Masami Yoshizawa voltou para a fazenda que tem na zona radioativa de Namie, Japão, e alimenta animais deixados para trás depois do desastre na usina

"Como protesto contra o governo, japonês salva vacas radioativas de Fukushima

Masami Yoshizawa voltou para a fazenda que tem na zona radioativa de Namie, Japão, e alimenta animais deixados para trás depois do desastre na usina

Como protesto contra o governo, japonês salva vacas radioativas de Fukushima Ko Sasaki/NYTNS
Uma visita ao médico logo após o acidente mostrou altos índices de césio radioativo no corpo de MasamiFoto: Ko Sasaki / NYTNS
Martin Fackler http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/mundo/noticia/2014/01/como-protesto-contra-o-governo-japones-salva-vacas-radioativas-de-fukushima-4398740.html. Acesso: 25/1/2014
 
O protesto desse homem, em Namie, Japão, deve ser um dos mais quixotescos do mundo.

Revoltado com o que considera uma tentativa do governo japonês de eliminar as verdades inconvenientes sobre o desastre de Fukushima, Masami Yoshizawa voltou para a fazenda que tem na zona radioativa, verdadeira terra de ninguém que cerca a usina destruída. Obviamente não possui vizinhos, mas o que não lhe falta é companhia: centenas de vacas abandonadas que jurou proteger da ordem de abate das autoridades.

Uma escavadeira imensa (para manter os tecnocratas do Ministério da Agricultura afastados) fica no portão, rebatizado de Rancho da Esperança, feito uma sentinela, protegendo a entrada em que também se veem ossos e placas de protesto escritas à mão.

"Deixem as vacas do Esperança viverem!", diz uma delas. Outra, escrita sobre um crânio pintado de amarelo, declara: "Rebelião Nuclear!" Dentro do sítio, agora superlotado, as vacas reclamonas enchem os galpões e se espalham pela pastagem e pelo quintal da sede bem iluminada.

— Elas são a prova viva da insanidade humana ocorrida em Fukushima. Eles querem matar todas porque querem apagar o que houve aqui, como se assim tudo voltasse a ser o que era antes da tragédia. Mas não vou deixar — diz Masami, um homem de 59 anos meio rude, mas eloquente, e com um histórico de brigas compradas contra o governo.

Não que Masami seja sentimentalista; afinal, antes do desastre, criava gado para o abate, mas alega haver uma diferença bem grande entre matar para comer e matar porque, como estão contaminadas, não são mais úteis. E acredita que os animais de sua fazenda, assim como a de outros criadores que fugiram, são tão vítimas quanto as 83 mil pessoas forçadas a abandonarem suas casas e viverem fora da zona de evacuação durante 2,5 anos.

Ele está preocupado com a saúde. Um medidor perto da casa mostra o equivalente a 1,5 vez o valor estipulado pelo governo para a retirada geral. No entanto, o que mais lhe enche de medo é que o país esqueça as três crises nucleares na usina — já que a economia japonesa começa a dar sinais da tão esperada recuperação e Tóquio, toda animada, se prepara para as Olimpíadas de 2020 — o que sugere que seu protesto seja não só uma manifestação política, mas também humanitária.

— Se as autoridades mandam matar as vacas, ou vou lá e faço exatamente o contrário — afirma ele.

Os animais do Rancho da Esperança são tudo o que restou de um setor agropecuário próspero nas cidadezinhas ao redor da usina.

Rebanhos inteiros morreram de fome nas semanas posteriores à saída dos moradores. As vacas que sobreviveram fugiram das propriedades onde viviam para buscar alimento nas casas e ruas vazias, onde viraram uma ameaça para os caminhões que levavam funcionários e suprimentos de/para a estrutura danificada. Alegando que os animais eram "entulhos ambulantes", funcionários do Ministério da Agricultura exigiram que fossem reunidos e sacrificados, os corpos enterrados ou incinerados junto com o resto do lixo radioativo.

Indignado, Masami começou a voltar para o sítio logo depois dessa ordem para alimentar o que restara de seu rebanho — até que decidiu ficar de vez e transformar a propriedade em um refúgio para todas as vacas abandonadas. Das aproximadamente 360 que estão no terreno de mais de 32 hectares, mais da metade é de outros proprietários que simplesmente as largaram para trás.

Embora descreva seu protesto principalmente em termos políticos, sua explicação para o retorno, apesar dos perigos, não deixa de ter um toque de emoção — e descreve seu horror ao visitar as fazendas abandonadas onde descobriu fileiras e mais fileiras de animais mortos, as cabeças caídas dentro dos comedouros onde aguardavam ser alimentados. Em um galpão, um bezerro recém-nascido mugia perto da mãe morta; Masami nem piscou para resgatar o pequeno, a quem batizou de Ichigo, ou Morango e que, segundo ele, foi a inspiração para tentar salvar os que ficaram para trás.

Ele ainda sai pela zona de evacuação em busca de sobreviventes, animais macilentos que têm que ser puxados pelas orelhas para segui-lo — e tenta como pode desviar dos bloqueios policiais, pois é tecnicamente proibido viver na zona de evacuação. Entretanto, já foi pego várias vezes e forçado a assinar um termo no qual se desculpa por ter entrado em perímetro proibido, mas que na verdade não representa nada, pois sempre promete que não vai repetir a "infração".

Masami já desafiou as autoridades antes, também com protestos nucleares, mas se sente particularmente mal em relação a Fukushima, pois teme que as consequências possam destruir a propriedade que herdou do pai.

Não ajuda muito o fato de sua cidade, Namie, ter se sentido abandonada pelos próprios líderes. Após ouvir as explosões na usina — cuja fumaça e guindastes podem ser vistos de sua cozinha — ele e muitos outros acabaram fugindo da nuvem de radioatividade porque o governo nunca revelou informações cruciais sobre o acidente.

— Eu precisei encontrar um novo motivo para continuar vivendo. Aí parei para pensar: 'Por que as pessoas estão tão apáticas e aceitam tudo o que o governo lhes diz?' E decidi me tornar a resistência — conta Masami, que não é casado e vive só.

Recentemente, em uma manhã fria, Masami usava uma pequena escavadeira para movimentar fardos de arroz amarelo para alimentar as vacas em um volume duas ou três vezes maior que seu sítio pode suportar. Os animais, da raça conhecida como Japanese Black, famosa pela carne marmorizada no estilo wagyu, mugiam, famintas, enquanto tentavam abocanhar alguma coisa.

Masami confessa que um de seus temores é ficar sem comida. Com o rebanho inchado, que já pastou tudo o que era possível das redondezas, ele depende de contribuições de alimento e dinheiro. Outro medo é o que a contaminação pode estar fazendo às vacas.

Uma visita ao médico logo após o acidente mostrou altos índices de césio radioativo no corpo de Masami, mas ele garante que esse número vem caindo há maios de dois anos — e tenta manter a contaminação ao menor nível possível, usando sempre água filtrada e comprando comida produzida em outras regiões.

Já as vacas estão constantemente ingerindo o material radioativo do solo — e como todo o alimento doado é da região, a contaminação é inevitável.

Na cabeça e nas ancas de dezenas delas apareceram pequenas manchas brancas que ele acredita serem resultado da exposição à radiação. Os especialistas dizem que nunca viram essas marcas antes, mas não descartam outras causas, incluindo uma infecção que pode ser causada por fungos, resultante da superlotação.

Com tudo isso, Masami atraiu uma pequena legião de simpatizantes, mas não deixa de ter também críticos que alegam que ele mantém os animais vivos em condições desumanas como manifestação política.

— Considerando a concentração dos animais, não acho que ele esteja sendo muito humanitário — afirma Manabu Fukumoto, patologista do Instituto do Desenvolvimento, Envelhecimento e Câncer da Universidade de Tohoku, que foi quem estudou as manchas brancas.

Masami rebate dizendo que as vacas estão vivendo muito mais do que se tivessem sido levadas para o abate.

Por enquanto, as autoridades locais criaram uma solução bem japonesa para a rebeldia de Masami: fazer vista grossa. Funcionários da prefeitura de Namie afirmam desconhecer o fato de que ele ou qualquer outra pessoa vivam na zona de evacuação — apesar do fato de a eletricidade e o telefone terem sido religados no sítio.

Não é fácil ignorar Masami; ele continua a aparecer na imprensa nacional, mantém um blog com imagens ao vivo e, de vez em quando, faz protestos solitários na frente da sede da operadora da usina, a Tepco (Tokyo Electric Power Co).

— Nem todos os japoneses são passivos. Eu e minhas vacas vamos mostrar que ainda há espaço para a mudança — conclui ele.
THE NEW YORK TIMES SERVICE

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