ABORTO.

“APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO MINISTERIAL. ABORTO PROVOCADO COM O CONSENTIMENTO DA GESTANTE QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. CONSELHO DE SENTENÇA QUE ABSOLVE OS RÉUS EM DUAS OPRTUNIDADES. AUSÊNCIA DE CONTRADIÇÃO NO RESULTADO DA QUESITAÇÃO. ABSOLVIÇÃO GENÉRICA. POSSIBILIDADE. ARTIGO 483, inciso III, do Código de Processo Penal. DECISÃO MANTIDA.
Recurso desprovido.

Apelação Crime

Terceira Câmara Criminal
Nº 70050816024

Comarca de Quaraí
MINISTERIO PUBLICO

APELANTE
ARNALDO DORNELLES DOS SANTOS

APELADO
ALBA CRISTINA SUAREZ ARRUDA

APELADO

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso ministerial.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Nereu José Giacomolli (Presidente) e Des. Jayme Weingartner Neto.
Porto Alegre, 15 de julho de 2013.

DES. JOÃO BATISTA MARQUES TOVO,
Relator.
RELATÓRIO
Des. João Batista Marques Tovo (RELATOR)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra ALBA C. S. A., 35 anos de idade, ARNALDO D. S., 42 anos de idade, por incursos no artigo 126, em concurso material com o artigo 127, primeira parte, combinados com o artigo 29, todos do Código Penal, e contra JANAÍNA Q. N., 18 anos de idade à época dos fatos, por incursa no artigo 124 do Código Penal.
Homologado auto de prisão em flagrante de Arnaldo e Alba (f. 40 – autos apensos), a segregação cautelar restou mantida (f. 69 – idem).
Denúncia recebida em 29 de novembro de 2005 (f. 126).
Citados pessoalmente (f. 130), os réus foram interrogados (f. 132 e 134).
Proposta a suspensão condicional do processo para JANAÍNA, esta foi aceita, cindido o feito com relação a ela (f. 136).
ARNALDO e ALBA ofereceram defesa prévia (f. 141).
Liberdade provisória concedida a ARNALDO e ALBA (f. 179).
Inquridos JANAÍNA Q.N (f. 234), Tássia R.P.F (f. 244), Galidulcidio Ferrari (f. 251), Juliano Silveira Goulart (f. 255), Carlos Renato Rodrigues Ferreira (f. 258), Elisangela Pereira Silva (f. 262), Milton Augusto de Souza Paula (f. 268), Vanoni Borges Bortolas (f. 272), Andréa Cibele Barreto Oriques (f. 275), Jorge Eduardo Franciscone Fay (f. 291), Rudimar de Oliveira Nunes (f. 292), Rogéria Espelocim Cavalheiro (f. 293), Paulo Roberto Pagarin (f. 293), Rogério Santos de Souza (f. 294), Leide Alexandra Fagundez Caldeira (f. 295) e Jalmir Quadros de Quadros (f. 296),
Antecedentes criminais certificados (f. 301 e 303).
Encerrada a instrução, oferecidos memoriais (f. 316 e 325), sobreveio decisão de pronúncia (f. 328), submetendo os réus ARNALDO e ALBA a julgamento pelo Tribunal do Júri, como incursos no artigo 126 (primeiro fato), em concurso material com os artigos 126 combinado com o artigo 127, primeira parte (terceiro fato), em combinação com o artigo 29, todos do Código Penal. Concedido o direito de aguardar o julgamento em liberdade.
Publicação em 28 de novembro de 2008 (f. 345).
Intimados (f. 353), os réus interpuseram recurso em sentido estrito.  Razões (f. 358) e contrarrazões (f. 362) oferecidas.
Em sessão do dia 28.10.2009, a Primeira Câmara Criminal deste Tribunal, à unanimidade, desproveu o recurso (f. 382).
Os autos retornaram à origem.
Em sessão do Tribunal do Júri (f. 513), após votados os quesitos, sobreveio sentença (f. 518) que declarou os réus absolvidos, com base no artigo 386, incisos I e V, do Código de Processo Penal.
Publicação da sentença em plenário, no dia 09.11.2010.
O Ministério Público apelou.  A Primeira Câmara Criminal deste Tribunal, deu parcial provimento ao apelo para que os réus fossem submetidos a novo julgamento (f. 565).
Em nova sessão do Tribunal do Júri, após ser interrogada a ré e inquirida a vítima e duas testemunhas, realizaram-se os debates e foram votados os quesitos, resultando os réus novamente absolvidos dos termos da pronúncia (f. 654).  Seguiu-se prolação de sentença (f. 661) que os declarou absolvidos.
Publicação em plenário, em 23.02.2012.
O Ministério Público apela. 
Razões (f. 669) e contrarrazões (f. 681) oferecidas.
Neste grau, parecer do ilustre Procurador de Justiça, Dr. Roberto Neumann, no sentido do desprovimento (f. 686).
Autos conclusos.
É o relatório.
VOTOS
Des. João Batista Marques Tovo (RELATOR)
1.    IMPUTAÇÃO
Os réus foram absolvidos da prática de fatos assim narrados na inicial acusatória:
(...)
1º FATO:
Em data e horário não suficientemente esclarecidos pela autoridade policial, todavia no mês de setembro de 2004, na Rua Bento Gonçalves nº 180, apto 23, nesta cidade, os denunciados ALBA C.S.A. e ARNALDO D.S., previamente ajustados, com vontade livre e consciente, em comunhão de esforços, provocaram aborto com o consentimento da gestante Janaína Q.N., de 18 anos de idade.
Na ocasião, os denunciados realizaram aborto em Janaina Q.N., grávida de quatro semanas, mediante utilização de medicamento “Citotec”, ministrado pela denunciada Alba na gestante, com a colaboração do denunciado Arnaldo, possuidor de conhecimentos de farmacologia.
O procedimento abortivo durou das 9h às 19h e constitui na utilização do medicamento referido via oral e mediante introdução na vagina da gestante, ato realizado pela denunciada Alba, em intervalos de aproximadamente uma hora, permanecendo Janaína por esse período em uma das dependências do apartamento dos denunciados.
Por volta das 19h, a denunciada Alba mandou Janaína, que sentia fortes dores, retornar para sua casa, local onde, em decorrência da medicação aplicada, foi expelido o feto por volta das 22h.
Os denunciados cobraram o valor de R$ 300,00 (trezentos reais) de Janaína pela prática do aborto, valor que foi pago a vista e em dinheiro.


3º FATO:
No dia 14 de novembro de 2005, pela tarde, na Rua Bento Gonçalves, nº 180, apto 23, nesta cidade, os denunciados ALBA C.S.A. e ARNALDO D.S., previamente ajustados, com vontade livre e consciente, em comunhão de esforços, provocaram aborto com o consentimento de gestante em Tássia R.P.F., de 16 anos de idade.
Na ocasião, os denunciados realizaram aborto em Tassia R.P.F., grávida de quatro meses, mediante utilização de medicamento “Citotec”, ministrado pela denunciada Alba Na gestante, com a colaboração do denunciado Arnaldo, possuidor de conhecimentos de farmacologia.
O procedimento abortivo durou várias horas e consistiu na utilização do medicamento referido via oral e mediante introdução na vagina da gestante, ato realizado pela denunciada Alba, em intervalos de aproximadamente uma hora, permanecendo Tássia por esse período em uma das dependências do apartamento dos denunciados.
No final da tarde, a denunciada Alba mandou Tássia, que sentia fortes dores, retornar para sua casa, local onde, em decorrência da medicação aplicada, foi expelido o feto por volta das 21h, tendo Tássia desmaiado e sido internada na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital de Caridade de Quarai, em grave hemorragia, resultando em procedimento em risco de vida à gestante (auto de exame de corpo de delito da fl. 14).
Ao recobrar a consciência, Tássia informou ao médico que a atendeu no Hospital, Dr. Galidulcídio Ferrari, que foi submetida a aborto pelos denunciados Alba e Arnaldo. A autoridade policial foi comunicada, e, em cumprimento a mandado de busca e apreensão da fl. 38, apreendeu na residência destes diversos medicamentos e instrumentos utilizados na prática abortiva (auto da fl. 07 e 46), bem como procedeu à prisão em flagrante dos denunciados.
O feto foi apreendido (fl. 39), e encaminhado para perícia junto ao Departamento de Medicina Legal de Santana do Livramento, RS.
Os denunciados cobraram o valor de R$ 300,00 (trezentos reais) de Tássia pela prática do aborto, valor que foi pago a vista e em dinheiro.
(...)

2.    INCONFORMIDADE MINISTERIAL
O Ministério Público não se conforma, a pedir anulação da decisão do conselho de sentença, sustentando a ocorrência de nulidade posterior à pronúncia, em razão de contradições no acolhimento dos quesitos – diz que embora os jurados tenham reconhecido a materialidade e a autoria dos dois crimes, entenderam que deveriam ser absolvidos pela falta de provas de sua participação.   Pede a realização de novo julgamento.

3.  MANUTENÇÃO DO JUÍZO ABSOLUTÓRIO
Rogo vênia para adotar como razões de decidir, fundamentação do parecer ministerial, que transcrevo[1]:
(...)
3. MÉRITO
Os réus estão sendo processados por terem provocado aborto com consentimento da gestante em Janaína Q.N., de 18 anos de idade, e em Tássia R.P.F., de 16 anos de idade. O feito foi cindido em relação à Janaína N.– denunciada pelo delito do art. 124 do Código Penal -, que aceitou proposta de suspensão condicional do processo (fl. 136).
Os procedimentos abortivos foram induzidos mediante a utilização do comprimido “Citotec”, ministrado pela acusada Alba na gestante (via oral e também por introdução do fármaco na vagina da vítima), contando com a participação do réu Arnaldo S., possuidor de conhecimentos de farmacologia. Pelos “serviços prestados”, os acusados cobraram, de cada uma das vítimas, a importância de R$ 300,00.
Cumpre ressaltar, a propósito, que pelo que se apurou dos autos, os denunciados realizavam tais práticas criminosas com habitualidade, mantendo, assim, uma verdadeira “clínica de abortos” no Município de Quaraí.
Devidamente processados, foram pronunciados (fls. 328/346 e 382/385v) e submetidos a um primeiro julgamento pelo Conselho de Sentença, que houve por absolvê-los (decisão às fls. 513/528). Esta decisão foi desconstituída pela 1ª Câmara Criminal desta Eg. Corte, que entendeu que o julgamento se dera em absoluta contrariedade à prova dos autos (fls. 565/570). Submetidos a novo julgamento na origem, foram os réus, mais uma vez, absolvidos pelos Jurados (fls. 654/661v). Contra essa decisão se insurge a combativa Promotora de Justiça, sustentando a existência de nulidade posterior à pronúncia. Tudo porque haveria flagrante contradição entre as respostas dadas pelos Jurados aos dois primeiros quesitos (afirmativas para autoria e materialidade delitivas) frente àquela apresentada para o terceiro quesito (absolvição dos acusados).
Veja-se que as únicas teses defensivas suscitadas pelos réus foram: 1) inexistência de provas quanto à autoria e a materialidade dos crimes e; 2) permissividade social da conduta (“existência de faculdade de realização de aborto, na sociedade atual”, fl. 657).
Ocorre, porém, que a existência do crime (materialidade) e a sua autoria por parte dos ora apelados foi reconhecida pelos Jurados ao responderem afirmativamente os dois primeiros quesitos de cada série (fls. 657v a 660). Ou seja, a primeira tese defensiva foi rechaçada, logo de saída, pelos integrantes do Conselho de Sentença.
A tese subsidiária (permissividade social do aborto), por sua vez, a bem da verdade, encerra conteúdo absolutamente contrário à lei. A prática do aborto ainda é considerada criminosa em nosso País. Ainda mais quando, como no caso dos autos, uma das vítimas – então com apenas 16 anos de idade – quase veio a falecer, tendo que ser internada em unidade de terapia intensiva.
Admitir a absolvição dos acusados com base na suposta “permissividade social da conduta” seria reconhecer como possível a existência de julgamento contrário a texto expresso de lei.
Embora isso, o fato é que hoje há disposição expressa no texto legal impondo que seja quesitada a absolvição do acusado como questionamento genérico (art. 483, III, do CPP). Independentemente das teses desenvolvidas em plenário.
A doutrina tem lançado dúvidas sobre essa forma de enfrentamento dos quesitos perante o Tribunal do Júri.
Todavia isso, o STJ, que tem por finalidade  uniformizar o entendimento jurisprudencial no país, reiteradamente delibera que a quesitação genérica quanto à absolvição independe da tese defensiva. Tudo associado ao princípio prevalente da soberania do veredicto do Conselho de Sentença, vinculado, pois, à mais ampla defesa.
Relembro os precedentes:

RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. TENTATIVA DE HOMICÍDIO E PORTE ILEGAL            DE ARMA DE FOGO. AUSÊNCIA DE FORMULAÇÃO DO QUESITO ABSOLUTÓRIO GENÉRICO.NULIDADE ABSOLUTA. QUESITAÇÃO OBRIGATÓRIA INDEPENDENTE DA TESE DEFENSIVA SUSTENTADA EM PLENÁRIO. OBSERVÂNCIA DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA. RECURSO IMPROVIDO.
1. O quesito absolutório genérico, previsto no artigo 483, inciso III, do     Código de Processo Penal, é obrigatório, independentemente da tese           
defensiva sustentada em plenário, em razão da garantia constitucional da plenitude de defesa, cuja ausência de formulação acarreta nulidade absoluta.2. Recurso especial improvido.(REsp 1245480/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 19/04/2012, DJe 08/06/2012- grifei).


HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. 1. CONTRADIÇÃO ENTRE AS RESPOSTAS DOS JURADOS. INEXISTÊNCIA. ABSOLVIÇÃO GENÉRICA. POSSIBILIDADE. SOBERANIA DOS VEREDICTOS. PLENITUDE DA DEFESA 2. TESE ÚNICA DE NEGATIVA DE AUTORIA. AUTORIA E MATERIALIDADE RECONHECIDAS DURANTE A VOTAÇÃO DOS DOIS PRIMEIROS QUESITOS. VOTAÇÃO DO QUESITO OBRIGATÓRIO RELATIVO À ABSOLVIÇÃO DO RÉU. INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO ENTRE OS QUESITOS. 3. OFÍCIO AO ÓRGÃO DA CLASSE. INVESTIGAÇÃO DA CONDUTA ÉTICA DO DEFENSOR. AUSÊNCIA DE AMEAÇA AO DIREITO AMBULATORIAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. 4. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDO.
1. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o quesito previsto no art. 483, inciso III, do Código de Processo Penal, é obrigatório e, dessa forma, não pode ser atingido pela regra da prejudicialidade descrita no parágrafo único do art. 490 do mesmo diploma legal. Precedentes.
2. O fato de a decisão dos jurados se distanciar das provas coletadas durante a instrução criminal não justifica a renovação da votação ou caracteriza contrariedade entre as respostas. Eventual discordância da acusação deve ser ventilada por meio do recurso próprio, nos termos do art. 593, inciso III, alínea d, do Código de Processo Penal.
3. Os jurados são livres para absolver o acusado, ainda que reconhecida a autoria e a materialidade do crime, e tenha o defensor sustentado tese única de negativa de autoria.4. Não cabe ao Juiz Presidente, a pretexto de evitar a contradição entre os quesitos, pela influência direta que exerceria na formação da convicção dos jurados, fazer considerações sobre a suficiência das provas, pois a matéria se insere na competência do órgão revisional, em recurso de apelação. 5. O habeas corpus é remédio constitucional voltado ao combate de constrangimento ilegal específico, de ato ou decisão que afete, potencial ou efetivamente, direito líquido e certo do cidadão, com reflexo direto em sua liberdade. Impropriedade da expedição de ofício ao órgão classista. 6. Habeas corpus concedido em parte para declarar a nulidade dos atos processuais praticados após a conclusão do primeiro julgamento e determinar ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri que complete o julgamento, pronunciando a absolvição do paciente, desde logo, expedindo-se alvará de soltura em seu favor, reabrindo-se, após, os prazos recursais. (HC 200.440/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 02/04/2012)
Portanto, embora a absolvição seja manifestamente contrária à prova dos autos e estejamos a tratar de uma clínica de aborto – reconhecidamente dada a essa atividade -, o fato é que há permissão legal para a absolvição na hipótese (diz-se que até por clemência se poderia ir a tal desiderato), estando vedada a submissão da espécie a um terceiro julgamento (art.  593, §3º, do CPP).

4. Diante do exposto, a Procuradoria de Justiça manifesta-se pelo conhecimento e DESPROVIMENTO do apelo, nos termos desse parecer.
(...)

Nesse contexto, não vislumbro como decidir de modo diverso.
POSTO ISSO, voto no sentido de negar provimento ao recurso ministerial.
PM

Des. Jayme Weingartner Neto (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
Des. Nereu José Giacomolli (PRESIDENTE) - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI - Presidente - Apelação Crime nº 70050816024, Comarca de Quaraí: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME."


Julgador(a) de 1º Grau: CARL OLAV SMITH”




[1] (f. 686).


Acesso: 2/8/2013

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