DIREITO AO SOSSEGO
“O SAGRADO DIREITO AO SOSSEGO E
A DESINFORMAÇÃO.
Autor: Rizatto Nunes: Professor
de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é
Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado
do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Como, ultimamente, os meios de comunicação têm abordado com
certa regularidade a questão do barulho, mas nem sempre têm tratado as questões
jurídicas como exige o caso, eu volto a cuidar do assunto, lembrando, desde
logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a
sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as
outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este
cada dia mais violado abertamente.
Em abril de 2012, um trabalhador rural foi morto a tiros na cidade de
General Salgado. O acusado do crime era um vizinho, professor de
ciências, que praticou o delito por causa do barulho que sempre ocorria no
local. Testemunhas disseram a polícia que as discussões entre os vizinhos eram
constantes. A ironia é que o professor já havia inclusive registrado na
Delegacia local um boletim de ocorrência contra os vizinhos por causa do
barulho, o que não foi apurado, mas depois do homicídio a investigação estava
sendo feita…
No início do mês passado, num condomínio de luxo na grande São Paulo, um
empresário que reclamava constantemente do barulho provocado por seu dois
vizinhos, após outra discussão, matou os dois, marido e mulher. Depois se
suicidou.
Fazendo uma busca na internet sobre esse crime, eu encontrei uma carta de uma
leitora que, de algum modo, traduz o sentimento de ira e impotência que esse
tipo de violação ao sossego envolve. Veja: “Eu já tive problemas terríveis com vizinhos
que ouvem música alta. Isso vai dando uma irritação progressiva e a gente chega
ao ponto de quase explodir…Por conta disso, tive depressão e literalmente
abandonei esse apartamento que era meu, quitado, bem localizado e de três
quartos. Acho que o sujeito que atirou não teve uma crise súbita, acho que foi
um acúmulo de circunstâncias que terminou em tragédia…”
Recentemente, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou uma lei que proíbe o uso
de aparelhos de som portáteis instalados em carros estacionados que emitam som
alto, considerado este o que atinge 50 decibéis. A medida, naturalmente,
é boa, mas é muito menos do que já existe legalmente estabelecido no
país, como se verá na sequência. Nós temos em vigor leis muito mais
rigorosas que permitem que se puna os infratores e exige que se faça
cessar a violação quando ela estiver ocorrendo.
Como já tive oportunidade de comentar, na sociedade atual não só há uma falta
de educação, cortesia e respeito ao direito do outro como, de fato, parece que
neste capitalismo do império globalizante em que vivemos, tudo faz
barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em
altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas
academias, nos intervalos comerciais da tevê, nos espetáculos teatrais e
nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que
atinge toda a redondeza; são festas de aniversário e de casamento; são shows ao
vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e
danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc. Além disso, há, no dia a dia,
excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas
fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de
ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado
progresso.
E, claro, há os sons “privados” dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem
pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus
exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até
“imitações” dos papagaios (licenciados ou não pelo Ibama). Enfim, os barulhos,
ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora
sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao
sossego.
Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos
estabelecimentos comerciais de que seus freqüentadores escutem as músicas por
eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e
musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como
pela qualidade das músicas…). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao
silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir,
com base nas leis em vigor!
O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à
garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A
legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito, que envolve
uma série de transtornos que já foram avaliados e julgados pelo Poder
Judiciário.
Por exemplo, o Judiciário considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho
produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando
perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos
oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em
zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de
cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos
excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio
residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas
que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale
para sons produzidos eletronicamente etc.
Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do
fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em
que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação
da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou
que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha
aprovado sua construção.
Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras
o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura
local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível
violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é
responsável pelos danos causados às pessoas.
Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das
Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece
pena de prisão para aquele que “perturbar
o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo
profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou
não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda”
Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de
cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do
antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que “Consideram-se maus
tratos: I – Praticar ato de abuso ou crueldade em
qualquer animal; II – Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes
impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz”. Essa
antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A
lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão
para quem “Praticar ato de abuso,
maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados,
nativos ou exóticos”
É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o
crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: “Causar poluição de qualquer natureza em
níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que
provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”
E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003,
garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: “O proprietário ou o
possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas
pela utilização de propriedade vizinha”.
Consigno que, para a caracterização do delito penal de perturbação do
sossego, a lei não exige demonstração
do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do
direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam,
para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se
deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta
a perturbação em si.
Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem
a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica.
Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima,
não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas
financeiras.
A questão, portanto, ao contrário do que tem sido noticiado, não se
restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É,
também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a
vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para
impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo
pleitear indenização por danos materiais e morais”.
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