“30/09 –PRESSUPOSTOS DO ATO ADMINISTRATIVO – VÍCIOS, ANULAÇÃO, REVOGAÇÃO E CONVALIDAÇÃO EM FACE DAS LEIS DE PROCESSO ADMINISTRATIVO
Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro (Mestre e Doutora em Direito Administrativo pela USP)


Eu começaria agradecendo, especialmente, ao Dr. Antonio Carlos Caruso, pela honra do convite, para vir falar nesse I Seminário de Direito Administrativo do Tribunal de Contas do Município. Fico honrada com a presença dos Senhores Conselheiros e especialmente grata pelas palavras generosas com que eu fui apresentada. Só para ouvir essas palavras, já valeu a pena a minha vinda até o Tribunal.

O meu tema é Pressupostos do Ato Administrativo – Vício, Anulação, Revogação e Convalidação em face das Leis de Processo Administrativo. Foi dito na apresentação que eu participei do grupo que elaborou o Projeto da Lei Federal que dispõe sobre processo administrativo e, realmente, eu participei, embora, de certa forma, fosse contra a elaboração de uma Lei de Processo Administrativo, porque, na realidade, eu acho que a lei, nessa parte processual, praticamente absorve muita coisa ou quase tudo que já estava na doutrina, com exceção de algumas coisas mais específicas, como as referentes a prazo; quer dizer, tudo o que consta da lei já se fazia na prática. No entanto, fiquei bastante aliviada com a presença do Professor Caio Tácito, que presidiu o grupo. Ele optou por fazer uma norma de caráter bem geral, sem descer a muitos detalhes, exatamente para evitar o excesso de formalismo dentro da Administração Pública.

À medida que for explanando, eu vou mencionando a maneira como a matéria está disciplinada na Lei Federal e na Lei Estadual. A Lei Estadual já é um pouco mais detalhada do que a Federal, embora seja uma lei boa também.

Aliás, aqui no Direito Brasileiro, eu diria que todo nosso Direito Administrativo começou antes na doutrina e depois passou para o direito positivo, porque nós construímos o nosso Direito Administrativo a partir do Direito Francês, que é de formação jurisprudencial. Mas, nós copiamos os princípios, copiamos as teorias, copiamos a doutrina e aos poucos fomos pondo no direito positivo, hoje nós temos quase tudo no direito positivo.

Se formos pensar, por exemplo, na matéria de Contrato, antes do Decreto-Lei 2.300 não havia, na esfera federal, uma lei tão ampla estabelecendo normas sobre a matéria. No entanto, tudo aquilo que foi posto no Decreto -Lei 2.300, e que hoje está na Lei 8.666, já se encontrava nos livros de doutrina. Todas aquelas cláusulas exorbitantes, a matéria das teorias do fato do príncipe, da imprevisão, tudo isto já era doutrina. A lei apenas absorveu aquilo que era doutrina e transformou em direito positivo.

É muito semelhante o que está acontecendo em relação ao ato administrativo. Quer dizer, aquilo que está na lei é, em grande parte, aquilo que era já anteriormente aplicado.

Eu vou começar falando alguma coisa a respeito do próprio conceito de ato administrativo, porque não existe um critério muito uniforme para definir o ato administrativo. Dependendo do ponto de vista que se adote, nós podemos definir o ato administrativo como todos os atos praticados pela Administração Pública; ou, adotando um conceito mais restrito, nós vamos excluir do conceito uma série de atos que a Administração pratica.

Eu opto por um conceito restrito e, por isso, que não têm natureza de ato administrativo, propriamente dito, os atos de direito privado, praticados pela Administração Pública, porque eles não estão sujeitos ao regime jurídico tipicamente administrativo. Eles se submetem ao direito privado e apenas parcialmente ao direito público.

Também não considero como atos administrativos, os atos de conhecimento, atos que são meramente enunciativos, como os atestados, as certidões, os votos, porque são atos que, sozinhos, não produzem efeito jurídico. Eu acho que a produção de efeito jurídico é essencial para o conceito de ato administrativo, assim como acontece no direito privado.

Excluo, também, os atos políticos do conceito de ato administrativo, pelo fato de que os atos políticos estão submetidos a um regime constitucional.

Excluo os contratos do conceito de ato administrativo e isto é bem diferente do que acontece no direito privado, porque no direito privado nós vemos que os atos, hoje chamados de negócios jurídicos, são unilaterais ou bilaterais; o contrato seria modalidade de ato jurídico. No âmbito do direito administrativo, falar em ato administrativo é falar em ato unilateral, porque o ato administrativo tem alguns atributos que não aparecem no contrato, especialmente os atributos da imperatividade e da auto executoriedade, que não existem no contrato administrativo. Não podemos dizer que o contrato seja modalidade de ato se ele tem características diferentes.

Excluo, também, do conceito de ato administrativo, os atos normativos da Administração Pública, como os regulamentos, as resoluções, as portarias, Eu diria que o ato administrativo é hierarquicamente subordinado aos atos normativos, mas, ele tem um regime jurídico próprio. Por exemplo, quanto à impugnação, nós não podemos recorrer de um ato normativo como podemos recorrer de um ato administrativo. Não podemos ir a juízo para impugnar um ato normativo, a não ser por via de ADIN. Os atos administrativos podem ser impugnados individualmente, por qualquer cidadão.

Num conceito assim bem restrito, eu diria que o ato administrativo é uma declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, sob regime jurídico de direito público, sujeita à lei e ao controle pelo Poder Judiciário.

Note-se que eu não conceituo como ato da Administração e sim como ato do Estado, porque os três Poderes podem praticar atos administrativos, dentro da idéia de que cada qual exerce predominantemente uma função, mas exerce acessoriamente as funções dos demais. Nós temos que reconhecer que todos os Poderes, praticam atos administrativos; daí eu falar que o ato administrativo é uma declaração do Estado ou de quem o represente, porque qualquer particular que esteja agindo no exercício de uma função administrativo, a qualquer título, pratica atos administrativos. Nós podemos pensar no pessoal dos cartórios extrajudiciais que praticam atos tipicamente administrativos dotados da mesma fé pública que têm os atos da Administração.

Continuando o conceito, o ato administrativo produz efeitos jurídicos imediatos. A produção de efeitos jurídicos constitui característica essencial ao ato administrativo, considerado em sentido restrito. Produzir efeitos jurídicos significa criar, extinguir, transformar direitos. E imediatos, porque os efeitos se produzem no caso concreto. Com essa afirmação, ficam afastados do conceito de ato administrativo os atos normativos, porque produzem efeitos gerais e abstratos.
Quando digo que o ato administrativo se submete a regime jurídico de direito público, eu afasto os atos de direito privado da Administração. Quando digo que ato administrativo está sujeito a controle pelo Poder Judiciário, estou distinguindo da sentença judicial, que também produz efeitos jurídicos no caso concreto e também se sujeita à lei.

Com relação aos pressupostos do ato administrativo, eu começaria fazendo uma observação sobre a própria palavra pressuposto. Alguns autores preferem falar em elementos do ato administrativo, outros falam em requisitos. O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello é que gosta de falar em pressupostos, em um tratamento todo diferenciado dado à matéria. Eu falo em elementos e em requisitos. Elementos seriam as condições de existência do ato; no direito privado, são elementos o sujeito, o objeto e a forma. Requisitos são as condições de validade. Desse modo, quando falamos em agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei, estamos falando nos requisitos de validade.

Na realidade, a terminologia – elemento, requisito ou pressuposto – é meio irrelevante, porque o que importa é analisar cada um desses elementos e requisitos de validade. Eu opto por essa terminologia, porque ela está consagrada no direito positivo brasileiro, em especialmente na Lei de Ação Popular – Lei nº 4.717/1965. No artigo 2º, ela define os vícios dos atos administrativos e fala nos cinco elementos do ato: competência, objeto, forma, motivo e finalidade. Nos parágrafos do mesmo dispositivo, a lei define os vícios de cada um dos elementos.

Portanto, essa é a terminologia que adoto, com uma ressalva quanto à indicação da competência entre os elementos; na realidade, a competência é um atributo ou um requisito de validade do sujeito. Por isso, eu prefiro falar em sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade como elementos do ato administrativo.

Eu queria chamar a atenção para o fato de que, no direito privado, fala-se apenas em três elementos: sujeito, objeto e forma, enquanto no direito administrativo existem dois elementos a mais, que são o motivo e a finalidade. Esses dois elementos passaram a ser vistos como elementos do ato administrativo exatamente para permitir a ampliação do controle do Poder Judiciário sobre os atos da Administração Pública. Inicialmente, só se admitia o controle judicial sobre o sujeito, o objeto e a forma. Não se admitia, por exemplo, que o Judiciário examinasse os fatos, para verificar se existiram ou não, se eles têm ou não têm fundamento legal, porque se entendia que a apreciação dos fatos é matéria de apreciação discricionária da Administração Pública. Para ampliar o controle, elaborou-se a teoria dos motivos determinantes e se passou a aceitar que o Judiciário possa examinar o motivo. Daí a razão pela qual o motivo hoje é considerado um elemento do ato administrativo.

A mesma coisa aconteceu com relação à finalidade. Inicialmente se entendia que a finalidade, a intenção com que o ato é praticado, é alguma coisa que diz respeito à moral e, portanto, ficava fora do controle judicial. Com a teoria do desvio de poder, passou-se a admitir ao Judiciário examinar a finalidade do ato, que passou a ser considerada elemento do ato administrativo.

Examinando, separadamente, cada um dos elementos, pode-se afirmar, em primeiro lugar, que, com relação ao sujeito, são diferentes os requisitos de validade do ato administrativo, quando comparado com os atos de direito privado. Com efeito, no direito privado, o requisito de validade é a capacidade do agente. No direito administrativo, exige-se capacidade também, mas principalmente se exige competência, entendida como uma atribuição outorgada por lei. A competência tem que ser analisada em relação a três aspectos: em primeiro lugar, em relação à pessoa jurídica, para definir se a competência é da União, dos Estados ou dos Municípios; a distribuição de competência, no caso, consta da Constituição Federal. Em segundo lugar, a competência tem que ser analisada em relação aos órgãos administrativos; dentro de cada pessoa jurídica, a Administração Pública é organizada, estruturada, por meio de lei, com a distribuição de competências entre os vários órgãos que compõem a estrutura administrativa. Finalmente, a competência tem que ser vista em relação ao agente público a que a lei confere a atribuição.

Toda a competência decorre de lei. Porém, às vezes, ocorre uma omissão legislativa. Havia uma grande dificuldade, quando eu trabalha na Procuradoria do Estado, quando surgia essa pergunta: quem é competente para praticar determinado ato quando a lei é omissa? Eu adotava o entendimento de que, na omissão da lei, o competente é o Chefe do Executivo, porque ele congrega todas as competências da Administração Pública. Tudo aquilo que não foi outorgado a nenhum órgão é da competência do Chefe do Poder Executivo.

Na lei federal de processo administrativo, foi adotada outra norma, no artigo 17: inexistindo competência legal específica, o processo administrativo deverá ser iniciado perante a autoridade de menor grau hierárquico para decidir. Como a norma consta da lei federal, só aplicável à União, continuo a entender que nos Estados e Municípios, continua a aplicar-se o entendimento de que, na omissão da lei, a competência é do Chefe do Poder Executivo.

A competência tem alguns requisitos. Em primeiro lugar, ela decorre da lei. Quando se fala em lei, nesse caso, tem-se em vista lei como ato legislativo; não há possibilidade da competência ser definida por via de decretos, portarias, resoluções, a não ser que se trate de uma distribuição interna de competências, que produz efeitos apenas internamente.

Além de prevista em lei, a competência é irrenunciável ou é inderrogável pela vontade da Administração ou de terceiros. Isto porque a competência é dada à autoridade pública para ser exercida no interesse público e não no interesse da própria autoridade. Ela não pode deixar de exercer uma competência, porque todos os poderes da Administração são irrenunciáveis. A Administração não pode deixar de punir se verificou uma infração, não pode deixar de apurar um fato se teve denúncia de irregularidade, não pode deixar de exercer o poder de polícia, porque são poderes outorgados em benefício do interesse público. A omissão no exercício do poder, hoje, caracteriza ato de improbidade, quando não caracteriza crime contra a administração.

Outra característica da competência é que ela é delegável, a não ser que se trate de competência outorgada com exclusividade para determinado órgão ou autoridade. Por exemplo, a Constituição Federal, no artigo 84, prevê as competências privativas do Presidente da República e, no parágrafo único, diz quais as competências que podem ser delegadas. São apenas quatro; todas as demais são indelegáveis.

Na esfera federal, a Lei de Processo Administrativo contém uma norma no artigo 11, segundo a qual a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação, legalmente admitidos. Depois, no artigo 12, diz que um órgão administrativo e seu titular poderão, se nãop houver impedimento legal, delegar parte da sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que esses não lhe sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica e territorial. Parece estranha essa possibilidade de delegar competência a uma autoridade que não esteja hierarquicamente subordinada àquela que faz a delegação. Isto contraria o próprio conceito de hierarquia da Administração Pública, mas está previsto na lei. A lei estadual não previu essa possibilidade e cuida da matéria no artigo 19, permitindo a delegação, salvo proibição legal e, no artigo 20, diz quais são as hipóteses em que a delegação não pode ser feita. Por exemplo, não pode ser delegada competência normativa, não pode ser delegada competência política. 

A possibilidade de avocação também é uma característica da competência. O artigo 15 da Lei federal restringiu a possibilidade de avocar, só permitindo, em caráter excepcional e por motivos relevantes, devidamente justificados, porque a avocação é sempre sentida pelo servidor quase como uma punição. A Lei estadual limita-se a permitir a avocação e não prevê nenhuma restrição.

Com relação aos vícios relativos ao sujeito, eu diria que um deles é a incapacidade. Existe um entendimento defendido por parte da doutrina, no sentido de que, quando o ato é vinculado, a incapacidade ou capacidade do agente é irrelevante. Uma vez até caiu uma pergunta em um concurso de Procurador do Estado. A hipótese era a seguinte: um servidor requereu a aposentadoria compulsória e teve seu pedido deferido; depois se descobriu que a autoridade que concedeu a aposentadoria era louca, literalmente louca. Daí a pergunta: o ato é válido? É nulo? É anulável? É convalidável? A resposta considerada certa era a de que aquele ato era válido, porque se adotou o entendimento de que, no ato vinculado, como é o caso da aposentadoria compulsória, a capacidade do agente é irrelevante, porque a aposentadoria teria que ser concedida obrigatoriamente.

Eu já acho que, mesmo para os atos vinculados, a capacidade é relevante; naquele caso específico houve coincidentemente o deferimento do pedido. E se o pedido tivesse sido indeferido? Entendo que a decisão tinha obrigatoriamente que ser revista por uma autoridade capaz, para verificar se o ato está ou de acordo com a lei. Não é porque se trata de ato vinculado que o louco vai caminhar para a solução correta. No caso, eu consideraria esse ato anulável e convalidável.

O outro vício relativo ao sujeito é a incompetência, que é o vício mais comum, que ocorre quando a autoridade pratica o ato sem ter competência legal para praticá-lo. Dentro dessa modalidade, existem várias possibilidades. Além dessa simples incompetência, existe a hipótese de usurpação de função, que é um crime previsto no artigo 328 do Código Penal. Nesse caso, o ato é praticado por que não tem a condição de servidor público de nenhuma espécie. Ele simplesmente se apossou do exercício de um cargo público e praticou um ato qualquer. Esse ato é ilegal ou, segundo alguns, é inexistente.

Outro vício, ainda relativo à competência, seria o excesso de poder, que ocorre quando a autoridade vai além daquilo que ela teria competência para praticar. Por exemplo, ela só pode aplicar a pena até de suspensão, mas aplica a pena de demissão. Outro exemplo é o do policial que se excede no uso da força. Ele tem competência para atuar, mas se excede no uso dos meios que a lei lhe dá para atingir os fins de interesse público. No caso de excesso de poder, existem algumas hipóteses que são previstas como crime de abuso de autoridade na Lei 4.898, de 1965.

Outra irregularidade, ainda com relação ao sujeito, é o chamado exercício de fato da função pública. O exercício de fato (que permite falar em funcionário de fato, em oposição ao funcionário de direito) seria a prática do ato por pessoa que está investida em cargo, função ou emprego público, mas existe uma irregularidade na sua investidura. Por exemplo, o servidor precisava ter nível superior e não tem; ou foi nomeado para cargo inexistente; ou continua a trabalhar após completar 70 anos de idade. Em todos esses casos, existiu o ato de investidura, porém de alguma forma a situação contraria a lei.

A grande peculiaridade desse vício é que ele não acarreta necessariamente a invalidação do ato. Embora praticado por uma pessoa que não está regularmente investida, o ato é considerado válido, em respeito à boa-fé do terceiro beneficiário do ato. Apenas no caso de má-fé do terceiro é que o ato vai ser invalidade.

A Lei federal previu ainda dois vícios de incapacidade que seriam o impedimento e a suspeição, que não estão previstos na lei estadual, mas ainda assim podem ser aplicados, até por analogia com o direito judiciário. Quando uma pessoa, que seja impedida ou que seja suspeita, pratica um ato, na realidade, há uma certa infringência ao princípio da moralidade e ao princípio da impessoalidade. O impedimento traz uma presunção absoluta, que não admite prova em contrário, tanto que, se a pessoa impedida praticar o ato, diz a lei que ele pratica falta grave, para efeitos disciplinares. Seria o caso da pessoa que tem interesse direto ou indireto na matéria, que tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parentes afins até o terceiro grau e, ainda, quando ele esteja litigando, judicial ou administrativamente, com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro. Tais situações caracterizam impedimento absoluto".

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