quinta-feira, 2 de outubro de 2014

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. TABAGISMO.

Tipo De Processo: Apelação Cível 
Número: 70000144626
Relator: Adão Sérgio Do Nascimento Cassiano 
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. TABAGISMO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO AJUIZADA PELA FAMÍLIA. RESULTADO DANOSO ATRIBUÍDO A EMPRESAS FUMAGEIRAS EM VIRTUDE DA COLOCAÇÃO NO MERCADO DE PRODUTO SABIDAMENTE NOCIVO, INSTIGANDO E PROPICIANDO SEU CONSUMO, POR MEIO DE PROPAGANDA ENGANOSA. ILEGITIMIDADE PASSIVA, NO CASO CONCRETO, DE UMA DAS CO-RÉS. CARACTERIZAÇÃO DO NEXO CAUSAL QUANTO À OUTRA CO-DEMANDADA. CULPA. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA DECORRENTE DE OMISSÃO E NEGLIGÊNCIA, CARACTERIZANDO-SE A OMISSÃO NA AÇÃO. APLICAÇÃO, TAMBÉM, DO CDC, CARACTERIZANDO-SE, AINDA, A RESPONSABILIDADE OBJETIVA. INDENIZAÇÃO DEVIDA.
A prova dos autos revela que a vítima falecida teria fumado durante 40 anos, cerca de 40 cigarros por dia, tendo adquirido enfisema e câncer pulmonar que lhe acarretaram a morte. Não havendo comprovação de que o de cujus consumisse os cigarros fabricados pela co-ré Souza Cruz, impõe-se, no caso concreto, reconhecer ilegitimidade passiva desta. É fato notório, cientificamente demonstrado, inclusive reconhecido de forma oficial pelo próprio Governo Federal, que o fumo traz inúmeros malefícios à saúde, tanto à do fumante como à do não-fumante, sendo, por tais razões, de ordem médico-científica, inegável que a nicotina vicia, por isso que gera dependência química e psíquica, e causa câncer de pulmão, enfisema pulmonar, infarto do coração entre outras doenças igualmente graves e fatais. A indústria de tabaco, em todo o mundo, desde a década de 1950, já conhecia os males que o consumo do fumo causa aos seres humanos, de modo que, nessas circunstâncias, a conduta das empresas em omitir a informação é evidentemente dolosa, como bem demonstram os arquivos secretos dessas empresas, revelados nos Estados Unidos em ação judicial movida por estados norte-americanos contra grandes empresas transnacionais de tabaco, arquivos esses que se contrapõem e desmentem o posicionamento público das empresas ¿ revelando-o falso e doloso, pois divulgado apenas para enganar o público ¿ e demonstrando a real orientação das empresas, adotada internamente, no sentido de que sempre tiveram pleno conhecimento e consciência de todos os males causados pelo fumo. E tal posicionamento público, falso e doloso, sempre foi historicamente sustentado por maciça propaganda enganosa, que reiteradamente associou o fumo a imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder, riqueza e inteligência, omitindo, reiteradamente, ciência aos usuários dos malefícios do uso, sem tomar qualquer atitude para minimizar tais malefícios e, pelo contrário, trabalhando no sentido da desinformação, aliciando, em particular os jovens, em estratégia dolosa para com o público, consumidor ou não. O nexo de causalidade restou comprovado nos autos, inclusive pelo julgamento dos embargos infringentes anteriormente manejados, em que se entendeu pela desnecessidade de outras provas, porquanto fato notório que a nicotina causa dependência química e psicológica e que o hábito de fumar provoca diversos danos à saúde, entre os quais o câncer e o enfisema pulmonar, males de que foi acometido o falecido, não comprovando, a ré, qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito dos autores (art. 333, II, do CPC). O agir culposo da demandada evidencia-se na omissão e na negligência, caracterizando-se a omissão na ação. O art. 159 do CCB/1916 já previa o ressarcimento dos prejuízos causados a outrem, decorrentes de omissão e negligência, sendo que o criador de um risco tem o dever de evitar o resultado, exatamente porque, não o fazendo, comete a omissão caracterizadora da culpa, a chamada omissão na ação conceituada na doutrina do preclaro Cunha Gonçalves, a qual é convergente com as lições de Sergio Cavalieri Filho e Pontes de Miranda, sendo a conduta da demandada violadora dos deveres consubstanciados nos brocardos latinos do neminem laeder, suum cuique tribuere e no próprio princípio da boa-fé objetiva existente desde sempre no Direito Brasileiro. A conduta anterior criadora do risco enseja o dever, decorrente dos princípios gerais de direito, de evitar o dano, o qual, se não evitado, caracteriza a culpa por omissão. Como acentua a doutrina, esse dever pode nascer de uma conduta anterior e dos princípios gerais de direito, não sendo necessário que esteja concretamente previsto em lei, bastando apenas que contrarie o seu espírito. Não obstante ser lícita a atividade da indústria fumageira, a par de altamente lucrativa, esta mesma indústria, desde o princípio, sempre teve ciência e consciência de que o cigarro vicia e causa câncer, estando cientificamente comprovado que o fumo causa dependência química e psíquica, câncer, enfisema pulmonar, além de outros males, de forma que a omissão da indústria beira as fronteiras do dolo. A ocultação dos fatos, mascarada por publicidade enganosa, massificante, cooptante e aliciante, além da dependência química e psíquica, não permitia e não permite ao indivíduo a faculdade da livre opção, pois sempre houve publicidade apelativa, sobretudo em relação aos jovens, sendo necessário um verdadeiro clamor público mundial para frear a ganância da indústria e obrigar o Poder Público à adoção de medidas de prevenção a partir de determinações emanadas de órgãos governamentais. Ainda que se considere que a propaganda e a dependência não anulem a vontade, o fato é que a voluntariedade no uso e a licitude da atividade da indústria não afastam o dever de indenizar. Desimporta a licitude da atividade perante as leis do Estado e é irrelevante a dependência ou voluntariedade no uso ou consumo para afastar a responsabilidade. E assim é porque simplesmente o ordenamento jurídico não convive com a iniqüidade e não permite que alguém cause doença ou mate seu semelhante sem que por isso tenha responsabilidade. A licitude da atividade e o uso ou consumo voluntário não podem levar à impunidade do fabricante ou comerciante de produto que causa malefícios às pessoas, inclusive a morte. Sempre que um produto ou bem ¿ seja alimentício, seja medicamento, seja agrotóxico, seja à base de álcool, seja transgênico, seja o próprio cigarro ¿ acarrete mal às pessoas, quem o fabricou ou colocou no mercado responde pelos prejuízos decorrentes. Ante as conseqüências desastrosas do produto, como é o caso dos autos, que levam, mais tragicamente, à morte, não pode o fabricante esquivar-se de arcar com as indenizações correspondentes. Mesmo que seja lícita a atividade, não pode aquele que a exerce, cometendo abuso de seu direito, por omissão, ocultar as conseqüências do uso do produto e safar-se da responsabilidade de indenizar, especialmente se, entre essas conseqüências, estão a causação de dependência e de câncer, que levaram a vítima à morte. E também não pode esquivar-se da responsabilidade porque sempre promoveu propaganda ligando o uso do produto a situações de sucesso, riqueza, bem estar, vida saudável, entre outras, situações exatamente contrárias àquelas que decorrem e que são conseqüências do uso de um produto como o cigarro. Ademais, aplica-se também ao caso dos autos o Código de Defesa do Consumidor, porquanto a ocorrência do resultado danoso se deu em plena vigência do Regramento Consumerista, que é norma de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), e por isso de aplicação imediata. O cigarro é produto altamente perigoso, não só aos fumantes como também aos não-fumantes (fumantes passivos ou bystanders), caracterizando-se como defeituoso, uma vez que não oferece a segurança que dele se pode esperar, considerando-se a apresentação, o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam (art. 12, § 1º, do CDC), situação que importa na responsabilidade objetiva do fabricante, que apenas se exime provando que não colocou o produto no mercado, ou que, embora o haja colocado, o defeito inexiste ou que o mal não foi causado, ou, por fim, que a culpa é exclusiva do consumidor ou de terceiro, o que aqui não se caracteriza porque o ato voluntário do uso ou consumo não induz culpa e, na verdade, no caso, sequer há opção livre de fumar ou não fumar, em decorrência da dependência química e psíquica e diante da propaganda massiva e aliciante, que sempre ocultou os malefícios do cigarro, o que afasta em definitivo qualquer alegação de culpa concorrente ou exclusiva da vítima. A indenização pelos danos materiais deverá ressarcir a venda de imóvel e de bovinos, despesas médicas e hospitalares comprovadas, hospedagem de acompanhantes durante a internação e gastos com o funeral. Também são indenizáveis os prejuízos decorrentes do fechamento do mini-mercado da vítima, desde a época da constatação da doença até a data em que o falecido completaria 70 anos de idade, conforme a expectativa de vida dos gaúchos, valor a ser apurado de acordo com a média de lucro dos últimos 12 meses de funcionamento anteriores à constatação da doença. As demais pretensões indenizatórias impõem-se indeferidas, porquanto não comprovados os prejuízos (art. 333, I, do CPC). A título de danos morais, tem-se como razoável, prudente e suficiente a fixação da quantia de 600 salários mínimos nacionais para a esposa, de 500 para cada um dos quatro filhos e de 300 para cada um dos genros, totalizando, a indenização a esse título, 3.200 salários mínimos nacionais, diante das peculiaridades do caso e da necessidade de atender o caráter sancionatório-punitivo e a finalidade reparatório-compensatória da verba, sem implicar enriquecimento indevido dos demandantes. 
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA, POR MAIORIA. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70000144626, NONA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ADÃO SÉRGIO DO NASCIMENTO CASSIANO, JULGADO EM 29/10/2003)
TRIBUNAL: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS

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