DIREITO COMPARADO: Portugal pode ser inspiração em controle de dívidas
“DIREITO COMPARADO
Portugal pode ser inspiração em controle de dívidas
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior: é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Na coluna da semana
anterior (clique aqui para ler),
examinou-se o tratamento jurídico dado ao superendividamento na França. Agora,
interessa analisar o recente Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de outubro, do
Governo da República Portuguesa, que instituiu diversas regras sobre o controle
da inadimplência, a gestão do risco de crédito e as relações entre instituições
financeiras e seus usuários, com o objetivo de controlar e permitir a saída do
estado de “sobre-endividamento”, como se denomina essa situação em Portugal.[1] Antes desse decreto-lei, a Portaria
nº 312/2009, de 30 de março, baixada pelo Ministério da Justiça português,
criou mecanismos protetivos para os sobre-endividados: a) nas execuções, nas
quais não houvessem sido encontrados bens penhoráveis, os executados
sobre-endividados poderia retirar seus nomes do registro público de execuções,
se aderissem a um “plano de pagamento elaborado por uma entidade específica e
enquanto o estiverem a cumprir”; b) nos processos de execução, “submetidos a
centros de arbitragem em que o executado seja uma pessoa em situação de
sobre-endividamento”, possibilitar-se-ia a suspensão do processo por meio de
acordo entre as partes, na hipótese de o executado “aderir a um plano de
pagamentos elaborado por uma entidade específica e enquanto o estiver a
cumprir”.[2]
Algumas das medidas
previstas no Decreto-Lei nº 227/2012 são conhecidas dos brasileiros, que já
experimentaram situações de crise do sistema financeiro nas décadas de 1980 e
1990, o que implicou uma significativa melhoria nos padrões regulatórios do
setor. Além disso, o Ministério da Justiça e o Banco Central do Brasil, por
meio de normas administrativas, introduziram regras de controle da atividade
financeira que, em certa medida, anteciparam as formulações portuguesas.
O Decreto-Lei nº
227/2012 possui um objeto específico: um rol de espécies contratuais, conforme
dispõe seu artigo 1o, destacando-se os “contratos de crédito para a
aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente,
secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para
construção de habitação própria”; os contratos de crédito hipotecários; os
contrato de crédito aos consumidores, regidos por legislação especial, exceto o
“contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o
direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato,
seja em documento autônomo”; os contratos de crédito ao consumo, regidos também
por normas específicas, “com exceção dos contratos em que uma das partes se
obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de
uma coisa móvel de
consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa
locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço
determinado ou determinável nos termos do próprio contrato” e os “contratos de
crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de
reembolso do crédito no prazo de um mês”.
A lei portuguesa
alude a “princípios gerais” (artigo 3o), conquanto mais se afeiçoem
ao conceito de deveres das instituições de crédito e dos consumidores, assim
resumíveis: a) as primeiras devem agir com “diligência e lealdade”, por meio da
prevenção da inadimplência, e envidar os melhores esforços para retirar os
devedores do estado de não cumprimento de suas obrigações; b) os clientes
bancários devem “suas obrigações de crédito de forma responsável e, com
observância do princípio da boa fé”, advertir antecipadamente o banco sobre o
risco eventual de incumprimento e cooperar para o êxito de soluções
extrajudiciais voltadas à extinção da dívida.
Nos artigos 5o a 7o do decreto-lei, há comandos no
sentido de que a instituições financeiras devem: a) prevenir o risco de
inadimplência; b) acompanhar a execução dos contratos; c) informar e alertar os
consumidores, na fase pré-negocial, sobre os riscos do endividamento excessivo e
relativamente aos procedimentos de regularização da inadimplência. As
renegociações (rectius, novações)
contratuais não podem dar margem à cobrança de comissões pelos bancos (art. 8o),
exceto os custos cartorários e fiscais.
Nesse quadro
normativo de prevenção e de informação da inadimplência, faz-se alusão a
“indícios de degradação da capacidade financeira do cliente bancário para
cumprir”, os quais, na definição legal, se caracterizam pelos seguintes
elementos (artigo 9o): a) a existência de dívidas não pagas com
restrito em cadastro creditício do Banco de Portugal (equivalente ao Banco
Central do Brasil); b) “a devolução e inibição do uso de cheques e
correspondente inserção na lista de utilizadores de cheque que oferecem risco”;
c) a condição de devedor fiscal (tributário e previdenciário); d) o estado de
insolvência; e) a resposta a processos judiciais; f) a penhora de contas
bancárias; g) “a verificação de incumprimentos noutros contratos celebrados com
a instituição de crédito”.
O modelo português
de controle de risco de inadimplência é esforçado em dois pilares: o PARI
(Plano de Ação para o Risco de Incumprimento) e o PERSI (Procedimento
Extrajuducial de Regularização de Situações de Incumprimento).
O PARI é
obrigatório para as instituições financeiras, no qual se descreverá
“detalhadamente os procedimentos e as medidas adotados para o acompanhamento da
execução dos contratos de crédito e a gestão de situações de risco de
incumprimento” (artigo 11). Segundo a Exposição de Motivos do decreto-lei, o
PARI serve para a detecção precoce dos já referidos “indícios de risco de
incumprimento” e para o “acompanhamento dos consumidores que comuniquem
dificuldades no cumprimento das obrigações” contratualmente assumidas e, por
último, para que sejam adotadas, da maneira mais célere possível, a medidas de
prevenção ao incumprimento contratual.
O PERSI é
extremamente complexo e possui diferentes fases, desde os “contactos
preliminares”, que deverão ocorrer no prazo máximo de 15 dias após o vencimento
da obrigação não paga e que consistem no dever de informar o cliente bancário
sobre o valor em débito e respectivos encargos. Nessa fase, o banco há de
“apurar as razões subjacentes ao incumprimento registrado” (art. 13o).
Divide-se o PERSI
em:
a) Fase inicial (artigo 14o). Se a dívida não for
paga, o cliente bancário será automaticamente “integrado” ao PERSI, “entre o
31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”. É
também obrigatório o início do PERSI pela instituição credora se o cliente bancário
tiver alertado para o risco de incumprimento ou se ele pedir sua integração ao
PERSI, quando já se encontrar em mora. Havendo mais de um contrato entre o
credor e o devedor, deve-se tentar a regularização em um único procedimento.
b) Fase de avaliação e proposta (art.15o). Nesta etapa, a instituição financeira avaliará se a situação do devedor
é transitória ou se reflete uma incapacidade permanente para honrar suas
obrigações. Há troca de informações e de documentos entre o banco e o cliente.
Após 30 dias de integração do devedor ao PERSI, a instituição é obrigada a
comunicá-lo sobre o resultado de sua avaliação, “quando verifique que o mesmo
não dispõe de capacidade financeira para retomar o cumprimento das obrigações
decorrentes do contrato de crédito, nem para regularizar a situação de
incumprimento, através, designadamente, da renegociação das condições do
contrato ou da sua consolidação com outros contratos de crédito, sendo inviável
a obtenção de um acordo no âmbito do PERSI”. A outra hipótese é apresentar ao
devedor propostas de regularização da dívida, o que poderá implicar a novação
de cláusulas, o alongamento do perfil do débito ou a consolidação da dívida em
um só negócio jurídico.
c) Fase de negociação (art.16o). Na hipótese de não haver sido aceita a proposta apresentada pelo banco,
instaura-se uma fase de negociações, com novas ofertas de acordo, se isso for
julgado possível.
A extinção do
PERSI, segundo o artigo 17o, poderá ocorrer em razão de diversas
hipóteses: a) o pagamento integral da dívida; b) a extinção, por qualquer
causa, da obrigação; c) a novação obrigacional; d) o decurso de 90 dias, desde
a inserção do devedor no PERSI, salvo acordo que prorrogue o procedimento; e) a
insolvência do cliente bancário.
Se os bens do
devedor forem arrestados ou penhorados por terceiros, a instituição financeira
é autorizada a extinguir unilateralmente o PERSI, bem assim se houver nomeação
de administrador judicial provisório, caso em que o devedor é considerado
insolvente. Outras razões podem autorizar idêntico expediente, como a ausência
de colaboração do devedor ou a comprovada impossibilidade de pagar suas
dívidas, considerado seu estado econômico-financeiro.
Uma preocupação
especial do Decreto-Lei nº 227/2012 é com a situação jurídica do fiador, o qual
deverá ser informado, “no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da
obrigação em mora, do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida” (artigo
21o). O fiador tem direito a ser integrado ao PERSI, caso assim
prefira.
Esse novo texto
normativo português é bastante complexo e prevê uma série de deveres
institucionais, que demandarão ajustes nas instituições financeiras, na
fiscalização pelo Banco de Portugal e uma mudança de cultura na contratação de
serviços bancários. O excesso de regras e a estrutura colaborativa dos
procedimentos instituídos podem dar causa à baixa eficácia dessa lei de
prevenção ao superendividamento.
É extremamente
importante comparar a opção legislativa portuguesa com o projeto de reforma do
Código de Defesa do Consumidor, apresentado ao Senado Federal, que contempla o
superendividamento. A alteração brasileira é conforme a portuguesa no que se
refere à imposição de deveres informativos e à criação de um modelo
colaborativo para se evitar ou minimizar os efeitos do superendividamento. No
entanto, é o caso de se pensar se o tratamento mais analítico da lei portuguesa
não seria o ideal, o que implicaria a necessidade de se pensar em uma norma
específica sobre o tema ora examinado. Acompanhar os primeiros sucessos (ou
insucessos) do Decreto-Lei nº 227/2012 é uma boa providência.
De qualquer sorte,
alguns representantes do Direito Consumidor em Portugal, como Carlos Ferreira
de Almeida, catedrático da Universidade Nova de Lisboa, têm advertido para uma
“nova era” de controle de oferta de crédito. Segundo esse professor, que
proferiu palestra no I Encontro Luso-Brasileiro de Direito, em Lisboa, não se
pretende com essas novas medidas legislativas aumentar a proteção aos
consumidores, mas proteger o sistema bancário e expulsar os usuários com baixa
capacidade de pagamento. Não parece ser esse o caso do Brasil. Aqui ainda se
está em busca de uma atuação regulatória eficiente, de caráter preventivo e
administrativo, capaz de reduzir sensivelmente a judicialização dos contratos
bancários, das relações de consumo na área de serviços de telecomunicações e do
transporte aeronáutico.
[1] A íntegra da nova
lei portuguesa sobre o superendividamento pode ser encontrada em:http://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20700/0602506033.pdf. Acesso em
14de fevereiro de 2013.
[2] Disponível em http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/portarias-n-331-a-2009-e/downloadFile/attachedFile_2_f0/P_312_2009.pdf?nocache=1238517440.22.
Acesso em 14 de fevereiro de 2013.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2013”
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