Não
é possível condenar dois motoristas por “racha” ou “pega”, com base nos
mesmos fatos e circunstâncias, em coautoria, como se um agisse de forma
culposa e o outro com dolo eventual. Com esse entendimento, a Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou a um motorista
condenado por homicídio doloso a mesma pena do outro envolvido no
acidente, condenado por homicídio culposo na direção de veículo.
A
acusação atribuiu aos motoristas a participação em corrida ilícita,
conhecida como “racha” ou “pega”. Ao fazê-lo, eles teriam assumido o
risco de causar a morte da vítima. Um dos carros a derrubou da
motocicleta e o outro a atropelou. Daí a denúncia por homicídio
intencional, na modalidade de dolo eventual.
Os
jurados, porém, afastaram o dolo de um dos motoristas. Por isso, ele
foi condenado por homicídio culposo na direção de veículo e recebeu pena
final de três anos de detenção em regime aberto e suspensão da
habilitação pelo mesmo período.
O
outro motorista, no entanto, foi condenado por homicídio doloso simples
e recebeu pena final de sete anos de reclusão em regime semiaberto e
inabilitação para dirigir por cinco anos.
Teoria monista
Para
o ministro Marco Aurélio Bellizze, a conclusão dos jurados, mantida
pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), violou a teoria
unitária do concurso de agentes.
A
teoria decorre da adoção, no Brasil, do sistema unitário, também
conhecido como monista, em relação ao concurso de pessoas. Isto é,
quando duas ou mais pessoas agem com condutas diversas, mas causam um
único resultado, existe um único crime.
Conforme
o relator, caso a acusação tivesse concluído, ao final da instrução
probatória, que os réus teriam agido com objetivos diversos - não
havendo, portanto, o liame subjetivo que caracteriza o concurso de
pessoas -, seria o caso de se aditar a denúncia, aplicando a chamada
mutatio libelli.
Nessa
hipótese, a alteração permitiria à defesa responder à nova imputação
adequadamente. No caso julgado, essa mudança não foi feita, sendo
mantida a acusação de que os dois motoristas agiram com o mesmo
objetivo.
Autoria colateral
O
TJRJ afirmou ainda que os jurados teriam reconhecido a autoria
colateral e não o concurso de pessoas, por ser distinta a
responsabilidade jurídico-penal dos réus.
O
ministro Bellizze explicou que essa hipótese ocorre quando os dois
agentes, embora se voltem contra o mesmo bem jurídico, atuam de forma
individual, um ignorando os atos do outro, para a realização do crime.
Nesses casos, não há adesão dos sujeitos na execução do ilícito, e a
responsabilização penal é individual.
O
relator exemplificou que este seria o caso se a acusação tivesse
afirmado que, em vez de “racha”, um dos motoristas tivesse abusado na
direção de forma a incidir o dolo eventual e o outro apenas conduzido
com falta de cautela, atraindo a condenação culposa.
Vínculo
Conforme
o relator, a acusação não fez essa contextualização dos fatos. A
denúncia afirmou que os réus participaram de corrida automobilística
ilícita, o que obrigaria a conclusão de existência de um vínculo entre
os objetivos de cada um dos motoristas.
“Sendo
imputado o cometimento do delito por ambos os réus em concurso de
pessoas, em razão da unidade de desígnios (vontade e consciência de
participar do ‘pega’) e do resultado naturalístico único e indivisível
(morte da vítima), era de rigor que ambos fossem julgados pelo mesmo
crime”, afirmou o ministro Bellizze.
“O
que não poderia ocorrer, como se verificou no caso, era a análise e o
julgamento das condutas de cada um dos réus de forma autônoma e isolada,
havendo verdadeira ruptura do elemento subjetivo em relação aos
agentes, visto que um foi condenado por homicídio doloso e o outro por
homicídio culposo, a despeito de a acusação ter imputado a ambos o mesmo
fato delituoso”, completou o relator.
Soberania do júri
O
ministro ainda considerou que o caso seria, a rigor, de submeter o réu a
novo julgamento pelo júri. Ocorre que a condenação do corréu na
modalidade culposa já transitou em julgado tanto para a defesa quanto
para a acusação. Não pode, portanto, ser modificada.
Para
o relator, a aplicação da soberania do júri se dá, no caso concreto,
com a preservação da coisa julgada. A questão resolvida pelo STJ foi
meramente de aplicação do direito, não havendo outra solução cabível que
não a de extensão dos efeitos da sentença condenatória ao recorrente.
Caberá
ao juízo sentenciante a realização de novo cálculo da pena ao
recorrente, observando os parâmetros do homicídio culposo ao dirigir.
Processo relacionado: REsp 1306731
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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