"Laicos, graças ao cristianismo
iG Paulista - 04/06/2014 - 05h00 |
André Fernandes | igpaulista@rac.com.br
André Fernandes | igpaulista@rac.com.br
O Ocidente, desde o atentado contra as torres gêmeas, está envolto num conflito dilatado contra o radicalismo islâmico. Este embate é sumamente difícil, tanto pelo afinco mortal — literalmente — dessa turma à sua causa, como, também, pela enorme desconjunção cultural pela qual a Europa e a América passaram desde o fim da guerra do Vietnã. Em outras palavras, os ocidentais perderam o apetite pela confiança no próprio modo de vida. Ao que nos parece, não têm mais certeza sobre o legado de uma tradição cultural de séculos.
Ao mesmo tempo, os ocidentais viram-se diante de uma outra corrente do islamismo, mais aberta ao diálogo ecumênico, mas que, no fundo, acredita ser o modo de vida ocidental, como um todo, profundamente defeituoso e mesmo ofensivo a Deus, motivado por várias razões e todas referentes, ao cabo, a uma só: a separação entre as esferas política e religiosa, cujo maior efeito teria sido uma secularização dos costumes que descambou num paganismo igual ou pior que o da era antiga. Por isso, a maioria dos Estados islâmicos ainda é teocrática.
De minha parte, estou convicto de que ainda não chegamos ao fundo do poço civilizacional. Contudo, essa visão de mundo, com frequência, dá sinais de insuficiência, a ponto de questionarmos aquela descrença em nosso tradicional modo de vida, e, também, de nos levar a duvidar de qualquer atividade cerebral significativa do lado de lá. Ao menos no exercício do senso comum.
Recentemente, um tribunal sudanês (pois é, um colegiado de juízes) condenou uma mulher à pena morte, nos termos da Sharia, a lei de Deus. Contudo, no momento de execução da pena, o mesmo tribunal confrontou-se com uma pedra no meio do caminho. A condenada era uma gestante e, numa atitude um tanto salomônica, a mesma corte decidiu suspender a execução da pena para que a condenada pudesse dar à luz primeiro e, depois, ser, solenemente, enforcada.
O leitor deve estar se perguntando qual seria o hediondo delito cometido por essa mulher: filha de pai muçulmano, ela foi educada pelos costumes cristãos pela mãe. Quando chegou na maturidade, resolveu casar-se com um homem da mesma fé. Nada mais coerente para qualquer pessoa. Nada mais incoerente para os juízes daquela corte, porque contrair matrimônio com um cristão importa no cometimento do hediondo crime de adultério.
Mas não é só. Descendentes de uma linhagem familiar muçulmana não podem cometer, nos termos da Sharia, o crime de apostasia, isto é, de renúncia à fé do profeta Maomé, ainda que, ontologicamente, ao ter sido criada na fé cristã, não se pode concluir que ela tenha renunciado a qualquer coisa. Como ato preparatório ao cadafalso, nossa ousada sudanesa terá direito a cem chibatadas em seu ventre, já que foi por onde a “adúltera-apóstata” consumou, digamos, matrimonialmente, ambos os delitos...
Os países ocidentais esbravejaram em prol do respeito estatal pela liberdade de religião. Como é evidente, estão a exigir uma proeza tipicamente ocidental que o islamismo não é capaz de compreender, porque, ao contrário do que se deu historicamente do lado de cá, nunca houve uma sadia cisão entre as realidades temporal e espiritual, a partir da qual se forjou o Estado ocidental moderno.
Todos sabemos que, depois de lutas institucionais (e, quase sempre, regadas a sangue de todos os tipos) entre o papado e os imperadores, sem contar as guerras religiosas (não menos sangrentas) entre católicos e protestantes, entendeu-se que a religião e a política deveriam atuar em esferas autônomas institucionalmente: o papa não precisaria mais coroar o rei e o rei não precisaria mais governar senão com a espada e a lei.
Isso nos é ensinado como um delicioso fruto do liberalismo político clássico do século XVII. Mas o papa Gregório VII, no século XI, já tinha se anteposto contra os excessos imperiais dos reis nos assuntos da Igreja. Foi a reforma gregoriana, que ousaria chamar de revolução gregoriana, porque além da reorganização das estruturas clericais, redundou na valorização do conhecimento leigo, das leis e das instituições civis de toda a sociedade europeia. Mais tarde, Locke irá fazer o mesmo, só que contra os excessos da Igreja nos assuntos políticos, ainda embasada na doutrina do direito divino dos reis. Essa relação foi se aprimorando, com erros e acertos de ambos os lados, até chegarmos aos dias atuais.
Moral da história: a laicidade dos Estados ocidentais não seria possível sem o legado da tradição religiosa do cristianismo. Gostem ou não gostem os laicistas. Lamento por eles, cujo ódio contamina a capacidade de reflexão, e lamento também por nossa infeliz sudanesa: embora educada nessa mesma tradição, teve a pouca sorte de ter nascido e crescido em solo islâmico. Com respeito à divergência, é o que penso".
Ao mesmo tempo, os ocidentais viram-se diante de uma outra corrente do islamismo, mais aberta ao diálogo ecumênico, mas que, no fundo, acredita ser o modo de vida ocidental, como um todo, profundamente defeituoso e mesmo ofensivo a Deus, motivado por várias razões e todas referentes, ao cabo, a uma só: a separação entre as esferas política e religiosa, cujo maior efeito teria sido uma secularização dos costumes que descambou num paganismo igual ou pior que o da era antiga. Por isso, a maioria dos Estados islâmicos ainda é teocrática.
De minha parte, estou convicto de que ainda não chegamos ao fundo do poço civilizacional. Contudo, essa visão de mundo, com frequência, dá sinais de insuficiência, a ponto de questionarmos aquela descrença em nosso tradicional modo de vida, e, também, de nos levar a duvidar de qualquer atividade cerebral significativa do lado de lá. Ao menos no exercício do senso comum.
Recentemente, um tribunal sudanês (pois é, um colegiado de juízes) condenou uma mulher à pena morte, nos termos da Sharia, a lei de Deus. Contudo, no momento de execução da pena, o mesmo tribunal confrontou-se com uma pedra no meio do caminho. A condenada era uma gestante e, numa atitude um tanto salomônica, a mesma corte decidiu suspender a execução da pena para que a condenada pudesse dar à luz primeiro e, depois, ser, solenemente, enforcada.
O leitor deve estar se perguntando qual seria o hediondo delito cometido por essa mulher: filha de pai muçulmano, ela foi educada pelos costumes cristãos pela mãe. Quando chegou na maturidade, resolveu casar-se com um homem da mesma fé. Nada mais coerente para qualquer pessoa. Nada mais incoerente para os juízes daquela corte, porque contrair matrimônio com um cristão importa no cometimento do hediondo crime de adultério.
Mas não é só. Descendentes de uma linhagem familiar muçulmana não podem cometer, nos termos da Sharia, o crime de apostasia, isto é, de renúncia à fé do profeta Maomé, ainda que, ontologicamente, ao ter sido criada na fé cristã, não se pode concluir que ela tenha renunciado a qualquer coisa. Como ato preparatório ao cadafalso, nossa ousada sudanesa terá direito a cem chibatadas em seu ventre, já que foi por onde a “adúltera-apóstata” consumou, digamos, matrimonialmente, ambos os delitos...
Os países ocidentais esbravejaram em prol do respeito estatal pela liberdade de religião. Como é evidente, estão a exigir uma proeza tipicamente ocidental que o islamismo não é capaz de compreender, porque, ao contrário do que se deu historicamente do lado de cá, nunca houve uma sadia cisão entre as realidades temporal e espiritual, a partir da qual se forjou o Estado ocidental moderno.
Todos sabemos que, depois de lutas institucionais (e, quase sempre, regadas a sangue de todos os tipos) entre o papado e os imperadores, sem contar as guerras religiosas (não menos sangrentas) entre católicos e protestantes, entendeu-se que a religião e a política deveriam atuar em esferas autônomas institucionalmente: o papa não precisaria mais coroar o rei e o rei não precisaria mais governar senão com a espada e a lei.
Isso nos é ensinado como um delicioso fruto do liberalismo político clássico do século XVII. Mas o papa Gregório VII, no século XI, já tinha se anteposto contra os excessos imperiais dos reis nos assuntos da Igreja. Foi a reforma gregoriana, que ousaria chamar de revolução gregoriana, porque além da reorganização das estruturas clericais, redundou na valorização do conhecimento leigo, das leis e das instituições civis de toda a sociedade europeia. Mais tarde, Locke irá fazer o mesmo, só que contra os excessos da Igreja nos assuntos políticos, ainda embasada na doutrina do direito divino dos reis. Essa relação foi se aprimorando, com erros e acertos de ambos os lados, até chegarmos aos dias atuais.
Moral da história: a laicidade dos Estados ocidentais não seria possível sem o legado da tradição religiosa do cristianismo. Gostem ou não gostem os laicistas. Lamento por eles, cujo ódio contamina a capacidade de reflexão, e lamento também por nossa infeliz sudanesa: embora educada nessa mesma tradição, teve a pouca sorte de ter nascido e crescido em solo islâmico. Com respeito à divergência, é o que penso".
Fonte: www.ig.com.br
Acesso: 04/06/2014
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