“SEGUNDA LEITURA
Direito e música é tema rico e pouco explorado
Por Vladimir Passos de Freitas é colunista da revista Consultor Jurídico, desembargador federal aposentado do TRF 4ª
Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
O estudo e o ensino do Direito ainda são feitos,
via de regra, de maneira tradicional. Muito embora o mundo se transforme em uma
velocidade jamais vista ou imaginada, as práticas jurídicas, em suas diversas
áreas e não apenas na judicial, persistem no uso de modelos antigos, muitas
vezes ultrapassados.
Mas o fato é que o ensino jurídico exige cada vez
mais criatividade e atualização dos professores. E um campo ainda inexplorado é
o da música. Com efeito, enquanto cinema e Direito vêm recebendo cada vez mais
atenção, a música é praticamente ignorada. Uma louvável exceção é a rádio da
UFMG que, em 6/9/2007, estreou o programa “Direito é música”.[i]
Com efeito, monografias de curso de graduação
(TCC), dissertações de mestrado e teses de doutorado fixam-se, quase sempre, em
temas amplamente debatidos. Direito do consumidor, função social da propriedade
e responsabilidade penal das pessoas jurídicas são alguns deles. Por vezes
repetindo e repetindo o que alguns falaram, sem nada acrescentar ou contribuir
para a reflexão dos leitores e para o aprimoramento da cultura jurídica.
No entanto, desconheço qualquer estudo sobre a
música popular brasileira e o Direito. E muito poderia ser estudado,
comparando-se letras de canções e a aplicação do Direito, inclusive fixando-se
os conceitos de época. Modinhas ingênuas de outrora poderiam hoje ser
consideradas crimes. Preconceito, discriminação, fatos antes graves e hoje
atípicos (v.g., adultério), tudo isto poderia merecer estudo aprofundado.
Vejamos alguns exemplos, seguindo a ordem
cronológica. Iniciemos por um homicídio passional, tendo por pano de fundo o
adultério. Aí está o mais antigo drama da humanidade, que perpassa séculos,
diferentes culturas e permanece até hoje.
A música “Cabocla Tereza”, 1940, da dupla Raul
Torres e João Pacífico,gravada por vários cantores,[ii] narra,
em linguajar caipira, mas com muita poesia e dramaticidade, a história do
caboclo que, surpreendido pela traição da amada, mata-a e se apresenta ao
delegado a quem conta todo o acontecido. Ela retrata a confissão do assassinato
e a simplicidade do homem interiorano do antigo Brasil rural. Termina com a
estrofe: “Agora que já me vinguei. É esse o fim de um amor. Esta cabocla eu
matei. É a minha história dotor.”
O direito de propriedade, como visto nos anos 50,
pode ser analisado na célebre música de Adoniram Barbosa, “Saudosa Maloca”
(1951). Em meio à demolição da casa, o cantor consola seus companheiros de
ocupação dizendo: “os homi ta cá razão nós arranja outro lugar”. Há aí um
conformismo e reconhecimento inquestionável da ordem judicial, fruto de uma
época em que o Direito de propriedade era absoluto.
O mesmo compositor e cantor, em 1967, na música “O
casamento do Moacir”, retrata um caso de bigamia. Na época, este crime, cuja
prova se limitava à juntada de duas certidões de casamento, geralmente
resultava em prisão. Agora, com a mudança de costumes e o reconhecimento
constitucional e legal da união estável, saiu de moda. Praticamente
desapareceu.
Em 1969, no início da proliferação das faculdades
de Direito privadas, Martinho da Vila lançou “O pequeno burguês”. A letra,
feita com inteligência e humor, revela o drama do bacharel que, mesmo
diplomado, não vê campo de trabalho à sua frente. Nesse sucesso do compositor
carioca ficou pela primeira vez explícita a perda de mercado de trabalho dos
advogados.
Naquele mesmo ano, Jorge Benjor, com “Charles anjo
45”, mencionava em música o domínio de um morro no Rio de Janeiro por um
condenado e que, após a sua prisão, o local se transformou em um inferno,
ansiando pela volta do preso para que a paz viesse a reinar. Aí está, em
música, registrada a ausência do Estado nos anos 1960, antevendo o que se
passaria anos depois, no caso em 2010, com a intervenção das Forças Armadas.
Chico Buarque, em 1974, com a música “Acorda amor”,
faz crítica severa ao sistema de segurança do regime militar, deixando a
mensagem que, em caso de uma invasão de sua casa pelas forças da repressão, ao
invés de chamar a Polícia melhor seria chamar o ladrão. Em outras palavras, as
garantias constitucionais, como a inviolabilidade de domicílio, estavam sem
amparo junto ao Poder Judiciário.
Ainda Adoniram Barbosa, em 1975, na música “Vide
verso meu endereço”, de forma poética narra a história de um jovem pobre que
ganhou uma cadeira de engraxate e que volta para agradecer ao seu benfeitor e
contar sua vida, inclusive que casou e tem três filhos, um de criação.
Certamente tirada de um caso verídico, sua relação com o Direito fica por conta
da solidariedade, hoje um princípio constitucional (CF, artigo 3º, inciso I). A
solidariedade revelou-se de duas formas: a) o personagem que amparou o mais
pobre, dando-lhe dinheiro para comprar a cadeira de engraxate; b) o que recebeu
a doação, o qual, reconhecido, volta para agradecer e informa que, além dos
seus dois filhos, tem outro de criação, prática antiga que dispensava as
formalidades da adoção.
Em 1988 Raul Seixas, o genial “maluco beleza”,
criou a música “A Lei”, na qual reivindica o direito de todos a fazerem a sua
própria lei, pensar, dizer, andar por onde quiser, sem passaporte ou
fronteiras. Na verdade, é um hino de liberdade contra a opressão do Estado.
Registre-se que esta música certamente nada tinha a ver com o regime militar,
pois o Brasil já vivia a democracia.
Ultimamente, algumas músicas no gênero rap ou funk
demonstram as novas frentes de conflitos urbanos. O “Rap das armas,” de Cidinho
e Doca, cantado no filme Tropa de Elite, do ano de 2007, desfia uma sucessão de
armas, como AR15, AK47 e granada, que seriam usadas em conflito pelo domínio de
morros no Rio de Janeiro.
Neste particular cumpre, ainda, observar que, vez
por outra, atribuem-se a letras de músicas o crime previsto no artigo 287 do
Código Penal, apologia de fato criminoso, cuja pena vai de três meses a seis
meses de detenção, ou multa. O fato é comentado, com exemplos, por Nilo Luis
Ramalho Vieira.[iii]
Como se vê, a música sempre exteriorizou aspectos
ligados ao Direito. E as referências foram se alterando à medida que o Brasil e
o mundo mudavam. Aprofundar estudos nesta área, através de seminários, artigos
ou trabalhos acadêmicos pode ser um prazer e um meio de enriquecimento da
cultura jurídica”.
[iii] http://apatrulhadalama.blogspot.com/2010/05/apologia-ao-crime-o-que-e-nilo-luis.html,
acesso 1.1.2011.
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