“Autor: ANTÔNIO ALBERTO MACHADO, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo e professor livre-docente do curso de direito da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca-S



Posted on June 20, 2012
As técnicas de investigação e de prova criminal experimentaram uma verdadeira revolução com o desenvolvimento da biotecnologia, sobretudo, diante da possibilidade de identificação de criminosos e esclarecimentos de crimes por meio dos caracteres genéticos. A colheita e análise dos dados genéticos a partir de vestígios humanos encontrados no cenário do crime – pelos, sangue, saliva, esperma, tecido de pele etc. –, têm-se confirmado como meio eficaz de prova também no processo penal.
A prova pelo DNA visa, basicamente, ao esclarecimento da autoria do crime. Ela é realizada pela identificação de uma sequência de bases nitrogenadas no interior da molécula do ácido desoxirribonucleico (DNA), cuja disposição (ordem sequencial) é diferente e única para cada indivíduo, exceto nos casos de gêmeos univitelinos em que essa sequência de bases é praticamente igual.   
1. Identificação genética
A Lei nº 12.654/12 introduziu no processo penal brasileiro a possibilidade da identificação criminal pelo exame do DNA, bem como a manutenção de um banco destinado a armazenar perfis genéticos dos criminosos. Por força dessa lei, que alterou o art. 5º da Lei nº 12.037/09, a identificação criminal poderá ser feita por meio da análise de material biológico com o objetivo de identificar o suposto autor do crime e definir o perfil genético do identificado. Trata-se, portanto, de analisar e estabelecer a sequência de bases no interior da molécula de DNA que constitui o código genético de cada indivíduo. Esse código, ou “impressão genética”, deverá ficar constando de um banco de perfis genéticos gerenciado por um órgão de perícia criminal (art. 5º-A da Lei nº 12.037/09).
O banco de dados contendo os perfis genéticos dos identificados criminalmente tem caráter sigiloso e não poderá armazenar caracteres somáticos ou traços comportamentais das pessoas. Esses traços estão protegidos pelo direito à intimidade e à confidencialidade dos dados genéticos. Logo, o banco de perfis deve armazenar apenas informações sobre a identidade genética da pessoa, definida pela sequência das bases nitrogenadas presentes nas moléculas de DNA. Os dados identificadores, quando constatada a coincidência no curso de uma investigação, deverão constar de um laudo firmado por perito oficial (art. 5º-A, §§ 2º e 3º) e serão excluídos do banco de perfis assim que terminar o prazo de prescrição do crime.
A identificação criminal genética é uma providência muito especial, tanto que somente será levada a efeito no âmbito do inquérito por meio de ordem judicial (art. 5º, IV da Lei nº 12.037/09), e mesmo assim, apenas quando ela for essencial às investigações policiais. Portanto, a identificação por meio do material genético do indiciado, ao contrário da identificação digital e fotográfica, não é uma providência corriqueira nem automática, a ser realizada rotineiramente dentro do inquérito. Não se trata, pois, de simples medida burocrática de identificação pessoal, mas, isto sim, de providência investigatória  destinada à identificação do autor do crime. Tanto é verdade que a perícia genética somente será realizada quando for “essencial à investigação”, isto é, quando for indispensável ao esclarecimento da autoria do crime, o que a qualifica como um autêntico elemento de prova, e não simples identificação da pessoa.
Assim, enquanto a identificação dactiloscópica e fotográfica são partes da providência de qualificação do indiciado no inquérito, a identificação genética é medida investigatória, isto é, medida destinada a coletar prova. Não se pode, portanto, estabelecer nenhuma similitude entre a identificação criminal pela fotografia ou pela impressão digital, que são meios normais de identificação das pessoas (inclusive civilmente), com a identificação genética pelo DNA, que é medida destinada a apurar a autoria do delito. A perícia genética é, pois, um autêntico meio de prova, e não simples identificação de indiciados e réus.
Por isso, enquanto os indiciados em geral estão obrigados a se submeterem à identificação criminal pelos meios normais (fotografia, impressões digitais e exibição de documentos de identidade), não poderão, no entanto, ser obrigados a fornecer material biológico para exame de DNA, e isto em face do princípio da não autoincriminação, segundo o qual ninguém está obrigado a produzir nem colaborar com a produção de provas contra si próprio. Aliás, pelo princípio da ampla defesa, se o indiciado não se dispuser a participar espontaneamente da produção de prova genética, não há como constrangê-lo ao fornecimento de material biológico para exame do próprio DNA.
Não há dúvida de que esse meio de prova, largamente utilizado no âmbito civil em ações de investigação de paternidade, e cujo valor probante desfruta de grande prestígio, pode ser utilizado também no processo penal. Mas, os suspeitos e acusados não têm a obrigação legal de fornecer material genético para a realização de perícias que possam incriminá-los. Assim é por força do princípio constitucional de inocência presumida e do direito de não produzir prova contra si mesmo, este último expresso no aforismo latino nemo tenetur se detegere.
 Além do que, se a identificação pelo DNA é um meio de prova, determinado por ordem judicial, então é providência que deve ser realizada em contraditório, isto é, com a efetiva participação do indiciado e seu defensor, aos quais deve ser facultado o direito de acompanhar a perícia, de indicar perito assistente, de formular quesitos e, se for o caso, de requerer nova perícia, aplicando-se por analogia o art. 156, I e art. 225 do CPP que disciplinam a produção antecipada de prova.  
Por outro lado, é preciso refletir também sobre as consequências éticas decorrentes do uso da biotecnologia, já que as informações sobre dados genéticos têm profundas implicações com as liberdades fundamentais do indivíduo, especialmente no que concerne ao seu direito à privacidade ou intimidade. São absolutamente fundados os receios de que o armazenamento de dados genéticos, em um banco destinado à identificação de indivíduos, possa favorecer a discriminação, sobretudo, quando tais dados revelarem alguma predisposição a doenças, dificultando, por exemplo, a colocação do indivíduo no mercado de trabalho, a contratação com empresas de seguro ou de previdência privada, a seleção para determinados cargos ou postos no serviço público etc. 
Muito embora possam ser mesmo utilizados como meio de prova no campo criminal, é preciso frisar, no entanto, que os dados genéticos estão protegidos pelo sigilo decorrente do direito à privacidade. Não há dúvida de que o processamento e armazenamento desses dados pode levar à discriminação do seu portador. Assim, se a prova genética contiver informações acerca do genoma do indivíduo que possam favorecer algum tipo de discriminação, é óbvio que a utilização dela e a sua manutenção no processo deverão estar protegidas pelo sigilo, sob pena de se constituir numa espécie de prova ilícita.
É exatamente para evitar problemas assim que a CF, no seu art. 5o, X, e também o CC, no seu art. 21, garantem a intimidade ou privacidade do indivíduo como uma de suas liberdades fundamentais. Além disso, convém lembrar que o Brasil é signatário da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada pela Unesco em 1997, cujo art. 7o assegura a confidencialidade dos dados genéticos armazenados ou processados para fins de pesquisa. Nesse mesmo sentido, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, aprovada pela Unesco em 2003, a qual, no art. 14, recomenda que os dados genéticos da pessoa não sejam postos à disposição de terceiros.
2. Banco de perfis genéticos
A Lei nº 12.654/12 acrescentou o art. 9º-A à Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) determinando que os condenados por crimes dolosos, praticados com violência grave à pessoa, e os chamados “crimes hediondos”, previstos na Lei nº 8.072/90, serão obrigatoriamente submetidos à identificação de seu perfil genético, pelo exame do DNA, cujos dados devem ficar armazenados num banco sigiloso, acessível apenas por ordem judicial.
Embora a lei não diga expressamente, esses dados deverão permanecer no “banco de perfis” até que se dê o cumprimento ou a prescrição da pretensão executória da pena. Faz-se aqui a aplicação extensiva ou analógica (analogia juris) do art. 7º-A da Lei de Identificação Criminal (Lei nº 12.037/09) que prevê a exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados “no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito”, ou seja, tão logo se verifique a prescrição da pretensão punitiva.
Assim é porque, a não ser para aplicação aos casos concretos e específicos, a lei não previu a manutenção permanente de dados genéticos em um banco de perfis, com a finalidade de utilizá-los no esclarecimento de crimes que, hipoteticamente, viessem a ocorrer no futuro. De fato, o “banco de perfis genéticos” supõe um armazenamento temporário dos dados pelo tempo necessário à consecução dos seguintes objetivos: (a) esclarecimento de um determinado crime (in concreto), (b) identificação do seu autor ou (c) identificação e captura do condenado eventualmente foragido.
Na verdade, esse banco de perfis genéticos para criminosos já condenados, cujo crime, obviamente, já foi esclarecido e definitivamente julgado, é uma providência de constitucionalidade no mínimo duvidosa. Note-se que, por ocasião da execução da pena, em que já existe uma decisão condenatória definitiva, não há mais nada que esclarecer nem que provar no processo findo. Assim, o armazenamento de dados genéticos do condenado só pode ser mesmo uma providência destinada a esclarecer a autoria de crimes futuros, isto é, medida destinada à produção de prova em processos que vierem a ser instaurados futuramente, o que configura uma espécie de “prova pré constituída”, em clara ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Além disso, diz a lei, o condenado será obrigatoriamente submetido ao exame de DNA, subentendendo-se que deverá fornecer, compulsoriamente, o material biológico destinado a esse exame. Trata-se, pois, de norma que estabelece um aberto confronto com o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si próprio – nemo tenetur se detegere.
Enfim, a constituição de um banco de dados genéticos, destinado a armazenar os perfis de criminosos, a par de ser uma medida que ameaça a intimidade e a confidencialidade de dados do genoma humano, favorecendo a ressurreição de teses e delírios tipicamente lombrosianos, é algo que afronta os princípios liberais da presunção de inocência, da não autoincriminação e da ampla defesa, numa convivência problemática com a ordem constitucional vigente.
Esse banco de dados parece ser mais uma daquelas “medidas de efeito”, uma espécie de “pirotecnia processual repressiva”, criada pelo legislador para dar a impressão de que a criminalidade está sendo eficazmente combatida, com rigor e com o auxílio da ciência (tal como supostamente ocorre nos países desenvolvidos), enquanto que as causas reais do crime permanecem intocadas, alimentando e fazendo crescer os índices de violência e insegurança pública.       
Sob esse aspecto, o Brasil continua seguindo o seu equivocado destino histórico de “dar tratamento policial aos problemas sociais”, pois os países avançados que adotam essas biotecnologias modernas contra o crime há muito que já tomaram outras providências no terreno das políticas públicas e sociais, estas sim, bem mais eficazes no combate à criminalidade que é um fenômeno coletivo, com raízes sociais, econômicas e políticas.
É relevante destacar, por fim, que a coleta de material biológico, a análise do DNA do indivíduo e o armazenamento de dados genéticos pelo Estado, são providências severas de controle estatal que ameaçam radicalmente a privacidade das pessoas e ainda podem ter o efeito de revolver as ideias positivistas do médico italiano, Cesare Lombroso, que no século XIX acreditava ser possível definir os caracteres morfológicos e comportamentais dos “criminosos natos”, naturalmente propensos à prática de crimes.
Ao contrário do que se pensa, a ideologia lombrosiana ainda não está definitivamente sepultada. Em sociedades atemorizadas pela violência como é o caso da sociedade brasileira, que desenvolve o ódio e o desejo de vingança contra os criminosos mas não discute as causas da criminalidade, não é difícil ressuscitar Lombroso e o chamado “direito penal do autor” (e não do fato), com o que, doravante, os nossos criminosos poderão ser pré-identificados, ou “etiquetados”, tanto pelas suas origens sócio-econômicas quanto pelo seu “perfil genético”.

http://blogs.lemos.net/machado/Acesso: 12/12/2012

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