“Da
Abstrativização do Controle Concreto de Constitucionalidade - Daniel Costa Reis
1. Considerações Iniciais
Inicialmente, antes de adentrar no mérito da temática proposta, impende,
para fins de contextualização, que se conceitue controle abstrato e controle
concreto de constitucionalidade.
Pois bem, o controle concreto, como o próprio nomen juris sugere, é aquele
que exsurge a partir de um caso concreto, no qual as partes deduzem uma lide em
juízo, a fim de defender seus respectivos direitos subjetivos. Dessa maneira,
no controle concreto, a declaração de inconstitucionalidade não se revela como
um fim em si mesmo; em verdade, trata-se de um meio para a tutela de dado
direito subjetivo.
Exatamente por surgir a partir de um caso concreto, neste tipo de
controle a eficácia da decisão, sob o aspecto subjetivo, limita-se às partes
envolvidas no processo em que se discute a inconstitucionalidade (eficácia inter partem ), não atingindo
terceiros alheios ao mesmo.
De outra parte, controle abstrato é aquele que prescinde de um caso
concreto para sua ocorrência, ou seja, o Judiciário, por meio do STF ou de TJ,
a depender do parâmetro para o controle (Constituição Federal ou Estadual, respectivamente), analisa a constitucionalidade de
determinado ato (em geral normativo[ 1 ]) em tese, ou seja, abstratamente, verificando se o mesmo é
constitucional ou não.
Em relação à eficácia deste tipo de controle, vejamos a doutrina de
Marcelo Novelino[ 2 ] : "no processo constitucional objetivo ('controle abstrato') a
declaração de inconstitucionalidade produz eficácia contra todos ( erga omnes ) e efeito
vinculante ".
Ainda em sede de ponderações iniciais, cumpre justificar a terminologia
utilizada neste estudo: "abstrativização do controle concreto de
constitucionalidade". De se notar que o assunto está na seara da dicotomia
controle concreto/abstrato, e não na da controle difuso/concentrado. Na
espécie, vale ressaltar que controle difuso é aquele realizado por qualquer
magistrado; e controle concentrado o é somente por um Tribunal.
Por outro lado, quando se trata de controle concreto/abstrato, está-se
perquirindo se ele é feito a partir de um caso concreto ou se o é em abstrato.
De outro modo, no âmbito do controle difuso/concentrado, o foco está no sujeito
que realiza o controle. Por isso, falar-se na dicotomia controle
concreto/abstrato é diferente de mencionar a alusiva ao controle
difuso/concentrado[ 3 ].
Não obstante nosso estudo valer-se da terminologia "abstrativização
do controle concreto de constitucionalidade", é bem certo que outras
designações são utilizadas pela doutrina e pela jurisprudência, tais como,
"objetivização do recurso extraordinário[ 4 ]","abstrativização do controle difuso[ 5 ]".
2. Da Abstrativização do Controle Concreto de Constitucionalidade
Feitas essas considerações propedêuticas, passemos a análise da
abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, a começar pelo seu
conceito.
Trata-se de situação na qual o Judiciário, em controle concreto de
constitucionalidade, confere à decisão proferida eficácia erga omnes , em lugar de inter partem , lembrando que
esta se constitui na eficácia típica desta modalidade de controle.
Ratificando a idéia, transcrevemos a doutrina de Jonathas Vieira de
Lima[ 6 ] :
"Este tipo de decisão deve produzir efeitos apenas entre as
partes, por se tratar de controle incidental dentro de um processo subjetivo,
mas o que se vem percebendo na jurisprudência da Suprema Corte é uma abstração,
bem como uma manipulação dos efeitos da decisão, a exemplo do que acontece no
controle abstrato, por expressa previsão legal (art. 27 da lei 9.868/99) ".
Neste ponto, é imperioso ressalvar que tal somente seria possível em
casos de decisão plenária, sendo inconcebível pensar em abstrativização de
controle concreto em se tratando de decisão de órgão fracionário do STF ou de
TJ[ 7 ] .
Ainda, digno de nota é o fato de que a abstrativização do controle
concreto de constitucionalidade não é fenômeno consolidado no Direito pátrio,
constituindo-se em simples tendência.
A aludida tendência, de acordo com Marcelo Novelino[ 8 ] , se manifesta,
basicamente, em dois planos: 1) legislativo; 2) jurisprudencial.
No tocante ao primeiro plano, o indigitado autor[ 9 ] assevera que dois
institutos trazidos pela Emenda Constitucional 45/04 bem retratam o fenômeno, a
saber: 1) a súmula vinculante; 2) a repercussão geral exigida para a
interposição de recurso extraordinário.
"Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas
decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua
publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais
órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou
cancelamento, na forma estabelecida em lei ".
Assim, é correto afirmar que, ao editar súmula vinculante, o STF confere
eficácia erga omnes a decisões proferidas em controle concreto de constitucionalidade.
Dito de outro modo, em processo subjetivo, instaurado a partir de um
caso concreto, o STF (cumpridos os requisitos previstos no art. 103-A da CR) estabelece uma
orientação jurisprudencial que passará a ter eficácia geral e vinculante em
relação a todos os demais órgãos do Judiciário, bem com da Administração
Pública em todas as esferas da Federação.
No ponto, vale lembrar que decisões proferidas em sede de controle
concreto de constitucionalidade, em princípio, deveriam repercutir unicamente
na esfera jurídica das partes nele envolvidas (eficácia inter partem ). Mas, no caso das
súmulas vinculantes, na forma do art. 103-A da CR, não é o que
ocorre, já que a súmula vinculante tem eficáciaerga omnes .
Por outro enfoque, também a partir da Emenda 45/04, passou-se a exigir
um novo pressuposto de admissibilidade para o conhecimento do recurso
extraordinário, qual seja, a repercussão geral da questão constitucional
guerreada, a qual deve transcender os interesses subjetivos das partes, devendo
ser relevante para a sociedade como um todo.
Isto também demonstra uma tendência em abstrativizar o controle concreto
de constitucionalidade, no caso, aquele que é feito mediante recurso
extraordinário. Vejamos a redação do § 3º do artigo 102 da Constituição da República:
"No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos
da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo
recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros ".
Com efeito, na medida em que a Constituição exige, como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário que a
causa a ser apreciada pelo Pretório Excelso transcenda os interesses subjetivos
das partes do processo, está-se diante de uma abstrativização do controle
concreto de constitucionalidade.
Já no plano jurisprudencial, a abstrativização se manifesta a partir de
alguns julgados do STF em sede de controle difuso, aos quais o próprio
Tribunal, por intermédio de alguns de seus ministros, afirmou que a decisão
prolatada no controle concreto teria eficácia erga omnes , sempre lembrando que tal somente ocorre em se tratando de decisão
plenária do STF.
Nesse sentido, salienta Anderson de Moraes Mendes[ 10 ] :
"No âmbito do STF, alguns posicionamentos dos magistrados têm
apontado para a direção da abstrativização do controle de constitucionalidade
difuso. Dentre eles, citamos o posicionamento do Ministro Gilmar Ferreira
Mendes, adotado no Processo Administrativo nº 318.715/STF de 17/12/2003, que culminou na edição da emenda nº 12 ao
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF); no julgamento do RE 376.852 , de 27/03/2003, quando o próprio
Ministro reafirmou a necessidade de transformação do Recurso Extraordinário em
remédio de controle abstrato de constitucionalidade; o posicionamento da
Ministra Ellen, por ocasião do julgamento do AI 375.011 , bem como a decisão do plenário do
STF que declarou a inconstitucionalidade do § 1º, art. 2º, da Lei 8.072/90 -
Progressão de regime nos crimes hediondos - em sede de Habeas Corpus
82.959/SP" .
É preciso salientar que essa tendência jurisprudencial, verificada
especialmente no âmbito do STF, representa um divisor de águas na teoria do
controle de constitucionalidade.
Isso porque, tradicionalmente, como visto, o controle concreto de
constitucionalidade gera decisão final com eficácia inter partem . Contudo, de
acordo com o pensamento clássico, só haveria um meio para se atribuir eficácia
erga omnes a esse provimento, que seria o previsto no inciso X do art. 52 da Lei
Maior, in verbis: "Compete privativamente ao Senado Federal: X -
suspender a execução, no todo ou em parte de lei declarada inconstitucional por
decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal ".
Assim, após o STF declarar a inconstitucionalidade da lei em sede de
controle concreto de constitucionalidade, caber-lhe-ia a tarefa de comunicar
tal ocorrência ao Senado Federal, a fim de que o último suspendesse a eficácia
da indigitada lei por meio de resolução.
Nesse contexto, é possível asseverar que o ponto central da tendência de
abstrativização do controle concreto de constitucionalidade em sede
jurisprudencial reside na desnecessidade de uma resolução suspensiva da
eficácia da lei emanada do Senado Federal. De maneira que a lei estaria
suspensa desde o trânsito em julgado da decisão do STF.
Nessa ordem de idéias, o Senado se transformaria em mero órgão
publicador da decisão do Supremo Tribunal Federal supressiva da lei
inconstitucional. Em outros termos, a resolução do Senado não teria eficácia
suspensiva, mas simplesmente cumpriria a função de publicar um entendimento do
Excelso Pretório.
Sem dúvida, a indagação que emerge é como isso seria viável, do ponto de
vista jurídico, considerando os termos peremptórios do inciso X do art. 52 da
Constituição? Os defensores da tese da abstrativização assentam seus argumentos
na ocorrência de uma mutação constitucional[ 11 ] .
Nesse sentido, imperiosa a transcrição do entendimento do Ministro
Gilmar Mendes[ 12 ]: Gilmar Mendes afirma ser possível, sem qualquer exagero, falar-se
aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação
do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à
regra do art. 52, X, da Constituiçãode 1988.
Assim, à luz da tendência de atribuir-se eficácia geral às decisões do
STF no controle concreto, ter-se-ia uma verdadeira eficácia transcendente dos
motivos determinantes da decisão do referido Tribunal no controle concreto de
constitucionalidade. É dizer: as razões de decidir que levaram à declaração de
inconstitucionalidade da lei transcendem a esfera jurídica das partes
envolvidas para assumir uma eficácia generalizada, independentemente de
resolução do Senado suspendendo os efeitos da lei.
Sobre isso, vejamos as conclusões do Ministro Celso de Mello[ 13 ] :
"Torna-se relevante salientar, na linha do que destacou o
eminente Ministro Gilmar Mendes, que esta Suprema Corte deu efeito
transcendente aos próprios motivos determinantes que deram suporte ao
julgamento do RE 197.917/SP . Esse aspecto assume relevo
indiscutível, pois permite examinar a presente controvérsia constitucional em
face do denominado efeito transcendente dos motivos determinantes subjacentes à
decisão declaratória de inconstitucionalidade proferida no julgamento plenário
do RE 197.917/SP(...) ".
3. Conclusão
Em conclusão, tem-se que a abstrativização do controle concreto de
constitucionalidade ainda é simples tendência. Esta se manifesta, basicamente,
em dois planos: 1) legislativo, consubstanciada em institutos como a súmula
vinculante e a repercussão geral, os quais cumprem a função de ampliar a
repercussão do controle concreto para além da esfera jurídica das partes
envolvidas; 2) jurisprudencial, com supedâneo em uma mutação constitucional,
segundo a qual resta dispensada resolução do Senado para atribuir efeito
suspensivo à lei declarada inconstitucional pelo STF no controle concreto de
constitucionalidade, uma vez que os motivos dessa decisão assumem eficácia
transcendente.
4. Notas de Rodapé:
1. Em geral, o objeto do controle abstrato de constitucionalidade é ato
normativo, incluindo nesta idéia a lei, mas nada obsta que se analise ato concreto,
individualizado, nesta modalidade de controle, a exemplo do que sucede com a
ADPF, cujo objeto é ato do poder público que viole preceito fundamental.
2. NOVELINO, Marcelo. Formas de Declaração da Inconstitucionalidade.
Material da 4ª aula da Disciplina Direito Constitucional, ministrada no Curso
de Especialização TeleVirtual em Direito Público - UNISUL - REDE LFG.
3. Nesse sentido: NOVELINO, Marcelo. Formas de declaração de
inconstitucionalidade. São Paulo, 06 jun. 2008. Aula ministrada na Pós-Graduação
lato sensu da Rede de Ensino LFG/UNISUL.
4. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Transformações do recurso extraordinário apud
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª edição. São Paulo:
Saraiva: 2009. P. 186.
5. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª edição. São
Paulo: Saraiva: 2009. P. 185.
6. LIMA, Jonatas Vieira de. A tendência de abstração do controle difuso
de constitucionalidade no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11,
n. 1320, 11. fev.2007. Disponível em: http://jus.uol.com.br/. Acesso em:
17.maio.2008.
7. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Recurso extraordinário. Salvador-Ba, Rede de
Ensino Luiz Flávio Gomes, 10 out. 2006. Aula ministrada na Rede de Ensino LFG.
8. NOVELINO, Marcelo. Formas de declaração de inconstitucionalidade. São
Paulo, 06 jun. 2008. Aula ministrada na Pós-Graduação lato sensu da Rede de
Ensino LFG/UNISUL.
9. Op. cit.
10. MENDES, Anderson de Moraes. A abstrativização do controle de
constitucionalidade concreto. Disponível em http://www.lfg.com.br 30 maio. 2008.
11. Trata-se de mecanismo informal de modificação das normas
constitucionais, sem que o texto escrito seja afetado. Decorre de modificações
na forma de interpretar a Constituição.
12. MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de
constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional, RIL, 162/165
apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª edição. São Paulo:
Saraiva: 2009. P.187.
5. Referências Bibliográficas:
DIDIER JÚNIOR , Fredie. Recurso
extraordinário. Salvador-Ba, Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes, 10 out. 2006.
Aula ministrada na Rede de Ensino LFG.
LENZA , Pedro. Direito
Constitucional Esquematizado. 13ª edição. São Paulo: Saraiva: 2009. P. 185.
LIMA , Jonatas Vieira
de. A tendência de abstração do controle difuso de constitucionalidade no direito
brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1320, 11. fev. 2007. Disponível
em: http://jus.uol.com.br/. Acesso em: 17. maio. 2008.
MENDES , Anderson de
Moraes. A abstrativização do controle de constitucionalidade concreto.
Disponível em http://www.lfg.com.br 30 maio. 2008.
NOVELINO , Marcelo. Formas
de Declaração da Inconstitucionalidade. Material da 4ª aula da Disciplina
Direito Constitucional, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em
Direito Público - UNISUL - REDE LFG.
NOVELINO , Marcelo. Formas
de declaração de inconstitucionalidade. São Paulo, 06 jun. 2008. Aula
ministrada na Pós-Graduação lato sensu da Rede de Ensino LFG/UNISUL.
Autor: Daniel Costa Reis”
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