as mais comezinhas
regras da lógica. Eis que, então, no dia 1º. De novembro de 2014 entra em vigor
o texto completo da famigerada Lei 12.971/14, o que, infelizmente, nos obriga a
tecer alguns comentários acerca de seu teor, objetivando indicar suas
monstruosidades e tentando, de alguma forma (ainda que seja apelando para
alguma magia) torná-la razoavelmente apreensível e aplicável. Desde logo se
adverte que sua aplicabilidade e compreensibilidade somente serão possíveis
mediante o recorte de certas partes e seu solene arremesso de volta ao lixo das
ideias, onde fuçaram para trazer ao público essas disposições legais que seriam
uma boa motivação para a abertura de um novo campo de estudo no Direito, qual
seja, a “Teratologia Jurídica”.
2-DISSECANDO O MONSTRO AUTOFÁGICO
Não há alteração no “caput” do
artigo 302, CTB, que trata do crime de Homicídio Culposo no trânsito, seja em
seu preceito primário (descrição da conduta), seja em seu preceito secundário
(pena prevista).
As mudanças começam no que era o
antigo Parágrafo Único, o qual se converte em dois parágrafos. O § 1º., são
mantidas as tradicionais causas especiais de aumento de pena aplicáveis para o
homicídio culposo sem qualquer modificação, inclusive no “quantum” da
exasperação que permanece entre 1/3 e 1/2.
Tudo já começa a degringolar com
o advento do novo § 2º., onde se pretende imprimir maior rigor ao crime de
homicídio culposo no trânsito quando este ocorre em circunstâncias em que o
condutor está ébrio ou disputando racha.
A iniciativa é correta do ponto
de vista da proporcionalidade. Efetivamente é adequada e necessária uma
reprimenda mais gravosa para aquele que comete homicídio culposo nas
circunstâncias acima mencionadas. Ademais, tal providência legislativa teria o
condão de, se não solucionar, ao menos abrandar os questionamentos acerca da
aplicação artificiosa do dolo eventual nesses casos. A verdade é que a pena
branda do homicídio culposo, quando de ocorrências que envolvem ébrios ou
indivíduos de suma irresponsabilidade em disputas de racha, gera um desconforto
social nítido e muitos apelam para a “solução” do dolo eventual que, na
verdade, não se adequa perfeitamente, ao menos à maioria desses casos que são
nitidamente de culpa consciente.
Já abordamos a questão em obra
específica: [2]
“Finalmente nunca é despiciendo
abordar um tema que tem sido ventilado na mídia sem apoio na realidade jurídica
a todo o momento em que ocorre algum acidente de trânsito com vítima fatal,
estando o motorista causador do evento ébrio. Tem sido comum ouvir dizer que a
partir da Lei 11.705/08, todo e qualquer caso de homicídio ou lesão provocados
por condutor embriagado será tratado como crime doloso, considerando a figura
do chamado “dolo eventual”. Essa “notícia” não corresponde à realidade do mundo
jurídico. A Lei 11.705/08 não contém qualquer dispositivo que trate desse tema
expressamente e nem de suas disposições pode-se inferir tal conclusão mesmo
indiretamente. O mesmo se pode dizer com certeza da Lei 12.760/12. Talvez
alguém tenha interpretado açodada e equivocadamente que o fato da lei
estabelecer uma taxa de alcoolemia como configuradora da embriaguez ao volante
como crime de trânsito, poderia conduzir à conseqüência da formulação de uma espécie
de presunção legal de assunção de risco toda vez que uma pessoa se propusesse a
dirigir em tal estado. Isso obviamente não encontra sustentação no Direito
Penal Moderno que há muito tempo afastou a possibilidade de adoção da chamada
“responsabilidade objetiva”. Na verdade a situação não se alterou em nada neste
aspecto com o advento das Leis 11.705/08 e 12.760/12. É claro que em certos
casos concretos de acidentes de trânsito, provocados ou não por embriaguez
etílica, poderá ocorrer a figura do “dolo eventual”. Até mesmo o dolo direto
pode acontecer em uma situação envolvendo condução de automotor, quando o
veículo é utilizado como “instrumenta sceleris” pelo autor que, por exemplo,
atropela deliberadamente um desafeto pretendendo matá-lo. Não obstante, na
maioria dos casos de homicídio ou lesão corporal em acidentes de trânsito em
que o condutor dirige embriagado o caso será de “culpa consciente”. Nem mesmo o
fato de que a Lei 11.705/08, em seu artigo 9º., revogou a causa de aumento de
pena na lesão culposa e no homicídio culposo do trânsito pela embriaguez, pode
levar, por si só, à conclusão pelo dolo eventual. Lembremo-nos que essa causa
de aumento de pena nem sempre existiu no CTB, na verdade foi incluída pela Lei
11.275/06 e nem por isso, antes da referida norma alteradora, se cogitava de
que invariavelmente haveria dolo eventual. Muito menos o fato de que a nova Lei
12.760/12 não tenha reativado essa causa de aumento de pena pela embriaguez no
homicídio e na lesão culposa poderá levar a semelhantes conclusões. Na
realidade, as dificuldades para avaliação dos casos concretos e discernimento
entre o dolo eventual e a culpa consciente devem ser casuisticamente
resolvidos, considerando todas as circunstâncias envolventes do episódio
pesquisado sob os ângulos objetivo e, principalmente, subjetivo. [3] Tenha-se
em mente, em conclusão, o fato de que em caso de dúvida quanto ao elemento
subjetivo que conforma a conduta do agente, encontra aplicação o “in dubio pro
reo”, de forma que por isso, na maioria dos casos, conforme acima consignado,
prevalecerá a tese da culpa consciente. Lapidar neste tópico o ensinamento de
Aníbal Bruno abaixo transcrito:
‘O dolo consiste em uma posição
interior do agente, em certas condições de consciência e vontade em relação ao
fato ilícito, que não podem ser apreciadas diretamente, mas só através das
circunstâncias exteriores em que se manifestam. A maneira pela qual o sujeito
atua, os meios que emprega, certas particularidades que acompanham o fato é que
nos poderão levar a concluir por uma ação dolosa em referência ao resultado
punível. As dificuldades desse juízo crescem e podem tornar-se insuperáveis em
relação ao dolo eventual, quando se tem de apurar se o autor assumiu o risco de
produzir o resultado ou esperou sinceramente que ele não ocorresse. Então, se
não se pode alcançar uma conclusão segura no sentido do dolo, o agente
beneficia-se da dúvida e o fato tem de ser julgado como de culpa consciente’.
[4]
Acontece que um sentimento de
impunidade ou de punição insuficiente toma conta da sociedade quando se depara
com casos de homicídio culposo no trânsito, envolvendo embriaguez ou racha.
Sempre nos pareceu que a solução para essa espécie de sentimento de “anomia”
seria não a perversão de toda a teoria sobre dolo e culpa (mais especificamente
a destruição bárbara da linha divisória nítida entre dolo eventual e culpa
consciente). Mas, a alteração das penas para o homicídio culposo ocorrido
nessas circunstâncias especialmente gravosas, com a previsão de uma reprimenda
mais rigorosa para a própria conduta culposa. Não haveria aí qualquer perversão
e até se respeitaria a proporcionalidade na medida em que a culpa consciente
presente nesses casos estaria a justificar uma reação estatal mais gravosa do
que aquela atribuída à culpa sem previsão ou inconsciente. Afinal, embora a
legislação brasileira, com a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984,
tenha extirpado os chamados “graus de culpa”, segue sendo possível aferir que,
no caso concreto, a culpa consciente configura o grau mais elevado de culpa
possível, tanto que se aproxima e cria até mesmo certa confusão para alguns com
o dolo eventual.
Portanto, a iniciativa do
legislador em buscar um tratamento especial para os casos de homicídio culposo
marcados pela embriaguez ou o racha não é passível de críticas. Não obstante, o
é a forma pela qual se desincumbiu dessa tarefa.
Essa forma é não somente
criticável como ridícula. Isso porque o tratamento em tese “mais gravoso” dado
pelo legislador para tais situações consiste, pasmem, em manter a pena de 2 a 4
anos e a suspensão do direito de dirigir e somente alterar a qualidade da
reprimenda de detenção para reclusão! A alteração é pífia, ridícula e
certamente não satisfaz os reclamos sociais. Muito menos será suficiente para
acalmar os ânimos daqueles que querem a todo custo perverter a teoria dos
elementos subjetivos do crime, forçando uma situação de dolo eventual onde há
culpa consciência dado o laxismo legislativo. Qualquer iniciante na seara
jurídico – penal tem plena consciência de que na atualidade a diferença entre a
pena ser de detenção ou reclusão é praticamente irrelevante. Seria de se esperar
a previsão de uma pena reclusiva sim, mas com patamares mínimo e máximo bem
acima dos previstos no “caput”. Assim sendo, dizer que essa reforma foi inútil
e ridícula é um eufemismo para evitar o uso de palavras de mais baixo calão às
quais a alteração faria jus.
Por dádiva celeste a Lei
12.971/14 não promoveu suas “barbeiragens” na lesão corporal culposa no
trânsito, mantendo “in totum” a redação do artigo 303, CTB. Apenas, dentro do
cenário tenebroso acima exposto, como transformou o que era um Parágrafo Único
em dois parágrafos distintos, ajustou a redação do Parágrafo Único do artigo
303, CTB que remetia, no caso de lesões culposas, aos mesmos aumentos de pena
do Homicídio Culposo (antigos incisos do então Parágrafo Único do artigo 302,
CTB). Como agora essas causas especiais de aumento de pena estão alocadas no
novo § 1º., do artigo 302, CTB, a redação do Parágrafo Único do artigo 303
passa a fazer corretamente menção não ao antigo e revogado Parágrafo Único, mas
ao novo § 1º., do artigo 302, CTB.
Também não há menção de alteração
no “caput” e § 1º., do artigo 306, CTB (Embriaguez ao Volante). No entanto, no
§ 2º., embora praticamente repita sua redação inclui a menção dentre os meios
para aferição da alteração psicomotora, logo depois de citar o teste de
“alcoolemia”, o exame “toxicológico”, palavra esta que anteriormente não
constava do dispositivo.
Assim como podem surgir, segundo
o dito popular, indivíduos imorais nas melhores famílias, também nas piores
leis pode aparecer algo de bom. Tem se arrastado uma discussão infértil quanto
ao que seria um exame de alcoolemia, especialmente quanto a poder ser
considerado o teste do etilômetro uma espécie de aferição válida para esse fim,
sustentando alguns que somente o exame toxicológico de sangue poderia ser
considerado como de aferição de alcoolemia. Os dispositivos legais e
regulamentares sobre a matéria são fartos em estabelecer o que a ciência já
comprova, ou seja, que a alcoolemia pode ser aferida por intermédio de diversos
exames e testes, dentre os quais está o moderno aparelho de medição do ar
alveolar (etilômetro). A redação dada ao atual § 2º., do artigo 306, CTB vem em
boa hora reforçar essa conclusão, pois quando trata por expressões diversas os
“testes de alcoolemia” e “toxicológico”, deixa claro que as aferições de
concentração de álcool no sangue podem ser feitas por exame direto no sangue,
pela urina ou mesmo pelo aparelho de ar alveolar, afora outros dispositivos
tecnológicos que venham a ser desenvolvidos. [5] Ora, a chamada “alcoolemia” nada
mais é do que a concentração de álcool por litro de sangue, a qual pode ser
aferida diretamente no exame sanguíneo ou indiretamente por critérios de
equivalência cientificamente comprovados, usando o ar alveolar pulmonar, a
urina ou mesmo outros meios clinicamente acatáveis.
Ao mencionar expressões separadas
para os “testes de alcoolemia” e “toxicológicos”, primeiro, como acima já
explicitado, fica claro que os testes de alcoolemia são variados e não se
reduzem de forma alguma ao exame direto do sangue. Por outro lado, considerando
a regra de hermenêutica de que a lei não contém palavras inúteis (“Verba cum
effectu, sunt accipienda”), [6] resta nítida a necessidade de distinguir
“testes de alcoolemia” de testes ou exames “toxicológicos”. Ao que nos parece é
viável compreender que o legislador abarcou na expressão “testes de alcoolemia”
os exames de sangue, urina e de ar alveolar (etilômetro), os quais dizem
respeito à ebriedade específica por álcool. No entanto, como a legislação
também trata da ebriedade provocada por outras substâncias psicoativas que
determinem dependência, vem a lume a noção de que o exame ou teste toxicológico
passa a se referir à aferição da alteração da capacidade psicomotora não por
abuso de álcool, mas de outras substâncias psicoativas. Dessa forma a redação
nova faz um trabalho relevante de firmar definitivamente a equivalência dos
exames de alcoolemia, bem como não deixa de lado a questão dos exames e testes
referentes a outras substâncias alteradoras do psiquismo.
Por seu turno, a nova redação
dada ao § 3º., do mesmo dispositivo nada mais faz do que adequá-lo ao § 2º.,
imprimindo a mesma distinção entre “testes de alcoolemia” e “toxicológicos”, o
que se fazia realmente necessário e salutar.
O leitor, analisando o que até
agora foi exposto, pode estar pensando que o intróito deste trabalho foi um
tanto quanto exagerado e que a lei é fraca, como tantas o são, mas que não é
tão ruim assim como foi desenhado inicialmente. Tem até mesmo pontos positivos,
não é?
Ledo engano, porque é agora, a
partir das alterações no artigo 308, CTB (Crime de Racha) que se verá o que há
de aterrorizante nessa legislação. No começo da análise do dispositivo, o
leitor continuará com a percepção de que há exagero em nossa fala, mas ao fim,
perceberá de que monstruosidade estamos tratando. Aguarde e confie.
Por isso abriremos inclusive um
tópico especial para o tratamento das alterações promovidas no artigo 308, CTB
e sua inserção sistemática na Lei 9.503/97.
3-A “LEI POKÉMON”
O fenômeno “Pokémon” ou “Pocket
Monsters”, que pode ser traduzido literalmente como “monstros de bolso” ou
“bichos de bolso” é uma marca japonesa que explora uma série de nichos
midiáticos tais como jogos eletrônicos, desenhos animados, bonecos, quadrinhos
etc.
Quando chegamos agora ao ponto de
análise das alterações promovidas no artigo 308, CTB e suas reverberações na
sistemática da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), inclusive em
cotejo com o disposto no artigo 302, § 2º., CTB, torna-se perfeita a metafórica
denominação da Lei 12.971/14 como “Lei Pokémon”. Afinal, esses monstrinhos de
desenho animado são exatamente aqueles que quando são olhados num primeiro
momento e de certa distância, parecem apenas meio esquisitinhos, mas, na
verdade, são verdadeiros monstros com super – poderes destrutivos e
assustadores. Até o momento e ainda por alguns parágrafos adiante continuaremos
com a mera impressão de esquisitice, até que veremos a real teratologia da
legislação sob comento. O “Pokémon” se revelará com todos os seus poderes para
fazer rir e chorar de desespero!
Pois bem, a Lei 12.971/14 traz
uma ligeira modificação na redação da parte final do “caput” do artigo 308,
CTB. Substitui a frase indicadora da necessidade de perigo concreto “desde que
resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada”, pela frase diversa,
mas de conteúdo semântico idêntico “gerando situação de risco à incolumidade
pública ou privada”. Mudam as palavras, mas o efeito é o mesmo: trata-se de um
crime de perigo concreto comum. Em suma, faz-se necessário que a conduta enseje
perigo real e não presumido, mas prescinde-se da identificação de um ou mais
sujeitos passivos específicos (crime vago). Talvez a alteração seja salutar a
fim de jogar uma pá de cal sobre a alegação de alguns autores como, por
exemplo, Damásio de Jesus, que afirmavam que o crime era de dano, [7] tendo em
conta um bem jurídico difuso que seria a “segurança do trânsito viário
terrestre”. A palavra “dano potencial” anteriormente constante do tipo poderia
induzir a essa conclusão, o que nos parece inviável a partir de sua
substituição pela palavra “risco” que certamente está ligada ao perigo e não ao
dano efetivo. Não obstante, esse posicionamento desde sempre foi considerado
equivocado e inclusive a criação de bens jurídicos difusos como “segurança do
trânsito viário terrestre” tem merecido a justa crítica da doutrina quanto à
banalização do critério de definição do que seja realmente um bem jurídico –
penal. [8] Ou seja, a maioria da doutrina e da jurisprudência sempre assentaram
que o crime de Racha é de “perigo concreto” e não de “dano”. [9] Inclusive,
como anota Marcão, o STJ já estabeleceu essa natureza de crime de perigo
concreto para o dispositivo do artigo3088,CTBB (STJ, Resp 585.345/PB, 5ª.
Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de 16.02.2004). [10]
A verdade é que a mudança tem o
condão de pacificar uma situação em que havia alguma ligeira dissidência, mas
não altera muito o quadro prático, de modo que se trata de uma alteração que
faz tudo ficar como estava, de acordo com a famosa frase de Lampedusa. [11]
Uma novidade louvável foi a
alteração da pena de prisão em seu máximo cominado de 2 para 3 anos de
detenção, retirando o Racha do rol de infrações de menor potencial ofensivo nos
termos do artigo 61 da Lei 9.099/95. Efetivamente era algo incompreensível que
uma conduta tão perigosa e tão socialmente reprovável estivesse catalogada
dentre as infrações de menor potencial.
O leitor já percebeu que até o
momento ainda não chegamos ao estágio “Pokémon” da Lei 12.971/14, mas
chegaremos lá, estamos perto.
Em sua versão original o artigo
308, CTB não contava com parágrafos. A Lei 12.971/14 incluiu dois parágrafos,
prevendo formas qualificadas respectivamente pelos resultados lesão corporal
grave e morte.
No § 1º., afirma que em caso de
conduta culposa (afastados os dolos direto e eventual), se resultar “lesão
corporal de natureza grave”, a pena passa a ser de “reclusão, de 3 a 6 anos”,
além das demais penalidades já previstas no artigo. É preciso destacar que
quando a lei menciona a expressão “lesões graves” está abrangendo as
doutrinariamente chamadas “lesões graves” e “lesões gravíssimas”, de acordo com
o disposto no artigo 129, §§ 1º. E 2º., CP.
Embora seja incomum a ligação
entre a gravidade da lesão e a figura da lesão corporal culposa, seja no Código
Penal, seja no Código de Trânsito, nada impede que o legislador crie essa
distinção na reprimenda, considerando o desvalor do resultado mais intenso.
A partir de agora é preciso saber
distinguir algumas situações em caso de lesão corporal culposa:
a) Se ocorre uma lesão corporal
culposa na qual o autor não está na direção de veículo automotor, aplica-se o
artigo 129, § 6º., CP, sem essa distinção a respeito da gravidade da lesão, o
que somente será considerado para a dosimetria da pena – base nos estritos termos
do artigo 59, CP (consequências do crime).
b) Se ocorre uma lesão corporal
culposa na qual o autor está na direção de veículo automotor e não está
disputando Racha, então é aplicável o artigo 303, CTB, também sem levar em
conta a gravidade da lesão a não ser para fins de dosimetria da pena base,
conforme acima exposto.
c) Se há uma lesão corporal
culposa com o autor do crime na direção de veículo automotor e disputando
Racha, sendo a lesão leve, esta circunstância (Racha) configura a imprudência
do infrator e aplica-se normalmente o artigo 303, CTB. O artigo 308, § 1º., do
mesmo diploma resta afastado porque ausente a elementar da “lesão corporal de
natureza grave”.
d) Finalmente, se um indivíduo,
na direção de veículo automotor e disputando Racha, lesiona gravemente (lesão
grave ou gravíssima) outrem passa doravante a ser aplicável o disposto no
artigo 308, § 1º., CTB que prevalece sobre o artigo 303, CTB, considerando a
existência de um conflito ou concurso aparente de normas, no qual o artigo 308,
§ 1º., CTB se sobressai devido ao Princípio da Especialidade.
Aqui, embora seja solvível alguma
dificuldade interpretativa, nota-se claramente uma impropriedade na qual o
crime de Racha é qualificado pela lesão corporal culposa, quando o mais correto
e sistematicamente adequado seria que a lesão corporal culposa fosse
qualificada pelo Racha, assim como fez (muito mal e porcamente, como já visto,
mas fez) o legislador com o caso do homicídio e a embriaguez ao volante e o
racha (vide artigo 302, § 2º., CTB com a nova redação dada pela Lei 12.971/14).
Os sinais de teratologia já vão então se manifestando, mas ainda não chegamos
em seu ápice.
É no § 2º., do artigo 308, CTB
que o pequeno e esquisito “Pokémon” jurídico se transforma de uma bolinha
minúscula em um monstro tenebroso!
Acontece que esse § 2º., acima
citado prevê uma qualificação do crime do artigo 308, CTB pelo resultado morte,
sempre que a conduta for culposa (afastando-se as situações de dolo direto ou
eventual). Nesse caso a pena prevista passa a ser de “reclusão, de 5 a 10
anos”, além das demais cominadas no tipo penal. Ora, mas acontece que no artigo
302, § 2º., CTB (mesmo diploma legal) o resultado morte advindo de culpa
durante um racha tem pena prevista de “reclusão, de 2 a 4 anos, afora as demais
penalidades agregadas. Há aqui uma séria contradição interna no diploma legal,
a teratologia máxima da criação de um conflito aparente de normas insolúvel
dentro do próprio diploma. Diga-se melhor, não de um conflito “aparente” de
normas dentro de um mesmo diploma, mas de um conflito “real” de normas dentro
de um mesmo diploma. Isso porque ambos dispositivos (artigo 308, § 2º., CTB e
artigo 302, § 2º., CTB) descrevem a mesmíssima situação com penas absolutamente
diversas.
O quadro é tão caótico que nenhum
dos Princípios de solução de conflitos aparentes de normas (consunção,
subsidiariedade, especialidade ou alternatividade) é hábil a resolver
satisfatoriamente a situação. É simplesmente impossível ao intérprete
compreender o que pretendeu o legislador com essa monstruosidade que agora se
descortina ante nossos olhares embasbacados!
Afinal, qual dispositivo aplicar?
Como não perceber e denunciar infrações aos Princípios basilares da
razoabilidade e proporcionalidade? Mais que isso, à mais comezinha lógica já
que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e ao ser uma coisa e não outra,
não pode ser uma terceira diversa, ou seja, algo é verdadeiro ou falso, não
havendo a hipótese de uma terceira via alternativa (Princípios da Não –
Contradição e do Terceiro Excluído). Neste último campo até mesmo o chamado
“Princípio da Identidade” que afirma que algo é sempre igual a si mesmo é
violado. Vejamos: se afirmo que quem disputa racha e causa culposamente uma
morte responde pelo artigo 302, § 2º., CTB, isso entra em contradição nos três
aspectos lógicos acima com o artigo 308, § 2º., do mesmo diploma legal.
Superado o susto, passa-se então
a delinear propostas de solução para esse dilema monstruoso que poderão surgir
na tão maltratada doutrina nacional:
a) Frente ao conflito medonho
acima descrito poderá surgir quem advogue a tese de aplicação da reprimenda
mais gravosa, ou seja, o dispositivo do artigo 308, § 2º., CP por uma aplicação
enviesada do Princípio da Especialidade e considerando a necessidade de
repressão mais intensa da conduta de quem ocasiona morte, ainda que culposa,
mas numa situação de Racha, o que, aliás, seria a “mens legis”. Neste passo o
artigo 302, § 2º., CTB somente seria aplicável em sua inovação praticamente
inócua de alteração de pena de detenção para reclusão no caso de embriaguez ao
volante, tornando-se letra morta a hipótese de racha.
b) Diante do conflito enfocado
prevaleceria o artigo 302, § 2º., CTB e o disposto no artigo 308, § 2º., do
mesmo diploma seria letra morta. Para essa posição há duas argumentações
plausíveis pelo menos, quais sejam:
b.1-No conflito de duas normas
que regulam a mesma conduta, prevendo-a como crime e impondo penas diversas, o
Princípio do “Favor Rei” está a indicar que a norma mais branda, mais favorável
ao réu, deve prevalecer. Maximiliano não poderia prever que ao ensinar em sua
clássica obra que o “Favor Rei” ou o “in dúbio pro reo” devem ser aplicados
“cum granu salis”, apenas quando a dúvida é insolúvel no esforço da busca do
efetivo sentido da letra da lei e de seu espírito, estaria agora com um exemplo
teratológico em que efetivamente é impossível perscrutar os caminhos tortuosos
da “mens legis” ou “mens legislatoris”, simplesmente pelo fato corriqueiro de
que diante da insanidade não é viável buscar coerência. De acordo com o autor
nominado é aí que
“terá cabimento o in dúbio mitius
interpretandum est; ou – interpretationes legum poenae molliendoe sunt potius
quam asperandae; ou ainda – In poenalibus causis benignus interpretandum est:
‘Opte-se, na dúvida pelo sentido mais brando, suave, humano’; ‘Prefira-se, ao
interpretar as leis, a inteligência favorável ao abrandamento das penas ao
invés da que lhes aumente a dureza ou exagere a severidade’; ‘Adote-se nas
causas penais a exegese mais benigna’”. [12]
b.2-A aplicação do artigo 308, §
2º., CTB em detrimento do artigo 302, § 2º., do mesmo diploma geraria, além do
mais, uma nítida infração ao Princípio da Proporcionalidade em relação àquele
indivíduo que perpetra um homicídio culposo embriagado. Perceba-se que para a
embriaguez ao volante (artigo 306, CTB), não foi prevista qualificadora
similar, restando então somente o dispositivo frouxo do artigo 302, § 2º., CTB.
Já para o infrator do artigo 308, CTB, aplicando-se seu § 2º., este teria uma
pena muito mais alta do que o ébrio. Ora, ambas situações são equivalentes e
não comportam tratamento tão distinto, o que violaria à proporcionalidade. A
hipótese de aplicar as penas mais altas do artigo 308, § 2º., CTB também ao
ébrio homicida culposo no trânsito é tecnicamente indefensável, pois que
violaria, além do “Favor Rei” o “Princípio da Legalidade”. Assim sendo, o
tratamento mais gravoso do disputador de racha e o menos gravoso do ébrio é
inviável e desproporcional, o que também indica para a prevalência do artigo
302, § 2º., CTB que trata ambas as situações com proporcionalidade (muito mal e
porcamente, mas com proporcionalidade).
4-CONCLUSÃO
Arriscando um prognóstico,
tendemos a pensar que a prevalência do artigo 302, § 2º., CTB e o afastamento e
conversão em letra morta por inépcia legislativa do artigo 308, § 2º., CTB
deverá predominar na doutrina e nos tribunais.
Não obstante nossa proposta seria
pela imediata revogação de ambos dispositivos e, se for o caso, a elaboração de
uma lei que mereça esse nome. Aliás, o ideal seria que essa Lei 12.971/14 nunca
tivesse existido e permanecesse no limbo onde estão os monstros do armário, a
Cuca, o Saci – Pererê, o Lobisomem, o Curupira, os Vampiros, o Godzilla e os
Pokémon.
REFERÊNCIAS
BRUNO, Aníbal. Direito Penal.
Volume I. Tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 1966.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos.
Nova Lei Seca. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo.
Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro.
Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998.
MARCÃO, Renato. Crimes de
Trânsito. 3ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica
e Aplicação do Direito. 18ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
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Sannini Neto, Francisco. Lei Federal n. 12.971/2014: mudanças e “barbeiragens”
legislativas. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 08.11.2014.
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SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo
Horizonte: Del Rey, 1998.
SÁNCHEZ, Jesús – María Silva. A
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2002.
SERRANO, Pablo Jiménez.
Interpretação Jurídica. São Paulo: Desafio Cultural, 2002.
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SILVEIRA, Renato de Mello Jorge.
Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003.
SOUZA, José Barcelos de. Dolo
eventual em crimes de trânsito. Boletim IBCCrim. São Paulo: IBCCrim, n. 73, p.
11 – 12, out., 1998.
[1] Conferir por todos: MORAES,
Rafael Marcondes de, Sannini Neto, Francisco. Lei Federal n. 12.971/2014:
mudanças e “barbeiragens” legislativas. Disponível em www.jusbrasil.com.br,
acesso em 08.11.2014.
[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos.
Nova Lei Seca. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 63 – 65.
[3] Dolo eventual e culpa
consciente (mais alto grau de culpa) se assemelham bastante. No primeiro o
agente pratica uma conduta, prevendo um possível resultado, mas assumindo o
risco de sua produção. Na segunda o agente também prevê um certo resultado, mas
decide praticar mesmo assim sua conduta, não porque assuma o risco, mas porque
confia sinceramente em sua capacidade de evitar o referido resultado. Uma
excelente e ponderada exposição sobre o tema pode ser encontrada no seguinte
trabalho: SOUZA, José Barcelos de. Dolo eventual em crimes de trânsito. Boletim
IBCCrim. São Paulo: IBCCrim, n. 73, out., 1998, p. 11 – 12.
[4]BRUNO, Aníbal. Direito Penal.
Volume I. Tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 75.
[5] O Ministro do Supremo
Tribunal Federal, Luiz Fux, na qualidade de relator de decisão de HC,
apresentando precedentes de Tribunais Estaduais, do STJ e do próprio STF, já há
bastante tempo acenava com a equivalência como exame de alcoolemia para o teste
do etilômetro. Disponível em www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoTexto.asp?id=3021284,
acesso em 08.11.2014.
[6] MAXIMILIANO, Carlos.
Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.
250. No mesmo sentido: SERRANO, Pablo Jiménez. Interpretação Jurídica. São
Paulo: Desafio Cultural, 2002, p. 34. “No texto da lei se entende não haver frase
ou palavra inútil, supérflua ou sem efeito”.
[7] JESUS, Damásio Evangelista
de. Crimes de Trânsito. 5ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 184.
[8] Cf. SÁNCHEZ, Jesús – María
Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São
Paulo: RT, 2002, p. 113. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra –
Individual. São Paulo: RT, 2003, p. 57.
[9] Neste sentido: PIRES,
Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei
9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 234. LOPES, Mauricio Antonio
Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998, p. 231. MARCÃO, Renato.
Crimes de Trânsito. 3ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198.
[10] MARCÃO, Renato. Crimes de
Trânsito. 3ª. Ed. São Paulo Saraiva, 2011, p. 198.
[11] LAMPEDUSA, Giuseppe. O
Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 42.
[12] MAXIMILIANO, Carlos. Op.
Cit., p. 326 – 327.
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em
Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e
Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e
Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-graduação da
Unisal”.
Acesso: 9/11/2014
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